Famílias veem no auxílio emergencial chance de comer, comprar remédios e pagar aluguel

Governo começou nesta terça (6) a depositar benefício; 45,6 milhões devem receber

A mistura na casa da Priscilla Ribeiro mudou. Até o começo de 2020, escolhia sempre carne para acompanhar o arroz e o feijão nas refeições da sua família. No meio da pandemia, passou a colocar mais ovos na cesta de supermercado para os almoços e jantares.

O auxílio emergencial pode mudar novamente a sua alimentação. A dona de casa de 40 anos não recebeu a ajuda do governo no ano passado, e portanto não vai receber este ano —o novo benefício não aceita novos cadastros—, mas a sua filha de 22 anos, Viviane, pode ser contemplada. E, assim como em 2020, deve ajudar nas compras de casa.

“Hoje a coisa mais difícil é comprar carne. A gente come ovo, arroz e feijão, de vez em quando compra salsicha”, afirma.

Moradora de Heliópolis, maior favela de São Paulo, Ribeiro dará o destino mais comum ao dinheiro entre os moradores de comunidades brasileiras. De acordo com pesquisa do Datafavela, uma parceria do Instituto Locomotiva e da Cufa (Central Única de Favelas), 79% dos que moram em favelas pediriam o auxílio emergencial caso fossem autorizados. Desses, 98% pretendem usar o dinheiro para comprar comida.

A pesquisa foi feita entre 9 e 12 de março e tem margem de erro de 3,6 pontos percentuais. Os dados vêm de uma base formada por mais de 21 mil pessoas de 2.700 favelas brasileiras, uma amostra nacional de comunidades com iguais proporções de idade, gênero e raça, de acordo com os números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A coleta de informações foi online.

Nesta terça-feira (6), o governo federal voltou a fazer os repasses após um hiato de três meses. O programa deste ano vai liberar o equivalente a 15% da assistência de 2020.

No ano passado, o auxílio emergencial pagou cinco parcelas de R$ 600 e mais quatro de R$ 300, e mulheres chefes de família recebiam em dobro. Com o orçamento encolhido deste ano, serão quatro parcelas que variam a depender da formação familiar. O benefício padrão será de R$ 250. Pessoas que vivem sozinhas receberão R$ 150 por mês, limitação que não existia em 2020.

Mãe de sete filhos —quatro com menos de 12 anos e ainda dependentes—, Ribeiro deixou de trabalhar no final de 2020. Sua vaga como segurança de um supermercado foi para uma unidade da rede longe de sua casa, o que a impedia de olhar e alimentar os filhos no horário de almoço. Em São Paulo, as escolas estão fechadas por causa de restrições da pandemia.

Ela tem evitado sair, tentando seguir as recomendações de distanciamento para evitar a contaminação, mas com a situação em sua casa, diz que toparia voltar a trabalhar. “Eu quero, mas não tem a escola para as crianças ficarem. Teria que ser um trabalho muito perto”, diz Ribeiro.

Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva e coordenador da pesquisa, define a situação como uma “calamidade gigantesca”.

“Esse dinheiro [do auxílio emergencial] vai justamente para que as pessoas não tenham que escolher entre a fome e o vírus. É essa decisão que a ausência do auxílio emergencial está impondo aos 16 milhões de moradores de favela todos os dias”, afirma.

Lucia Galdino, 55, diz que também voltaria a trabalhar se pudesse. Outra moradora de Heliópolis, ela ainda faz retornos médicos a cada seis meses para finalizar o tratamento de um câncer.

Sabendo que está no grupo de risco, reduziu saídas e encontros com família e amigos quando a pandemia começou. Com o fechamento das escolas, a sua fonte de renda como cuidadora de crianças entre os vizinhos também secou —com as mães sem trabalho, não é mais necessário ter uma babá. E desde então ela passa os dias em casa.

Assim como ela, 83% dos que pretendem retirar o auxílio emergencial dizem que com certeza vão continuar trabalhando ou procurando emprego. O que tem explicação: 81% desses moradores dizem que a sua renda atual é menor se comparada à vida pré-coronavírus.

Galdino deve dar um uso diferente ao novo auxílio: compra de remédios, que são muitos devido à saúde ainda debilitada.

“Ontem mesmo eu acordei, precisava tomar um remédio e não tinha. Às vezes eu acordo, quero comer um pão e também não tem. O auxílio do ano passado foi de boa ajuda”, afirma. Na última visita ao posto de saúde, não encontrou o seu remédio para asma e não tinha dinheiro para comprá-lo. Desde então está sem o medicamento.

Galdino mudou alguns hábitos. Sem a aposentadoria, que não conseguiu acessar, vive com duas filhas e duas netas. Ela tem mais dois filhos que já se sustentam.

“A minha filha trabalhava, agora está parada. Ela me levava para comer um lanche, almoçar fora. Nunca mais pude, já faz um ano que eu não sei mais o que é isso”, afirma. “Eu estava com medo até de entrar em depressão. Não pode ir para a rua, não pode sair, não pode ir na casa de parentes. É rezar para acabar logo essa quarentena.”

Apesar do tratamento de saúde, a situação que vive a fez pensar em procurar pais e mães interessados em uma cuidadora, trabalho necessariamente presencial.

“Quando a gente fala de trabalho essencial, pensamos no médico, mas tem o auxiliar de enfermagem, tem o segurança, o vigia do hospital, a moça da limpeza que apaga e acende o hospital. Essas pessoas fizeram com que o Brasil não parasse. E essas pessoas que garantiram que os mais ricos continuassem a trabalhar em home office“, diz Meirelles, do Locomotiva.

Beatriz Maria de Sousa, 43, falava com a reportagem ainda com as caixas de mudança em sua casa. Recentemente ela foi despejada de onde morava.

“Eu pagava o aluguel com o auxílio, e acabou. Dividi em dois pagamentos no mês para conseguir, mas teve uma hora que ela [a proprietária] não aceitou mais. Tem uma semana que estou nesta casa”, conta.

Com oito filhos —cinco morando com ela—, a última vez que conseguiu trabalho como empregada doméstica foi há um ano. A única entrada na casa é do Bolsa Família, destinado ao aluguel. Alimentação, normalmente, vem por meio de doações. Sem ir à feira e ao mercado, seus hábitos alimentares também mudaram. “Não consigo comprar o que as crianças gostam, e carne eu consumo bem pouco.”

Para Preto Zezé, presidente nacional da Cufa, falta pensar na favela como investimento, e não como gasto.

“Se as pessoas não têm dinheiro em casa para segurar a onda enquanto não podem trabalhar, vão para a rua se contaminar, colapsando o sistema de saúde e ficando com sequelas. Essa dicotomia entre saúde e economia é tão mentirosa que nós não estamos tendo nenhuma das duas”, afirma.

O governo prevê um gasto de R$ 44 bilhões para atender 45,6 milhões pessoas na rodada do auxílio de 2021. No ano passado, foram gastos R$ 293 bilhões para atender 67,9 milhões de pessoas.

Fonte: Folha de S.Paulo

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