“Essa aluna chegou bem atrasada. Ela bateu na porta da sala de aula, eu abri e notei que ela não estava bem, mas não consegui entender o porquê. Passei álcool na mão dela e senti a mão muito gelada, num dia em que não estava frio para justificar.”
“Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei e chamei ela à minha mesa. Ela veio e eu perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não.”
“Fui pegar algo para ela na minha mochila — porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou em sala de aula.”
O relato é de uma professora da rede municipal do Rio de Janeiro. A aluna tem 8 anos, é negra e estuda em uma escola localizada em um complexo de favelas na Zona Norte carioca. O episódio aconteceu em setembro deste ano.
“Eu fiquei realmente sensibilizada por essa situação”, conta a professora. “Por que é isso: a fome. Uma fome que a criança não sabe expressar a urgência. E que envolve muitas vezes a vergonha. Para ela é algo humilhante, por isso ela não consegue expressar.”
O caso ocorrido na escola do Rio de Janeiro não é isolado. Professores da rede pública de todo o Brasil relatam episódios semelhantes, num momento em que o país soma 13,7 milhões de desempregados e a inflação de alimentos consumidos em domicílio acumula alta de mais de 13% em 12 meses, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo estudo da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar grave — como é chamada a fome na linguagem técnica — atingia 15% dos domicílios brasileiros em dezembro de 2020. Esse percentual chegava a 20,6% nos lares com crianças e jovens de 5 a 17 anos.
Os professores ouvidos pela BBC News Brasil relatam que os alunos com fome sofrem com perda de motivação e apresentam episódios de agressividade com colegas e educadores.
Na volta às aulas presenciais, após o período de ensino à distância forçado pela pandemia, os estudantes enfrentam os efeitos da perda de emprego e renda dos pais e do falecimento de avós que muitas vezes sustentavam a família com suas aposentadorias.
Conforme os professores, jovens estão abandonando os estudos para trabalhar e ajudar suas famílias na geração de renda e crianças moradoras de favelas estão, em alguns casos, mudando para regiões ainda mais precárias das comunidades, devido ao custo do aluguel.
Nesse cenário de crise social que bate à porta das escolas, os educadores fazem o que podem, organizando coletas de alimentos e direcionando as crianças e famílias que estão passando por necessidade à rede pública de assistência social.
“Procuro manter meu coração sempre firme, não cair em desespero”, diz uma professora de língua portuguesa na rede estadual do Paraná, com quase 30 anos de profissão.
“A gente respira fundo e vai fazer campanha para cesta básica, para coleta de alimentos, para mantê-los em sala de aula. Eu me sinto às vezes cansada, mas me sinto na obrigação de me manter firme e fazer algo por essas crianças, para que eles sintam que podem contar conosco, que não seremos mais um a abandoná-los.”
A BBC News Brasil optou por manter todos os entrevistados anônimos, como uma forma de preservar a privacidade das crianças citadas em seus relatos.