Presidente do TST quer cotas para negros no setor privado

“Se somar na composição étnica os negros e pardos, vamos ter mais de 50%. E qual é a presença desse grupo no poder?”, diz Carlos Alberto Reis de Paula

Primeiro negro a ocupar a Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o ministro Carlos Alberto Reis de Paula acredita que a política de cotas deveria ser estendida das universidades para todos os ambientes de trabalho, englobando o serviço público e as empresas privadas. Para o presidente do tribunal, há alguma coisa errada num país em que mais de 50% da população é composta por negros e pardos e, no entanto, eles ocupam poucos cargos de direção tanto no funcionalismo quanto nas grandes empresas.

Responsável por comandar a Justiça Trabalhista e tomar as principais decisões do país em conflitos envolvendo empregados e empregadores, Reis de Paula defende que o Judiciário abandone a postura passiva de decidir apenas os processos que lhe chegam e parta para a organização de mobilizações junto à sociedade. Ele tem convocado representantes dos trabalhadores e dos patrões para definir critérios de segurança em obras na construção civil e nos transportes. O TST também tem programas de combate ao trabalho escravo e infantil. Mas boa parte da pauta do tribunal é movida pelas ações judiciais e, nesse campo, Reis de Paula forneceu a agenda das principais questões para 2014.

O tema que mais se repete nas ações no TST é a responsabilização de órgãos públicos por problemas em serviços terceirizados. Em seguida estão os conflitos em planos de demissão voluntária de empresas privadas. Ambos dependem do Supremo Tribunal Federal (STF) para serem solucionados.

Reis de Paula elogiou o julgamento da Corte presidida por Joaquim Barbosa no mensalão. A grande mensagem, segundo ele, foi a de que a Justiça há de ser feita independentemente das posições ideológicas, do prestígio político e dos cargos ocupados pelos réus. “A impunidade não pode ser reservada a pessoas por causa de suas situações pessoais”, disse o ministro.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O sr. é favorável à ampliação da política de cotas para os negros?

Carlos Alberto Reis de Paula: Se eu abrir a Constituição, vou descobrir que ela consagra ações afirmativas. Vou começar pelo artigo 170 que, no inciso 9º, prevê tratamento favorecido para as companhias de pequeno porte. Isso é uma ação afirmativa de natureza econômica. Quem vai dizer que isso é inconstitucional?

Valor: As empresas privadas deveriam ter cotas?

Reis de Paula: Nós temos que fazer um grande debate para levá-las à consciência de que temos que mudar o quadro atual. O Brasil é um país interessante. Se somar na nossa composição étnica os negros e pardos, vamos ter mais de 50%. E qual a presença desse grupo no poder? E no segmento empresarial, nos cargos de direção? Há alguma coisa errada. Há o problema de qualificação, que passa obrigatoriamente pelo ensino. Daí porque tenho que dar a possibilidade às pessoas de se qualificarem. É para que elas possam concorrer em igualdade de condições com os outros.

Valor: É possível regulamentar cotas no setor privado de alguma forma?

Reis de Paula: Acho possível, se for um índice simbólico a ser colocado numa base referencial mínima.

Valor: No serviço público isso poderia ser feito?

Reis de Paula: Sim. Mas acho que temos que saber quem está em situação de desigualdade. Verificar as pessoas oriundas de escolas públicas, os problemas de raça, de sexo. Ainda existem problemas com indígenas, principalmente na região Norte, onde a presença deles é forte, mas vivem um pouco marginalizados. Não devemos fazer análises simplistas. Temos que ver cientificamente a realidade em cada Estado e município. Isso passa por políticas estaduais, municipais e há princípios que passam por regulamentações federais. Deve-se respeitar as particularidades de cada região.

Valor: Quais seriam esses princípios e essas regulamentações?

Reis de Paula: Se verificarmos na Constituição, a parte sobre a administração pública fala em reserva de cota para portador de deficiência. É outro tipo de ação afirmativa. Quando se fala nessas ações, temos que fazer outro raciocínio. O que se persegue com ações afirmativas é a busca de uma igualdade. É para alguém que está numa situação desfavorável tenha igualdade real. O fato básico é esse. É esse princípio que anima as ações das cotas. Elas estão asseguradas em instrumentos normativos. Na Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Convenção nº 111 trata sobre a discriminação no trabalho.

Valor: O sr. é favorável às cotas em todos os ambientes de trabalho?

Reis de Paula: Sou. Há questões complicadas que o Supremo Tribunal Federal vai debater. Como vamos fixar cotas dentro do serviço público? Aqui, temos um campo experimental fantástico. Por que não estabelecemos a obrigatoriedade de cotas dentro da prestação de serviços? No TST, nós temos uma regulamentação em que fixamos cotas para negros em 10% para a terceirização de serviços.

“A impunidade não pode ser reservada a pessoas por causa de suas situações pessoais”

Valor: Quais as causas que mais se repetem no TST?

Reis de Paula: Boa parte está na terceirização e envolve órgãos públicos. É algo que nos preocupa. Há muitos casos sobre acidentes de trabalho envolvendo danos morais e físicos. Essas causas têm um peso muito grande. Nesses casos, não podemos ser apenas aqueles julgamos as pessoas. Cada um de nós é cidadão e devemos nos envolver para ajudar a sociedade a pensar.

Valor: O TST está indo além de meramente julgar os casos?

Reis de Paula: Sim. Fizemos um trabalho com a questão da segurança. Visitamos vários Estados com obras na área de construção civil e também nos voltamos para a área de transportes. Isso é importante, pois quando colocamos algo como nosso, há uma mobilização da Justiça do Trabalho.

Valor: Quais outras áreas merecem mobilizações da Justiça do Trabalho?

Reis de Paula: Temos um programa sobre trabalho escravo e outro sobre trabalho infantil.

Valor: Ainda chegam muitos processos sobre trabalho escravo e infantil ao TST?

Reis de Paula: Muitos. O trabalho infantil gera uma preocupação de saber de quem é a competência para julgar, se é da Justiça comum ou da Justiça do Trabalho. Acho que a razão nos assiste. Tudo o que diz respeito à relação de trabalho é de competência nossa. Mas essa questão está esperando por uma definição do STF.

Valor: Quantas teses da Justiça do Trabalho estão à espera de definições do STF para serem aplicadas em seus processos?

Reis de Paula: Há inúmeros processos parados na Justiça do Trabalho por conta da determinação de que eles têm repercussão geral no STF. Dou um exemplo muito simples: saber se os órgãos públicos podem ser responsabilizados quando terceirizam os serviços. A Lei nº 8.666 (Lei das Licitações) diz que, quando há licitação, não haverá responsabilização trabalhista. Nós, no TST, dissemos que esses entes respondem subsidiariamente. Há necessidade de que haja certa culpa por parte do ente público. Mas a quem compete provar essa culpa? Essa é a grande questão. Está na relatoria da ministra Rosa Weber e temos insistido para o caso ser julgado.

Valor: Como a ministra Rosa veio do TST, ela poderia ajudar a solucionar essa questão?

Reis de Paula: Sim. Eu também pedi ao ministro Joaquim Barbosa [presidente do STF] para ele nos ajudar efetivamente a resolver outras questões de repercussão geral que têm provocado a paralisia de processos aqui. Ele me disse que vai colocar esses casos para julgar, pois eles travam a Justiça Trabalhista.

Valor: Quais são esses casos?

Reis de Paula: Temos duas questões grandes. Uma é essa da responsabilização de órgãos públicos em serviços terceirizados. Há 22.168 processos paralisados no TST sobre isso. A outra trata de adesões aos planos de demissão voluntária (PDVs). Há 1.203 processos no TST sobre transação extrajudicial de PDVs. É para saber se, ao fazer transação extrajudicial, pode-se dar quitação a outras obrigações no contrato. A tendência nossa é não dar efeito ampliativo a essa transação. Mas tudo vai depender da interpretação do STF. Vou entregar essa questão ao ministro Joaquim Barbosa. Há ainda um terceiro tema, com 1.159 processos no TST, em que se discute se, quando há uma cessão de créditos e se parte para a penhora de bens, essa seria uma forma de fraudar a execução.

“Não há um conflito trabalhista que não passe pela conciliação. Isso é uma exigência legal”

Valor: Falando em Joaquim Barbosa, o que o sr. achou do julgamento do mensalão?

Reis de Paula: O julgamento da Ação Penal nº 470 teve um simbolismo extraordinário a partir do momento em que mostrou para a sociedade que a Justiça não pode ter critérios diferentes quando há um delito, considerando os aspectos pessoais, políticos e econômicos. Ou seja, a impunidade não pode ser reservada a pessoas por causa de suas situações pessoais. A grande virtude, a grande mensagem, no meu entender é essa: a Justiça há de ser feita independentemente das posições ideológicas, do prestígio político, dos cargos ocupados. Agora dizer que o julgamento foi errado… Eu prefiro evitar essas discussões teóricas. Há um detalhe relevante: a decisão foi tomada pelo colegiado. Não interessa se houve 2 ou 4 votos contrários em 11. Eu vou dizer que a maioria dos ministros, que o colegiado julgou irresponsavelmente, com preocupações midiáticas?! É afirmativa que não corresponde aos fatos.

Valor: Voltando à Justiça Trabalhista, o TST deve procurar uma aproximação entre trabalhadores e empresários?

Reis de Paula: Quem deve ajudar a construir as soluções para a Justiça do Trabalho são justamente os trabalhadores e os empresários. Eles é que têm a vivência do dia a dia do trabalho. Essa aproximação é o único caminho. A conciliação está no DNA da Justiça do Trabalho. Saiba que não há um conflito trabalhista que não passe pela conciliação. Isso é uma exigência legal. É um hábito salutar. Foi levado para todo o Judiciário através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele estabeleceu a semana da conciliação a partir das análises que fez na Justiça do Trabalho e das vantagens que ela trouxe para nós. Todo o processo nosso tem conciliação, quer seja individual ou coletivo.

Valor: Como as empresas devem regular o tempo que os funcionários passam trabalhando em casa?

Reis de Paula: Nós temos o teletrabalho na própria estruturação do TST. É em número modesto, pois não é forma comum de o servidor prestar serviços, mas responde a uma necessidade até momentânea. Às vezes, dependendo do contexto, é altamente positivo. Mas a adoção do teletrabalho deve respeitar algumas exigências a serem atendidas pelo servidor, senão ele vai ser o senhor do seu próprio trabalho. O nosso trabalho é voltado ao interesse público. No teletrabalho, ele tem que responder às solicitações que lhe são feitas.

Valor: E no setor privado?

Reis de Paula: O que eu acho mais difícil é o controle do trabalho. O problema todo é a fiscalização que se vai exercer sobre o trabalhador. Você vai controlar pelo que ele apresenta, pelo resultado. A remuneração também será estabelecida pelo resultado.

Valor: A Justiça do Trabalho favorece mais o trabalhador ou o empregador?

Reis de Paula: Respondo com uma afirmativa. A Justiça está sempre a favor do trabalho. E para haver trabalho temos que compreender os dois. Nós temos que valorizar o trabalho. Toda a movimentação no sentido de precarizar o trabalhador vai sofrer a insurgência da Justiça do Trabalho. Não se pode jogar o trabalho na desvalia. A Justiça tem que perseguir a valorização do trabalho e não esquecer que isso não significa a desvalorização da livre iniciativa. O artigo 170 da Constituição diz tudo, quando determina que a ordem econômica é fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho. Esses dois pilares têm que estar sempre presentes para buscar o equilíbrio e a razoabilidade na Justiça do Trabalho.

Fonte: Valor Econômico

Por Juliano Basile | De Brasília

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