Durante a tramitação do projeto de “reforma” da legislação trabalhista na Câmara e no Senado, o argumento básico de seus defensores é de que as mudanças eram necessárias para que o mercado voltasse a criar empregos, porque a legislação seria um “empecilho” à expansão de vagas. Isso apesar de crescimento em período recente, inclusive com com postos de trabalho com carteira assinada. Um livro lançado agora, escrito coletivamente, disseca os efeitos da Lei 13.467: Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidades, organizado pelos professores José Dari Krein, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Véras de Oliveira, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Vítor Araújo Filgueiras, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
O livro é resultado de seminário realizado em novembro do ano passado, em Brasília. Representa a primeira publicação da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir), formada por professores e pesquisadores em 2017. Os autores defendem uma “racionalização” do debate. “Nesse sentido, se há qualquer expectativa ou pretensão de avanço civilizatório na sociedade em que vivemos, é necessária alguma espécie de compromisso crítico de ideias entre os diferentes segmentos sociais, que permita um diálogo contraditório, mas construtivo”, argumentam.
Com o que chama de “eufemismo da modernização”, o professor Roberto Véras identifica um movimento de “retorno a um padrão de relações do trabalho similar em vários aspectos ao que vigia em geral antes da introdução, nos anos 1940, das formas modernas de regulação”. Ou seja, para um período pré-CLT. “Sobretudo, a direção das medidas aponta para a desconstrução de um sistema de proteção social associado ao contrato de trabalho”, que avançou no Brasil, embora nunca tenha alcançado o nível de países desenvolvidos.
As promessas estão longe de se realizar, acrescenta o pesquisador: a taxa de desemprego total, que inclui sub-utilização da força de trabalho, aumentou, assim como a informalidade, a remuneração mostra tendência de queda e se interrompeu a tendência de redução das jornadas de trabalho. Ele e Vítor Filgueiras destacam um movimento de “polarização” das jornadas, com mais gente trabalhando acima de 49 horas por semanas ou menos de 14 horas.
No caso de entregadores que usam bicicletas por exemplo, o que já se vê são jornadas acima de 10 horas por dia, para uma remuneração mensal abaixo de um salário mínimo. Essas e outras situações decorrem, entre outros fatores, da desregulação, na medida em que a reforma “legitimou” modalidades de contratação, e da maior dificuldade de acesso dos trabalhadores à Justiça, o que dá mais liberdade às empresas.
Filgueiras considera absurdo dizer que a reforma não surtiu efeito por causa da crise. “A reforma foi apresentada para solucionar a crise! Ela foi vendida dessa forma para a população, a sociedade toda foi martelada com a ideia de que a reforma trabalhista resolveria a crise para o mercado de trabalho. Então, era o remédio para a doença. Como é que você está dizendo que a doença matou o remédio?” Outra “desculpa esfarrapada”, afirma, é que não houve tempo para que os efeitos aparecessem. “A estratégia é retórica, típica do neoliberalismo. Qual o tempo necessário, 200 anos? Qual é o limite de tempo, qual é limite de destruição?”
Como os autores do livro lembram, a chamada reforma trabalhista foi aprovada sob a garantia da criação de milhões de empregos, como fosse a solução para os problemas do mercado de trabalho. Com isso, o Senado não alterou o texto, para evitar retorno do projeto à Câmara, e o governo Temer editou medida provisória que nunca foi votada. Passados dois anos, qual é o cenário?
Roberto Véras – Pode-se dizer, basicamente, que as promessas que acompanharam a aprovação da reforma estão muito distante de se concretizarem. Ao contrário, a taxa de desemprego total (que é resultado do somatório do desemprego aberto, da sub-ocupação por insuficiência de horas trabalhadas e da força de trabalho potencial, onde se inclui o desemprego por desalento) cresceu desde então. A informalidade continuou crescendo. A remuneração dos trabalhadores tem apresentado tendência de queda. Ocorreu uma inflexão na tendência de redução da jornada média, observada desde os anos 2000, ao tempo em que se verifica uma expressiva polarização das jornadas, com incremento da faixa de trabalhadores que trabalham mais de 49 horas por semana e daqueles com menos de 14 horas; ocorreu, ainda, uma drástica queda no acesso dos trabalhadores à Justiça, comprometendo ainda mais a efetividade dos direitos previstos; os instrumentos de negociação coletiva, convenções e acordos, caiu no referido período. De modo geral, os efeitos prometidos não foram cumpridos.
O leve recuo da taxa de desemprego, em divulgação recente, é motivo para comemoração?
Roberto Véras – Absolutamente, não. A elevação das taxas de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas e de força de trabalho potencial (constituída por pessoas que gostariam de trabalhar, mas não puderam ou desistiram de procurar no período da pesquisa) supera em muito a leve queda do desemprego aberto na comparação entre trimestres iguais. Na soma das três taxas que compõem o desemprego total (denominado pelo IBGE de subutilização da força de trabalho) houve um crescimento expressivo. A taxa de subutilização é um indicador bem mais eficaz para medir a falta efetiva de trabalho do que a do desemprego aberto, ao mesmo tempo em que ganha ainda mais importância após a Reforma, visto que crescem as formas de desemprego oculto (subocupação), pois mais pessoas tentam sobreviver com bicos e não são enquadrados no desemprego aberto. A subutilização da força de trabalho passou, em outubro de 2017, de 26,554 milhões (23,8%) para 27,250 milhões (24,1%), em outubro de 2018. No trimestre finalizado em maio de 2018, eram 27,458 milhões (24,6%), contingente incrementando em cerca de 1 milhão de pessoas um ano depois.
Considere-se, ainda, que na comparação dos 12 meses após a reforma (para evitar efeitos sazonais) com os anos anteriores, nota-se que a criação de empregos formais foi inferior a todos os anos após 1998, com exceção do período da última crise (2015-2017). Isso inclui anos como 2003, cujo incremento do PIB foi igual ao de 2018 (1,1%), e 2009, que teve queda de 0,1%. Comparado com 2014, ano de quase estagnação (0,5%), os 12 meses após a reforma perdem em termos absolutos e empatam em percentual (porque a base é menor).
Vítor Filgueiras – O que tem ocorrido e é importante enfatizar, é uma leve queda da desocupação do desemprego aberto. Muito leve. Realmente, tem acontecido quando você compara com outros períodos de anos anteriores. No Brasil, tem efeito sazonal muito grande o mercado de trabalho. Começa no primeiro trimestre mais alto, nos subsequentes cai.
Desde antes da reforma, após um pico no primeiro trimestre de 2017, tem havido uma queda bem leve da desocupação aberta, quando você compara trimestre com trimestre do ano anterior. Todavia, esse indicador é muito limitado. O indicador principal é desemprego total, que na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) aparece como subutilização da força de trabalho. Inclui a sub-ocupação por trabalho precário ou a subutilização de horas. São aquelas pessoas que estão fazendo bicos. Estão auferindo alguma renda, mas não estão empregadas de fato. Pessoas que está se virando, no comércio de rua. A força de trabalho potencial, que inclui o desalento, pessoas que desistiram de trabalhar ou procurar emprego, não têm dinheiro para pegar uma condução e procurar emprego. Enfim, pessoas que gostariam de trabalhar, mas estão fora da força de trabalho por alguma razão. Quando você junta desocupação com essas duas formas de desemprego oculto, que dá o desemprego total, isso tem crescido. Isso é muito importante e tem que ser enfatizado.
Coincidentemente, ou não, uma nova reforma, a da Previdência, também é apresentada como solução. Será?
Roberto Véras – Ao que tudo indica, trata-se de um novo engodo. Basta ver a nota do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – IE/Unicamp, divulgada na semana passada (https://www.eco.unicamp.br/images/destaque/A-Falsificacao-nas-Contas-Oficiais-da-Reforma-da-Previdencia-Nota-CECON8.pdf). O Cecon, ao auditar os cálculos oficiais do Ministério da Economia sobre a reforma da Previdência, até então em sigilo, através da Lei de Acesso à Informações (LAI), encontrou indícios de manipulação dos dados, resultando em aumento artificial do custo fiscal das aposentadorias atuais para justificar o projeto do governo. Os propósitos são os mesmos: retirar direitos dos trabalhadores e favorecer, por essa via, os ganhos empresariais imediatos.
A CLT sempre apareceu como alvo dos empresários, tida como empecilho para o crescimento econômico e a criação de empregos. O discurso foi encampado pelo governo anterior e o atual. É justo chamar a CLT de vilã? Não houve crescimento do emprego, inclusive formal, em período recente, sob essas mesmas regras?
Vítor Filgueiras – Essa ideia de que a CLT é vilã na criação de emprego é um clássico no discurso liberaloide. Isso não é exclusivo no Brasil, está radicado profundamente na ciência econômica há mais de 100 anos. A ideia dos caras é de que existe uma contradição entre custo de trabalho (Direito do Trabalho, salários) e emprego. Construção teórica extremamente limitada, porque parte do pressuposto de que o trabalho é uma mercadoria qualquer, como se fosse banana ou abacate, sobe preço, desce preço, as pessoas compram mais ou menos. Na verdade, a força de trabalho é comprada quando o empregador precisa. Se não houver expansão da demanda pelo produto que o empregador vende, ele não vai contratar ninguém. Então, reduzir os custos trabalhistas não apenas não é uma solução porque não atinge a demanda pelo produto, como pelo contrário. É isso que a gente tem visto, o consumo e a demanda agregada não aumentando. Quando você atinge a CLT, os salários, enfim, quando você reduz o custo do trabalho reduzindo o poder de compra dos trabalhadores, você prejudica a demanda agregada da economia como um todo. Você retira o elemento-chave que explica a decisão da contratação, que é a expansão da demanda. Não por acaso, a quase totalidade dos postos de trabalho que têm surgido são formas precaríssimas de contratação, vinculadas a estratégias de sobrevivência, especialmente trabalho autônomo e os bicos.
Na década de 90, esse discurso foi muito forte. De fato, o custo do trabalho caiu, os salários caíram, o desemprego aumentou brutalmente. E na década de 2000, especialmente após 2004, até 2014, os salários subiram ano a ano, de forma quase ininterrupta. Muitas pesquisas relacionam a redução do desemprego com a ampliação dos salários, particularmente do salário mínimo. Mas também dos salários médios, que aumentaram tanto no trabalho informal quanto no formal, quando você pega tanto Rais (Relação Anual de Informações Sociais) como o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) e a Pnad. Várias pesquisas indicam que isso incentivou o consumo e, consequentemente, o investimento e a ampliação dos próprios empregos, cria-se um círculo virtuoso. É isso que no Brasil o aumento do rendimento do trabalho tende a fazer, por conta de questões estruturais da nossa economia, que potencializam esses efeitos. Nossa economia depende muito do mercado interno. Cresce o salário, cresce a demanda, tende a crescer o investimento.
Por outro lado, isso tem a ver também com a característica do nosso empresariado, que investe muito pouco. É extremamente reativo, no sentido de que não quer correr risco nenhum, quer ganhar só no mole. Você pega a série histórica das Contas Nacionais (PIB), você percebe que a Formação Bruta de Capital Fixo, uma taxa de investimento, é historicamente baixa. Ela cresce justamente nos momentos em que a demanda se amplia, não por conta da iniciativa dos empresários, mas por aumento de gastos do Estado. Ou, nesse caso, na última década, particularmente pelo aumento do próprio rendimento do trabalho. Então, quando puxa a demanda, os empresários posteriormente se sentem impelidos a aumentar o investimento A história da reforma é que isso aconteceria de forma inversa: você liberaria recursos para os empresários, com a redução dos custos do trabalho, e os empresários investiriam. Mas isso não funciona assim, em particular num país com a características do Brasil, que depende muito do mercado interno e que tem empresários que são extremamente reativos.
Os defensores das medidas argumentam que a reforma trabalhista não teve efeito por causa da crise econômica. Faz sentido?
Vítor Filgueiras – Na verdade, são dois subterfúgios. Uma que a reforma foi prejudicada pelo crescimento econômico, por isso não fez muito efeito e outra, que não deu tempo para ver os resultados. Por que são duas desculpas esfarrapadas, que não fazem sentido? Com relação à ideia da crise, é absurdo falar isso porque a reforma foi apresentada para solucionar a crise! Ela foi vendida dessa forma para a população, a sociedade toda foi martelada com a ideia de que a reforma trabalhista resolveria a crise para o mercado de trabalho. Então, era o remédio para a doença. Como é que você está dizendo que a doença matou o remédio? É porque o remédio não servia, não funcionou, não era adequado.
Quanto à ideia de que houve pouco tempo, também é absurda, ela já tem produzido os efeitos que deveria produzir. São dois anos, ela vai completar dois anos em vigência. Houve uma queda brutal do acesso à Justiça pelos trabalhadores. Ela produziu (impacto). São bilhões de reais que as empresas estão economizando e tendem a economizar cada vez mais, com a restrição do acesso à Justiça. A grande ironia é que isso aconteceu quando a ilegalidade aumentou: sonegação do FGTS, acidentes de trabalho e particularmente informalidade. A história de que os trabalhadores queriam ganhar sem ter direito é mentira.
Outra coisa que a reforma já produz efeitos claros: as negociações coletivas, o enfraquecimento dos sindicatos. Os reajustes são cada vez piores. Essa ideia de que a reforma não tem produzido efeitos não cabe. São dois anos produzindo os efeitos que pode produzir. É importante ressaltar também que essa ideia impede a discussão, a estratégia é retórica, típica do neoliberalismo, é dizer que nunca deu tempo. Poderia fazer a mesma pergunta em 10 anos. Qual o tempo necessário, 200 anos? Ou, o que também estão fazendo agora, (dizer que) tem que fazer mais, tem que aprofundar mais. Qual é o limite de tempo, qual é limite de destruição? Aí você destrói, destrói, destrói, e vai dizer que fatores alheios à sua vontade… Qual o tempo? É o infinito.
O sr. vê alguma possibilidade de recuperação do mercado de trabalho com essa nova legislação, ou a tendência é de expansão da informalidade?
Roberto Véras – A promessa de formalização e combate ao desemprego por meio de novas modalidades de contratação, entre elas o trabalho intermitente e o trabalho por tempo parcial, não adquiriu, pelo menos até o momento, os volumes desejados e propalados pelos defensores da reforma. De outra parte, conforme as condições que as regem e as evidências por nós demonstradas, sua implementação rebaixa direitos e precariza as condições de trabalho. Um dos argumentos em defesa da aprovação da reforma trabalhista foi o de que as novas modalidades de contratação seriam um incentivo à formalização. Em primeiro lugar, com tão baixa incidência não se tem comprovada tal hipótese, sobretudo com a informalidade se mantendo em tendência de alta. Em segundo, se vierem com o tempo a se tornar uma expressiva forma de contratação, pelas características que lhes são pertinentes, certamente redundarão em modalidades de formalização mais precárias. Mas, até o momento, em um contexto de crise econômica, a opção principal tem sido a utilização da informalidade/ilegalidade.
A alegada insegurança jurídica sobre a interpretação das novas modalidades não pode ser evocada, pois a contratação à margem da lei evidencia que a estratégia é buscar a forma mais barata para viabilizar o negócio, sem considerar as consequências da condição dos direitos e da proteção social de quem trabalha. A persistência da informalidade é, provavelmente, a “alternativa” à implementação das modalidades de contratos inspiradas nos processos internacionais de flexibilização e precarização das relações de trabalho.
Em casos como o Brasil, os empregadores não estão se vendo, como alternativas de contrato de trabalho, tão somente entre (antigas) formas de “trabalho típico” e (novas) modalidades de “trabalho atípico”, que em avançando estas últimas substituem um padrão de formalidade por outro mais rebaixado em termos de direitos laborais. Ao invés, veem-se diante de uma opção “mais vantajosa” (em sentido estritamente egoística): entre lançar mão das inovações contratuais (“atípicas”) e continuar se utilizando largamente do trabalho informal (com a convicção reforçada pelo contexto atual de que não haverá fiscalização e punição para a burla na aplicação da legislação trabalhista).
Pesquisas citadas no livro apontam mudança da tendência de redução da jornada. As pessoas estão trabalhando mais?
Vítor Filgueiras – O que a reforma fez? Várias mudanças no sentido da precarização do trabalho já estavam em voga. A reforma legitima esses processos. Dentre outros, queda dos rendimentos de quem têm carteira assinada, dos autônomos. Tem caído, quando você compara sem a sazonalidade, mês a mês. As jornadas de trabalho, a sua questão, têm se polarizado de forma muito forte, e isso tem relação com as formas de contratação. A tendência de queda da jornada média deixa de acontecer. Não há crescimento das pessoas que trabalham na jornada normal, 40, 44 horas, mas há um crescimento brutal, muito importante, é uma coisa bem assustadora, das pessoas que trabalham menos de 14 horas e das que trabalham mais de 49 horas. E a reforma tem relação direta com isso, por motivos óbvios, por conta do incentivo ao trabalho intermitente, tanto legal como ilegal, porque a ilegalidade tem seu risco muito diminuído. Os empregadores se sentem empoderados para adotar modalidades ilegais de contratação e eventualmente atribuir à reforma a adoção dessa ilegalidade. Então, por exemplo, você contrata um garçom que supostamente se enquadraria como intermitente, sem ser, se por acaso ele for à Justiça, o que dificilmente vai acontecer, você vai dizer que era intermitente. Então, há um incentivo direto à utilização dessas modalidades, de jornadas ultra-flexíveis, sendo formais ou informais. O incentivo é mais forte ainda à informalidade, porque você tem essa guarida da restrição ao acesso à Justiça e do enfraquecimento dos sindicatos, que poderia ser uma via de regulação. Por outro lado, você tem crescimento do trabalho com jornadas acima dos limites legais, aí sem nenhuma dúvida, a ampliação da ideia de trabalho autônomo está explícita na reforma. E dos PJs. Quando você contrata dessa forma, em tese você não tem de observar nenhuma norma de proteção, nenhum limite. São formas de contratação em geral extremamente precárias.
Isso tem também alguma relação com a contratação de pessoal por meio de aplicativos? A falta de proteção e as jornadas mais extensas não podem resultar em maior incidência de doenças relacionadas ao trabalho?
Vítor Filgueiras – Particularmente, esse trabalho autônomo sem PJ, entre aspas, aplicativos, que na verdade são empresas… Empresas de aplicativos? De transporte. Que usam aplicativos para gerir a força de trabalho, seja o Uber, sejam trabalhadores que entregam de bicicleta, de moto. Tem pesquisas já que indicam que essas pessoas, por exemplo, trabalhadores que entregam com bicicleta trabalham em média mais de 10 horas por dia, todos os dias, e no final do mês recebem menos de um salário mínimo. Então, tem relação direta com a reforma. Não é a única causa, mas (serve) para legitimar esse tipo de contratação, a empresa tem segurança. Elas vão dizer que agora a legislação trabalhista permite. Também se espalha porque o desemprego continua altíssimo, então as pessoas se submetem mais facilmente. Então, redução dos rendimentos, polarização das jornadas… Saúde e segurança a mesma coisa, o que tende a acontecer é uma ocultação cada vez maior dos acidentes. Uma reportagem (mostra que) na cidade de São Paulo e seus entornos foram assassinados quatro Ubers nas últimas semanas. Não é considerado acidente de trabalho, porque o cara não é empregado, não tem comunicação de acidente de trabalho.
Ah, tem um dado muito interessante, que não aparece no livro: o número de trabalhadores ciclistas e motociclistas em relação ao percentual de mortos no trânsito cresceu brutalmente no ano passado. É óbvio que isso está associados à expansão dos aplicativos. Os aplicativos, por óbvio, impõem prazos, condições metas, para a entrega, faz com que as pessoas se exponham cada vez mais a riscos no trânsito.
Outro argumento recorrente trata do estímulo à negociação coletiva, ao entendimento direto entre as partes. Isso aconteceu, considerando que as representações sindicais foram enfraquecidas?
Roberto Véras – Ao contrário, houve uma redução de 16% no total de instrumentos de contratação coletiva. Ainda mais conflitante com os argumentos pró-reforma é o fato de que a queda foi maior no número de acordos coletivos (realizados pelos sindicatos com as empresas, individualmente), do que no número de convenções (firmadas entre sindicatos e representantes patronais dos setores econômicos), sendo de -16,7%, no primeiro caso, e de -12%, no segundo. Assim, a Reforma não só não tem estimulado a negociação coletiva, como não tem estimulado a sua descentralização. Tal argumento era por si só contraditório com medidas incluídas na Reforma com o fim evidente de enfraquecer a organização sindical, a exemplo do fim do imposto sindical e da queda da obrigatoriedade da intermediação sindical na homologação das rescisões contratuais.
A propósito, o governo acaba de constituir um grupo de “altos estudos” para apresentar novas propostas, possivelmente alterando o princípio da unicidade sindical. Quais podem ser as consequências?
Roberto Véras – A reforma aprovada no Brasil, sob forte lobby empresarial, visou atender o propósito básico da flexibilização da regulação do trabalho, de modo a propiciar aos empresários o maior discricionarismo possível na contratação e uso da força de trabalho. Sobretudo, visou despadronizar e flexibilizar a jornada de trabalho, as formas de contratação e as formas de remuneração do trabalho, além de fragilizar a atuação pública na fiscalização das normas reguladoras da relação de emprego, aí incluídos os órgãos de fiscalização, os sindicatos e a Justiça do Trabalho, entre outras medidas. Pela natureza do atual governo e o perfil do denominado “Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet)”, o que se espera é o aprofundamento das tendências acima indicadas.
Pode-se dizer que, de alguma maneira, as mudanças implementadas até aqui fizeram o país recuar em termos civilizatórios?
Roberto Véras – Com certeza, sim. Os novos impulsos de flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho dos últimos anos, tendo a reforma trabalhista como carro-chefe, são sistematicamente defendidos, nos discursos empresarial, midiático e governamental, sob o eufemismo da “modernização”, sob o argumento de que é preciso atualizar um modelo há muito obsoleto de regulação do trabalho. Contudo, trata-se, esse, de um movimento que aponta, indisfarçadamente, para um retorno a um padrão de relações de trabalho similar em vários aspectos ao que vigia em geral antes da introdução, nos anos 1940, das formas modernas de regulação, simbolizada pela CLT. Sobretudo, a direção das medidas aponta para a desconstrução de um sistema de proteção social associado ao contrato de trabalho, o qual no Brasil, embora jamais tenha alcançado o patamar dos países desenvolvidos, deu passos importantes, especialmente com o aparato sócio-laboral varguista (CLT, salário mínimo, Justiça do Trabalho, Ministério do Trabalho, legalização dos sindicatos etc.) e os ganhos sociais da Constituição de 1988 (em particular produzindo a constitucionalização de direitos sociais e laborais).
Fonte: Rede Brasil Atual