Falta de trabalho formal e estudo afetam 30% dos jovens em SP

A cidade de São Paulo tem 2,57 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos de idade. Quase 30% delas estão em situação de vulnerabilidade social. São mais de 766 mil jovens sem oportunidade de estudo ou emprego formal. Os que já foram chamados de geração Nem-Nem agora querem ser vistos como jovens-potência à procura de oportunidades para superar o racismo estrutural, a evasão escolar, a falta de trabalho e a exclusão digital na periferia da maior metrópole do país.

“Parte do problema é como a sociedade olha para o jovem que mora na periferia, de forma negativa, que vai chegar atrasado e cansado no trabalho porque mora longe. Mas são jovens resilientes, criativos e com habilidades socioemocionais. São potências enormes. Em geral, escolhemos olhar para o lado que falta e não para o que abunda”, afirma Gabriella Bighetti, diretora executiva da United Way Brasil, articuladora do GOYN.

missão do GOYN (Global Opportunity Youth Network) São Paulo é impactar a vida de 100 mil jovens da periferia até 2030 por meio de parcerias com empresas e a sociedade civil para criar soluções estruturais aos desafios enfrentados pela juventude e combater a desigualdade de raça e gênero. “Que a gente da periferia seja regra e não exceção, para que a gente não tenha que trabalhar o dobro para ganhar a metade”, afirmam os jovens em um manifesto.

A iniciativa foi criada nos Estados Unidos por uma organização internacional que tem recursos para ajudar populações vulneráveis. Já foi implantada em Bogotá (Colômbia) e Cidade do México, na América Latina. Em São Paulo, começou em 2020 e hoje soma 70 instituições parceiras.

“O estudo, em parceria com a Accenture Brasil, foi o ponto de partida para pensar intervenções que gerem oportunidades para o jovem. Baseado em evidências, dados e voz ativa dos jovens, podemos direcionar os investimentos em projetos para mudanças sistêmicas, que se sustentam com o tempo, e não àqueles que enxugam gelo”, ressalta a executiva da United Way.

Na capital paulista, 70% dos jovens vivem nos extremos das zonas sul e leste, em áreas como Cidade Tiradentes, Ermelino Matarazzo, Guaianases, Itaim Paulista, Itaquera, São Mateus, São Miguel, Campo Limpo, Capela do Socorro, Cidade Ademar, M’Boi Mirim, Parelheiros e Santo Amaro. A maioria são mulheres e negros (53%).

Alana Gonçalves Vieira tem 24 anos e vive em Ermelino Matarazzo, na zona leste, em uma casa com a mãe e duas irmãs. Desde que se formou no ensino médio em 2014, só teve uma experiência de emprego por três meses com telemarketing.

“O mais difícil é conseguir emprego. Não dão oportunidade para quem não tem experiência e treinamento. Vivo da renda familiar. Minha mãe é pensionista. Mas tenho amigos com faculdade, mestrado, que também não conseguiram colocação no mercado”, conta.

O índice de desemprego entre os jovens da cidade de São Paulo é de 35%. Quase o dobro quando comparado ao da população total (16%).

Alana sonha em conseguir um trabalho para estudar psicologia. Sem uma renda garantida, não tem como pagar os livros, alimentação e transporte, mesmo que consiga uma bolsa de estudos. Hoje ela recebe um auxílio de R$ 300 e integra o projeto do GOYN, participa de reuniões com empresas e ajuda a propor soluções para juventude.

Um dos problemas por ela relatados é a falta de entretenimento na periferia. Há uma pista de skate, onde os jovens se reúnem, mas em más condições de uso.

“Fico desiludida, mas tenho esperança que as coisas vão mudar. Um dia o ‘sim’ vai vir. As coisas não são fáceis e nem vão ser. A gente aprende, tem vontade e quero despertar o outro também. O que falta na periferia é estímulo. O governo não dá a mesma oportunidade de quem mora no centro. As escolas não são as melhores e nem o emprego vai ser tão bom. Tinha que ter na periferia para ficar na periferia”, enfatiza Alana.

A evasão escolar em São Paulo é alta e a pandemia agravou o problema. “Esse dado é muito preocupante porque 28% dos jovens que estavam matriculados no ensino médio não pretendem voltar para a escola. Temos que lidar com um desafio cada vez maior que é a evasão, enquanto o mercado de trabalho exige cada dia mais habilidades”, explica Gabriella Bighetti.

De acordo com levantamento do GOYN, dentre os jovens de 15 a 29 anos na capital, 26% não completaram o ensino fundamental, 24% saíram antes de concluir o ensino médio e apenas 13% têm ensino superior. A situação é mais grave nos extremos das regiões leste e sul, onde menos de 35% terminaram o ensino fundamental e apenas 4% concluíram o ensino superior.

Um dos motivos para o abandono da escola é a questão financeira. Muitos precisam trabalhar para sobreviver. Foi o caso de Rute Franciele de Lima, de 27 anos, que foi criada na comunidade da Ilha, no Jardim Elba, na zona leste de São Paulo. Ela está há 9 anos com o marido e tem dois filhos, de 9 e 7 anos. Há dois, mora em um barraco numa invasão do Jardim Santo André porque não tem mais condições de pagar aluguel.

“Eu parei de estudar no ensino médio. Minha mãe ficou doente e criava a gente sozinha, na luta, com reciclagem. A gente sempre estava com ela para ter o que comer em casa. Quando fui ter estudo mesmo foi quando fomos para um abrigo. Meu marido, que tem 30 anos, parou na sexta série para poder trabalhar. Eu pretendo terminar os estudos, mas não sei como”, lembra.

Segundo ela, o maior preconceito enfrentado pelos jovens para conseguir trabalho é o fato de serem moradores da periferia. “Falta de capacitação, exigem experiência, mas nem todos tiveram oportunidades. Às vezes o trabalho é muito longe. A gente sente na pele e os olhares falam muito”, ressalta.

Ensinos profissionalizantes são opções mais viáveis: 80% dos estudantes do ensino técnico de 14 a 18 anos vêm de famílias com renda de até 5 salários mínimos. No entanto, apenas 8% dos jovens se formam nessa modalidade.

A inclusão produtiva dos jovens-potência significa retornos financeiros à cidade, com a redução do custo da evasão escolar e arrecadação de impostos. Segundo pesquisa Accenture, a inclusão pode somar até 0,3% ao PIB (Produto Interno Bruto) de São Paulo, o que representa R$ 2 bilhões.

A pandemia trouxe ainda mais problemas à família de Rute Franciele de Lima. O marido faz bicos como ajudante de pedreiro, mas não tem renda fixa. Eles recebem auxílio emergencial enquanto as crianças estudam em casa.

“Tão tendo aula por celular, mas a conexão é ruim. Eles estão em séries diferentes, no mesmo horário, e só tem um celular. Fica complicado. Não tem uma estrutura boa para estar com as crianças em casa. Tem que pegar no pé para eles terem o que a gente não teve: o estudo”, diz Rute.

De acordo com a pesquisa feita pelo GOYN para implantação do projeto na cidade de São Paulo, a exclusão digital está diretamente relacionada à desigualdade social. Ermelino Matarazzo e São Mateus, na zona leste, tinham menos de 60% da população conectada à internet em 2017.

Na Grande São Paulo, 825 mil moradias em situação de alta vulnerabilidade não possuem banda larga fixa. Também 26% da população da região metropolitana usa a internet apenas via celular e 9% dos estudantes sequer possuem acesso.

Para resolver definitivamente o problema da conectividade, precisaria haver uma política pública. Na ausência de um projeto de fôlego, iniciativas são testadas antes de se tornarem programas em larga escala. Uma delas é a periferia digital.

“Os jovens estão alheios à discussão, não estão conectados, num momento em que se fala de indústria 4.0. A ideia são jovens, mentores, que são remunerados por isso, que mostram a outros jovens onde encontrar a conexão: é o letramento digital nas periferias”, conta Gabriella Bighetti.

Em 2019, cinco das oito profissões com maior oferta de vagas estavam relacionadas ao mercado digital.

Lucas Viana Gregório tem 20 anos, cursa Letras na USP e se considera um ponto fora da curva quando olha para os outros jovens da periferia. Ele mora em Taboão da Serra, no limite com o bairro do Campo Limpo, na zona sul.

“Passei na ETEC Paraisópolis, as aulas começavam às 7h, mas eu saía 5h30. De carro, seriam 20 minutos, mas de ônibus era 1h30. Consegui fazer um cursinho online noturno para o vestibular e passei na USP pelo SISU [Sistema de Seleção Unificada]. Sou privilegiado. Muitos colegas abandonam as escolas por falta de incentivo”, afirma.

Ele mora com os pais e, na pandemia, o pai perdeu emprego e passou a trabalhar como motorista de aplicativo. Em junho, Lucas descobriu o edital do GOYN, passou no processo seletivo para o Núcleo Jovem e recebe uma bolsa como assistente de projetos.

O universitário reconhece muitos desafios que encontrou no percurso, entre eles os longos deslocamentos entre a periferia e o centro da cidade, a conectividade ruim de internet se não for um pacote pago e o pouco acesso a espaços de lazer e esporte.

“Consegui fazer muita coisa que os outros jovens não fizeram. É difícil ter acesso a oportunidades, a condução é cara e o bilhete não dá para fazer toda a viagem, os trajetos são longos. Mas há um contexto por trás. Muitos não têm apoio familiar, as escolas não provocam o interesse dos alunos, às vezes não tinha aula, com a pandemia, as escolas fecharam. Tem muitos jovens caminhando na direção contrária de serem potência”, destaca.

Lucas não concorda que os jovens sejam culpabilizados. “Nem trabalha nem estuda. Os jovens não são os culpados, eles não foram incentivados a mudar. Como diz a música, o jovem no Brasil não é levado a sério. São vítimas de um sistema que não incentiva a pensar no futuro. A parcela maior de culpa é do Estado, mas vamos tentar resolver junto”, garante.

Outros dois desafios à juventude periférica identificados pelo levantamento são o racismo estrutural e a crise laboral.

Os jovens negros têm menos escolaridade que os brancos: 34,3% entre 18 e 20 anos e 44,1% das mulheres negras completam o ensino médio em São Paulo. Na comparação, 62,6% das mulheres brancas e 53,7% dos homens terminam o ciclo nos colégios. Consequentemente, a renda de pessoas brancas é quase três vezes maior.

Apenas 4,7% dos executivos das empresas brasileiras são negros. Já nos cargos funcionais, 35,7% dos trabalhadores são negros. As mulheres são as mais excluídas produtivamente.

Nos últimos anos, o desemprego aumentou entre os jovens de 18 a 24 anos, chegando a 29,7% no segundo trimestre de 2020.

Durante a pandemia, 80% das famílias nas favelas de todo o país passaram a sobreviver com menos da metade da renda que costumavam ter.

Neste período, empresas suspenderam 52% dos contratos de jovens aprendizes.

“Fui jovem aprendiz numa empresa em 2019. Seria na área administrativa, mas fiquei no almoxarifado. Me deram responsabilidades que não condiziam com o cargo, mas fiquei porque precisava do dinheiro”, lembra Lucas Gregório.

Em 2019, São Paulo registrou mais de 700 mil MEIs (Microempreendedores Individuais), sendo que 168 mil tinham menos de 30 anos.

Um dos parceiros do GOYN é a Fundação Tide Setubal, com forte atuação no Jardim Lapena, no extremo leste de São Paulo. Sauanne Bispo é coordenadora de Nova Economia e Desenvolvimento Territorial do projeto e conta que 70% dos funcionários da instituição têm vivência na periferia, em todos os níveis hierárquicos.

“É uma maneira inteligente de impacto nos territórios, sem achismos, com prática na escuta ativa dos moradores, buscando meios de tornar realizáveis as demandas. Nossa missão é a justiça social e o desenvolvimento para enfrentamento das desigualdades”, explica.

Uma das formas de auxílio à população são os programas de aceleração, com incentivo a negócios que possam ser aplicados na região, e a capacitação de jovens entre 16 e 25 anos, com remuneração, porque muitos precisam ter renda. Por 4 a 6h de trabalho na semana, podem receber entre R$ 500 e 700.

Só neste ano, Sauanne já analisou 180 negócios de impacto sobre empreendedorismo periférico, sendo que 37 conduzidos por mulheres negras.

“Não criamos iniciativas, apoiamos. Disponibilizamos o capital-semente porque negócios na periferia tendem a fechar em menos de três anos. Precisa de dinheiro, não é só ajuda na gestão. Um apoio para dar fôlego porque, para muitos, é o sustento familiar”, destaca a coordenadora.

fundação criou o Galpão ZL, que fica no Jardim Lapena, e oferece atividades gratuitas na área de educação, cultura, esporte, culinária, empreendedorismo e atendimento às demandas sociais, com foco na geração de renda.

“O limitador é o abismo social gerado pelo racismo. Desigualdade impede o acesso à educação. O Brasil está entre os 10 países mais desiguais do mundo. O jovem não vê semelhantes ocupando espaços e acaba ficando estagnado”, diz Sauanne Bispo.

Ela mesma conta que nasceu na periferia de Salvador (Bahia), é negra, mulher e nordestina. Aos 17 anos, entrou na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e se formou em estatística. Hoje tem 35 anos e há 2 veio para São Paulo.

“Nunca me imaginei colocando currículo em banco. Meu grande feito seria ensinar estatística na faculdade. Mas recebi proposta até da Bolsa de Valores de São Paulo. Outros não têm oportunidades ou não veem possibilidades. Minha filha de 3 anos já nasceu com outras referências”, conta Sauanne.

A diretora executiva da United Way Brasil ressalta que os problemas da juventude são complexos, por isso precisam ser enfrentados de forma conjunta e organizada.

“Queremos a inclusão produtiva, que os jovens cresçam, tenham carreiras, uma vida digna e próspera. Não é só empregabilidade. Soluções sistêmicas não elencam prioridades, tudo está interligado. Não são desafios que uma entidade dê conta sozinha, mas sim uma rede. Trabalhar de forma colaborativa não é fácil, mas vamos mais longe, mesmo que mais devagar”, conclui Gabriella Bighetti.

Fonte: R7

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