Historiador revela laços entre a filial brasileira da Volkswagen e a ditadura

O ferramenteiro Lúcio Bellentani, preso e torturado na fábrica da Volkswagen em São Bernardo (SP)

Parecia mais um turno noturno banal para o ferramenteiro Lúcio Bellentani, então com 27 anos, na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP). Mas naquela noite de 29 de julho de 1972 ele foi abordado por um grupo armado de agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e seguranças patrimoniais da empresa em plena linha de produção.

Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e funcionário da VW desde 1964, Bellentani foi levado para uma sala do departamento pessoal da empresa. A tortura começou ali mesmo –sob olhar do próprio chefe da segurança da VW e de outros funcionários. “Queriam saber de outros para eu delatar. Levei socos, tapas e pontapés.”

Bellentani, hoje com 72 anos, foi levado para a sede do Dops em São Paulo e permaneceu mais de 40 dias sem contato com sua família. A empresa também não fez questão de avisar sua mulher sobre o que havia acontecido. Ele só sairia da prisão um ano e meio depois.

O caso é um de mais de uma centena de episódios que estão sendo analisados por um historiador contratado pela matriz alemã da Volkswagen. O objetivo: desnudar a colaboração da filial brasileira com a repressão do regime militar (1964-1985).

“Existia uma cooperação regular entre as equipes de segurança industrial da VW do Brasil e as forças policiais do regime”, disse à Folha o historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, que assumiu a função em 2016. O trabalho foi iniciado na esteira de revelações da CNV (Comissão Nacional da Verdade), que apontou os laços da empresa com o regime. Ele deve apresentar até setembro um relatório de conclusões.

COLABORAÇÃO

Segundo o historiador, seguranças da VW costumavam espionar conversas e armários dos funcionários em busca de “subversivos”. Eles também auxiliavam em prisões e elaboravam relatórios regulares sobre os empregados –Kopper localizou mais de duas centenas desses documentos nos arquivos do Dops, que também possuía dados sobre funcionários que só poderiam ter sido coletados pela empresa.

Um dos relatórios, por exemplo, descreve a descoberta de panfletos com conteúdo comunista em um banheiro. “Eles não se limitavam a apenas registrar isso, mas também informavam a polícia política”, disse Kopper. “Não é por acaso que tantos dados estão no Dops.”

Outro documento, de 1980, cita um relato feito por um segurança da empresa que acompanhou um discurso do então dirigente sindical Luiz Inácio Lula da Silva a funcionários da VW. O futuro presidente havia advertido os operários de que eles provavelmente estariam sendo monitorados pela empresa, em especial pelo ex-coronel Adhemar Rudge, o chefe da segurança que participou da prisão do operário Bellentani.

“Dentro da Volks, (…) a segurança fica de olho em vocês, através de um circuito de televisão, e o coronel Rudge fica o dia inteiro vendo vocês trabalhando”, disse Lula na ocasião. Rudge foi responsável pela segurança da fábrica em São Bernardo do Campo entre 1969 e 1991–em depoimento ao Ministério Público Federal em 2016, ele negou espionar empregados e disse que a segurança só cuidava do patrimônio.

Ainda de acordo com Kopper, a empresa elaborava “listas negras” de funcionários que participavam de greves, que eram compartilhadas com outras empresas do ABC. Demitidos, os operários dificilmente encontravam emprego.

Mais de cem pessoas foram prejudicadas dessa forma. Dez, incluindo Bellentani, foram presas pelo regime –sete foram condenadas. “A VW do Brasil permitiu essas prisões. E é possível que a segurança, ao relatar seus achados sobre material comunista, tenha ainda ajudado a polícia a identificar essas pessoas”, disse Kopper. “Não havia nenhuma obrigação legal de fazer isso, então a colaboração foi voluntária”, disse.

REPERCUSSÃO

Inaugurada em 1959, a fábrica em São Bernardo foi a primeira da VW fora da Alemanha. Rapidamente se tornou a maior empresa privada da América Latina. No auge, a fábrica empregava 23 mil pessoas. No final dos anos 50, Friedrich Schultz-Wenk, presidente da VW do Brasil, se gabou em uma entrevista da disciplina dos funcionários. “É impressionante como o temperamento dos brasileiros se adaptou ao jeito alemão”, disse. Em 1964, os representantes da empresa no Brasil apoiaram o golpe.

Os laços da montadora com o regime militar já haviam sido abordados pela CNV. No momento, um inquérito é conduzido pelo MPF. Ele tem como parte ex-operários que desejam reparações.

A história ganhou repercussão na Alemanha nos últimos dias graças a uma série de reportagens das emissoras NDR e SWR e do jornal “Süddeutsche Zeitung”. Recentemente a empresa já havia sido alvo da imprensa após se envolver em um grande escândalo de manipulação de níveis de emissão de poluentes.

Não foi a primeira vez que a VW teve que lidar com seu passado. Fundada no regime nazista como uma estatal, a empresa empregou milhares de trabalhadores escravos durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1998, concordou em indenizá-los.

Oficialmente, a matriz, que fica em Wolfsburg, ainda aguarda a publicação do relatório de Kopper para se posicionar sobre seu passado no Brasil. “No momento, temos que esperar para ver”, disse um porta-voz. Procurados pelos jornalistas alemães, alguns antigos executivos rechaçaram as acusações. “Não há coisas mais importantes para nos preocuparmos do que o passado do Brasil?”, disse Carl Hahn, ex-membro do Conselho da VW do Brasil nos anos 60 e 70 e depois presidente da matriz.

Kopper afirmou que é provável que a matriz não tivesse conhecimento do que se passava na fábrica do Brasil durante a maior parte do regime. Mas isso mudou em 1979, quando um grupo de operários brasileiros foi até Wolfsburg durante um congresso para confrontar o então presidente da empresa, Toni Schmücker, sobre as prisões.

“A VW sempre deu muita autonomia para sua filial brasileira. Por que iriam se preocupar com uma unidade tão lucrativa? Isso só muda a partir de 1979, quando Wolfsburg passa a olhar o que estava acontecendo. A partir daí, a VW do Brasil passou gradualmente a permitir a organização sindical, mesmo ainda sob o regime”, disse Kopper.

Kopper, que já elaborou livros sobre a relação de banqueiros com o nazismo, sugere que a Volkswagen deve pedir desculpas pelo seu papel durante o regime militar.

O operário Bellentani afirma que ele e colegas prejudicados desejam principalmente reconhecimento. “Não é uma questão de indenização. Queremos que empresa diga ‘nós erramos, não deveríamos ter sustentado esse regime’, queremos que essa história seja reconhecida”, disse.

 DE FORA

Kopper deve deixar de fora do relatório uma acusação repetida há anos que envolve a VW e o nazista Franz Paul Stangl, antigo comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor. Enquanto foragido, ele trabalhou na unidade de São Bernardo por oito anos até ser preso em 1967.

Para Kopper, apesar de ser escandaloso que a VW tenha contratado o austríaco Stangl, ele nunca passou de um mero chefe de setor na fábrica e não tinha relação com a segurança.

Fonte: Folha de S. Paulo

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