Precarização e subordinação: Brasil é ‘laboratório’ para plataformas digitais, diz pesquisador

Entre 2021 e 2024, o número de brasileiros que trabalham em plataformas digitais cresceu de 1,53 milhão para 2,3 milhões — um aumento de 48%, segundo pesquisa da Clínica de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR), lançada na semana passada. O ritmo de expansão supera qualquer outro setor da economia nacional no período.

Desse total, 92% atuam em serviços baseados em localização, como transporte de passageiros (Uber e 99) e entregas (iFood e Rappi). A Uber sozinha concentra cerca de 900 mil motoristas ativos, fazendo do Brasil seu segundo maior mercado global, atrás apenas dos EUA.

Os dados, obtidos por meio de análise de tráfego digital (Similarweb), cruzamento com a PNAD Contínua e 492 questionários aplicados a trabalhadores, revelam um cenário de precariedade estrutural:

  • 60% recebem menos de 2 salários mínimos mensais;
  • Mulheres têm proporção ainda maior de baixa renda;
  • Mesmo profissionais com ensino superior enfrentam condições degradantes.

As descobertas coincidem com estudo da Universidade de Oxford (Fairwork), que identificou ganhos abaixo do mínimo, jornadas excessivas e ausência de diálogo com as empresas como padrões no setor.

Subordinação algorítmica: controle sem direitos

A pesquisa detalha um modelo de gestão baseado em sistemas opacos que:

  • Distribuem tarefas e definem remunerações;
  • Impõem metas através de pontuações (“saúde da conta”);
  • Aplicam bloqueios sumários – 37% dos entrevistados já foram penalizados sem explicação.

Nicolas Souza Santos, integrante da CSB, da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos e secretário da Associação dos Motoboys, Motogirls e Entregadores de Juiz de Fora, descreve o controle como“patronal, clássico, só que sem a figura física do patrão”. 

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Segundo explica, regras como pontuação, “saúde da conta” e promoções forçam os trabalhadores a permanecerem conectados, sob risco de perderem acesso às melhores corridas ou serem bloqueados. “É um jogo onde a gente vai se moldando às regras que mudam o tempo todo, sem saber exatamente quem decide ou por quê. Mas quem não segue, perde”, conta. 

“Brasil é laboratório de precarização”, afirma pesquisador

“O país tornou-se terreno fértil para a experimentação das plataformas precisely porque falta um marco regulatório”, avalia Sidnei Machado, coordenador do estudo e professor da UFPR. Ele aponta três paradoxos:

  • Crescimento vs. Direitos: Enquanto o setor avança 48%, 81% dos trabalhadores não têm acesso a benefícios básicos como férias ou 13º salário;
  • Inovação vs. Subordinação: Algoritmos reproduzem hierarquias tradicionais (“patrão digital”), mas empresas rejeitam vínculos trabalhistas;
  • Liberdade vs. Controle: “As plataformas vendem autonomia, mas definem unilateralmente valores por serviço, horários de pico e punições”, diz Machado.

O estudo analisou 4.000 decisões judiciais e detectou inconsistências: embora 28% dos casos reconheçam vínculo empregatício, 72% ainda aceitam a tese da “autonomia” — “Os tribunais não decifraram a subordinação algorítmica”, critica o pesquisador.

Respostas das empresas e disputa regulatória

Em nota à reportagem, iFood e Uber (via Abomitec) reiteraram que “o modelo CLT não se aplica a profissionais independentes” e citaram pesquisa do Cebrap com rendas médias mensais de:

  • Motoristas: R$ 2.925 a R$ 4.756
  • Entregadores: R$ 1.980 a R$ 3.039

Dois projetos em debate no Congresso ilustram a polarização:

  • PLC 12/2024 (Governo): Prevê previdência para motoristas, mas exclui entregadores;
  • PL 2479/2025 (Boulos): Estabelece tarifa mínima para entregas e proteções universais.

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“Essa disputa define se o Brasil continuará sendo o laboratório global da precarização”, conclui Machado. O estudo propõe medidas urgentes, como inclusão do tema na PNAD e transparência compulsória das plataformas sobre número real de trabalhadores ativos.

Com informações de Intercept Brasil

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