Reforma trabalhista só será trágica se permitirmos

A edição da Lei 13.467 subverteu o texto da CLT com o artificialismo de alterações orientadas a partir de interesses antitrabalhistas. Contrariando promessas inidôneas do governo, o projeto de lei advindo da Câmara não sofreu veto algum. A medida provisória, cujos enganosos acenos atenuariam os aspectos mais truculentos da lei, também não foi elaborada, tampouco publicada.

Para piorar as coisas, há risco de maior desmanche na CLT, nos textos do PL 6442 ou da PEC 300. Graves prejuízos sociais já estão consolidados. Todavia, nada impede que um governo legitimamente eleito revogue essa lei, reconhecendo sua manifesta incompatibilidade com a ordem de proteção constitucional e internacional vigentes para as relações de trabalho. A urgência, inclusive em relação ao prazo para que entre em vigor, impõe, porém, outra discussão.

A CLT virou aquilo que os idealizadores da “reforma” tanto queriam, segundo seu próprio discurso, ou as alterações ali introduzidas, apesar de tudo, não têm o condão de retirar direitos? Compete-nos, então, responder tais questionamentos. Afinal, se as novas regras introduzidas na CLT não retiram direitos trabalhistas nem afetam a ordem constitucional, devem necessariamente ser interpretadas e aplicadas a partir dessa racionalidade.

Fato é que o código empresarial de Temer foi inserido dentro de uma consolidação cuja racionalidade se mantém inalterada: sua função é a proteção a quem trabalha. Bem sabemos que a intenção verdadeira de quem redigiu a nefasta Lei 13.467 está distante daquela declarada, mas agora, assimilado o golpe consolidado contra a classe trabalhadora, é preciso pensar de modo propositivo.

Pois bem, a tentativa de desconfigurar o Direito do Trabalho pela inserção de regras na CLT encontra limite no próprio texto celetista. Normas como a do artigo 9, 765, 794, entre outras, assim como em todos os demais textos constitucionais e legais que estabelecem os limites da exploração do trabalho pelo capital, precisarão ser observadas.

O que pretendo aqui afirmar é que Direito é linguagem. Algo simples, cuja percepção determina o reconhecimento de que a “reforma” será o que nós, intérpretes do texto legal, fizermos dela. Das regras impostas pelo capital, apenas aquelas que expressarem a proteção que informa e justifica a existência do Direito do Trabalho e na medida em que o fizerem, se tornarão normas jurídicas. A proteção é o que está no princípio. E sendo princípio, é o que justifica a aplicação ou o afastamento da regra.

Alguns exemplos podem tornar mais claras as afirmações que faço. Para que seja lícita negociação acerca do descanso para amamentação, será necessário que a norma coletiva o preveja pelo menos na forma e quantidade prevista na CLT. Do contrário, não haveria negociação sobre tal repouso, mas sim supressão de direito. Do mesmo modo, a redução do intervalo, por previsão normativa, só será lícita quando implicar realmente redução do horário de término da jornada, permitindo que o empregado vá mais cedo para perto de sua família, como referiram os defensores do projeto. O tempo de “higiene pessoal” (ou qualquer das demais hipóteses do art. 4o) só não será tempo à disposição se o empregado efetivamente não estiver à disposição do empregador, já que o caput desse artigo se mantém hígido.

Se o artigo 8o pretende impedir que “súmulas e outros enunciados de jurisprudência” restrinjam direitos, temos o argumento necessário para não mais aplicar as tantas súmulas que contrariam norma constitucional, tal como a súmula 99 do TRT da Quarta Região. Se o juiz deve examinar a norma coletiva atentando para as regras do Código Civil, a boa fé objetiva, a transparência, a lealdade, a ausência de abuso de direito serão parâmetros necessariamente observados, juntamente com a norma do art. 1.707, que impede cessão, compensação ou renúncia de crédito alimentar. Do mesmo modo, as novas regras sobre responsabilidade (art. 2o, 10A e 448A) precisarão ser aplicadas no limites daquelas que já existem: caput do art. 2o, art. 10 e 448 da CLT.

Quanto à prescrição, não há como compatibilizar a tentativa de introdução de um entendimento já superado pela jurisprudência (art. 11, § 2o ) com a disposição do art. 189 do Código Civil. E nem há falar em prescrição intercorrente, na prática das relações processuais de trabalho, quando os juízes tem a sua disposição tantos mecanismos de busca de bens e o dever de atuar com ampla liberdade para a solução do litígio (art. 765 da CLT), inclusive com a ordem expressa de atuar para conferir efetividade à tutela (§ 2o do art. 775).

Já às alterações das regras sobre jornada, basta aplicarmos o art. 611A , que limita as possibilidades de negociação em relação à jornada aos limites constitucionais (I) ou o 611B que textualmente determina a observância das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho (XVII). O parágrafo único desse artigo não poderá resistir à aplicação do caput, ou mesmo aos limites do art. 7o da Constituição que, conforme os idealizadores da lei, não foi afetado.

A tarifação do dano moral é facilmente superada pela utilização da norma do art. 404, parágrafo único, do Código Civil. A natureza das verbas pagas em troca do tempo de vida colocado à disposição do empregador também não depende do texto legal. Decorre da própria finalidade, de contraprestação pelo trabalho. A referência de que dispensas individuais e coletivas equiparam-se não impede a utilização de normas internacionais protetivas, tal como a da Convenção 158 da OIT. Ao contrário, permitem a interpretação de que também para as despedidas individuais há de se observar, por exemplo, o dever de motivação contido tanto naquele diploma internacional, quanto no art. 7o, I, da nossa Constituição. O instrumento de quitação anual constituirá documento sujeito ao crivo do Poder Judiciário, quanto à sua legalidade, pois se suprimir ou fragilizar direito trabalhista, será nulo, na forma do art. 9 da CLT.

As alterações no direito coletivo terão sua eficácia diretamente relacionada à força que as entidades sindicais conseguirem exercer na prática dessa tensão entre capital e trabalho. Nada as impede de, por exemplo, diante das possibilidades abertas pelo chamado “negociado sobre o legislado”, exercerem sua verdadeira função de agentes da melhoria das condições sociais dos trabalhadores, cumprindo a determinação do caput do art. 7o da Constituição e impedindo a adoção de cláusulas que precarizem as condições de trabalho.       

Quanto ao processo, a regra do § 2o do art. 775, somada ao que já dispõe o art. 765 da CLT, resolve todos os problemas relativos a ônus de prova, efetividade de execução, etc. Ao juiz, dentro da lógica da proteção ao trabalhador que ainda inspira e justifica o Direito e o processo do Trabalho, compete “conferir maior efetividade à tutela do direito”, seja quando impulsiona o feito (sem prejuízo da iniciativa das partes), seja quando aceita ou rejeita o bem ofertado à penhora, seja, ainda, quando fixa o alcance do benefício da gratuidade da justiça. Aqui, será preciso, ainda, harmonizar as regras dos art. 790 e 791 com a definição de assistência judiciaria gratuita do CPC e da Lei 1060, além de considerar a diferença econômica entre as partes, caso aplique a tal sucumbência recíproca, de modo a impedir que o trabalhador seja lesado pelo exercício de seu direito constitucional de acesso à justiça.

O que pretendo aqui evidenciar, com esses poucos exemplos, é que tal como ocorreu com a regra que pretendia emprestar às negociações no âmbito das Comissões de Conciliação Prévia o status de condição da ação, a CLT “do Temer”, enxertada dentro da verdadeira CLT e confessadamente sujeita ao seu mesmo princípio instituidor, só alterará as garantias materiais e processuais dos trabalhadores brasileiros se os doutrinadores, sindicalistas, advogados, procuradores e juízes assim o permitirem. Será a interpretação que delineará os rumos da legislação trabalhista. Trata-se de um desafio importante, porque implica assumir compromisso com o projeto social instituído em 1988.

No fundo, tanto na luta que travamos contra a aprovação dessa terrível lei, quanto naquela que a partir de agora nos desafia, o que está em jogo é a ideia que temos da sociedade em que queremos viver. O pacto assumido em 1988 é um pacto de sobrevivência, que mesmo os defensores da “reforma” reconhecem e dizem defender. É, portanto, o que deverá guiar a interpretação e a aplicação das alterações promovidas na legislação trabalhista.

Temos um trabalho árduo pela frente. É hora de fazer ressurgir o verdadeiro Direito do Trabalho, que há tempo estava soterrado por interpretações destrutivas e práticas abusivas, como a que permite “quitação de contrato” em acordo trabalhista. Enganam-se os que dizem que o Direito do Trabalho acabou. Ele foi atingido, mas está mais vivo do que nunca. Pode inclusive se fortalecer. Depende de nós.

Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

Fonte: Justificando – Carta Capital

Foto: Lula Marques/AGPT

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