Elas parecem estar em toda parte. São pessoas de diversas idades, dormindo sobre papelão ou diretamente no chão, sem teto, debaixo de pontes ou em parques com seus pertences em sacolas plásticas como símbolo de suas vidas em movimento.
Muitos chegaram às ruas recentemente, vítimas da prosperidade que nos últimos anos transformou muitas cidades da costa oeste dos Estados Unidos.
Enquanto as autoridades tentam responder a essa crescente crise, alguns dizem que o mais provável é que a situação piore.
O jornalista da BBC Hugo Bachega visitou a vibrante cidade de Portland, a maior de Oregon, no noroeste dos Estados Unidos e uma das que estão vivendo o problema.
“É uma cidade de clima agradável, cultura rica e pensamento progressista”, conta Bachega.
“É também um núcleo de inovação, parte do chamado Silicon Forest (Floresta do Silício, em tradução literal) – apelido dado ao grupo de empresas de alta tecnologia localizadas na área metropolitana de Portland – e os novos residentes se mudaram para lá nos anos pós-crise, atraídos pelas empresas de alta tecnologia e seus trabalhos bem remunerados”.
“Mas a bonança não chegou para todos”, acrescenta o jornalista.
Como era de se esperar.
Escassez de moradia
O que aconteceu em Portland é uma história que se repete em várias cidades dos Estados Unidos, incluindo Nova York, Los Angeles e São Francisco.
A crescente demanda em uma área com falta de moradias rapidamente elevou o custo de vida e aqueles que estavam financeiramente no limite perderam a capacidade que tinham de pagar um lugar para viver.
Muitos foram resgatados por familiares e amigos ou programas governamentais e organizações de ajuda. Outros, no entanto, acabaram na rua. Os mais sortudos encontraram lugar em abrigos públicos. Não poucos estão agora em barracas de acampamento e veículos nas ruas.
“Mesmo que a economia esteja mais forte do que nunca”, disse o prefeito de Portland, Ted Wheeler, do Partido Democrata, “a desigualdade está crescendo a um ritmo alarmante e os benefícios de uma economia em crescimento se concentram cada vez mais em menos mãos”.
Muitos especialistas acreditam que é “uma bomba-relógio” nas ruas americanas que pode explodir para as autoridades, já que o problema está aumentando. “Temos mais desigualdade nos Estados Unidos, e isso, sem dúvida, tem impacto sobre as pessoas”.
O número de moradores de rua aumentou em outras cidades prósperas da costa oeste do país, geralmente locais de destino para trabalhadores jovens com alto nível de qualificação, como São Francisco e Seattle – onde a culpa também tem sido atribuída aos preços em alta e aos despejos.
Os números exatos são sempre difíceis de serem estabelecidos, mas 553.742 pessoas estavam sem moradia em uma mesma noite nos Estados Unidos em 2017, segundo o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano.
Foi a primeira alta em sete anos. O número, no entanto, ainda foi 13% inferior ao de 2010, graças ao declínio registrado em 30 estados – uma queda ofuscada pelos altos aumentos no resto dos EUA, com Califórnia, Oregon e Washington entre os piores estados.
Los Angeles, onde a situação é descrita como um fenômeno sem precedentes e crescente, tem mais de 50 mil pessoas desabrigadas, logo atrás de Nova York, com cerca de 75 mil pessoas.
Acampamento para quem não tem teto
Joseph Gordon, um homem transgênero conhecido como Tequila, vive em um acampamento para pessoas desabrigadas chamado Hazelnut Grove e fundado em 2015, quando Portland declarou pela primeira vez estado de emergência devido à crise dos sem-teto.
“É muito assustador. As pessoas que conheço têm origens de vida muito diferentes, e a população de rua só cresce”, diz à BBC o homem de 37 anos.
“Estando na rua você lida com todos os tipos de situações, como ter que relaxar convivendo com ratos. Você também começa a apreciar a água corrente ou o fato de poder ir ao banheiro sempre que quiser”, conta Tequila. As pessoas normalmente pensam que ele é mexicano pela cor de sua pele e seu apelido, em referência à famosa bebida do México.
Os idosos e as minorias têm sido desproporcionalmente afetados pelo problema de falta de moradias, segundo um estudo da Universidade de Portland, que prevê que a tecnologia pode ter como consequência o corte de milhares de empregos de salários baixos, provavelmente piorando as coisas.
Fartos dos vizinhos
A presença dos desabrigados em Portland e outras cidades americanas com o mesmo problema é mais visível do que nunca.
Os moradores se queixam cada vez mais de cheiro de urina, fezes humanas e objetos abandonados que se acumulam em espaços públicos, às vezes em suas próprias escadas.
Em alguns lugares, há uma sensação de que é uma batalha que está sendo perdida.
Mas essa é uma crise que vem se construindo há muito tempo.
Os cortes do governo federal em programas habitacionais acessíveis e instalações para saúde mental nas últimas décadas fizeram com que muitas pessoas acabassem nas ruas dos Estados Unidos, segundo autoridades e provedores de serviços, enquanto os governos locais têm se mostrando incapazes de preenche a lacuna.
Relatório devastador das Nações Unidas
O acadêmico australiano Philip Alston, relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e os direitos humanos, viajou pelos Estados Unidos por duas semanas em dezembro do ano passado.
Sua missão incluiu visitas a Los Angeles e São Francisco, que resultou em um relatório contundente no qual diz que “o sonho americano” está se tornando rapidamente, para muitos, a “ilusão americana”.
O governo do presidente Donald Trump criticou duramente as conclusões dele.
E o futuro, advertiu Alston em uma entrevista, não parece promissor.
“As políticas do atual governo federal estão focadas em cortar, ao máximo possível, os subsídios para moradia. E acredito que o pior ainda está por vir.”
Outros países ricos também tiveram que enfrentar o problema dos sem-teto, em tempos em que os mais vulneráveis sofrem o ônus das políticas de austeridade, os preços em alta e o desemprego. Mas na maior parte da Europa, por exemplo, ainda existe uma “rede robusta do sistema de assistência social” para ajudar aqueles que estão em risco, disse Alston.
“Em suma, se você está na Europa, você tem acesso a cuidados básicos de saúde e reabilitação psicológica e física, o que contrasta fortemente com os Estados Unidos.”
De volta a Hazelnut Grove, Tequila, que encontrou um trabalho de meio período, pede doações para comprar papel higiênico, sacos de lixo e xampu.
Ele está reunindo documentos para se inscrever em um programa local de moradias econômicas, mas não espera se mudar do acampamento em que vive tão rápido.
“Ter uma grande população de pessoas sem teto não é um bom sinal, especialmente quando se vive no país mais rico do mundo”, disse Tequila em entrevista à BBC. “Há muito pouca esperança. É uma situação extrema”.