Opinião | A carteira ou a vida?

Juiz Jorge Luiz Souto Maior

A reiterada fala do Presidente da República, explicitamente direcionada aos trabalhadores, no sentido de que compete ao trabalhador escolher entre “menos direitos e emprego” e “todos os direitos e desemprego”, me fez lembrar de dois fatos.

O primeiro, que se passou em uma audiência trabalhista. As partes, de um lado, um reclamante, desempregado, que havia sido dispensado há três meses e ainda não tinha recebido as verbas rescisórias, e, do outro, uma reclamada, uma empresa em pleno funcionamento da região, negociavam um acordo.

O reclamante pleiteava o recebimento de cerca de R$5.000,00, que não atingia sequer o montante total das verbas rescisórias, sem multas e correção monetária da data do não pagamento até aquele dia. A reclamada, por sua vez, se posicionava firme, oferecendo não mais que R$3.000,00.

Dizia a reclamada: “São R$3.000,00, em três parcelas, e nenhum real a mais. E veja, se não aceitar, o processo pode demorar anos. São R$3.000,00 agora ou R$5.000,00 sabe-se lá quando. É pegar ou largar.”

Percebendo a estratégia da reclamada e o fato de que a demora do processo servia como chantagem para que o reclamante renunciasse aos seus direitos, proferi decisão de natureza antecipatória, vez que se cuidava de crédito de natureza alimentar sobre o qual não pendia nenhuma controvérsia quanto à titularidade, determinando que a reclamada pagasse ao reclamante a totalidade do valor das verbas rescisórias, com multas, juros e correção monetária, no prazo de 24 horas, sob pena de R$500,00 por dia de atraso, mas ressalvei que poderiam continuar conversando sobre a possibilidade do acordo.

O advogado da reclamada voltou-se para mim em tom quase de revolta e disse: “Mas não dá para negociar assim!”

Ao que respondi: “Eu só retirei o peso da demora do processo das costas do reclamante”.

O segundo diz respeito a uma história que me foi contada, recentemente, por uma amiga. Ela contou que havia sido assaltada, com os assaltantes entrando dentro do seu carro e pedindo para que ela dirigisse até um local afastado, onde eles poderiam pegar o carro e todo o dinheiro que ela possuía. E assim se fez. Ela dirigiu o veículo até uma rua distante, mas durante o percurso, até para afastar o nervosismo ela começou a conversar com os dois sobre vários assuntos. Quando chegaram ao destino, os assaltantes, como anunciado, pegaram o carro, dinheiro e cartões que ela tinha, mas disseram: “Toma aí um dinheirinho para você voltar para casa. Você é bem legal!”

Pois bem. Quando se diz que cabe ao trabalhador escolher entre ter emprego sem direitos e ter direito mas não ter emprego, o que se está fazendo, na verdade, é negando qualquer possibilidade de escolha do trabalhador, ainda mais quando a fala, utilizada em tom de ameaça e chantagem, serve unicamente para que o governo faça a escolha no lugar do trabalhador.

O governante está escolhendo retirar direitos dos trabalhadores para facilitar a vida das empresas, o que, aliás, nem é uma preferência que se disfarça, pois o Presidente já disse mais de uma vez que se preocupa com os coitados dos empregadores no Brasil, ao mesmo tempo em que não se comove nem um pouco com o trabalho infantil, com a insegurança e a insalubridade do trabalho e com a miséria em geral.

Mas, claro, não se propõe uma revogação expressa de direitos. Como é afirmado, apenas se busca criar o permissivo jurídico para que empregadores e empregados “negociem” livremente as condições de trabalho, passando por cima dos limites legais. Mas o efeito concreto é o de possibilitar que empregadores profiram a seguinte fala: “Te ofereço um emprego, mas sem direitos. É pegar ou largar!”

De fato, não há um negócio jurídico válido nesses pressupostos. Do contrário, um assalto à mão armada também seria. Imaginemos o seguinte. Uma pessoa aponta uma arma para outra e diz: “A carteira ou a vida!” Aquela que foi ameaçada entrega a carteira. E alguém, analisando a situação a partir da lógica com que o Presidente vislumbra os direitos trabalhistas, dirá: “o que houve foi mera opção de entregar a carteira e o que se realizou entre ambos foi a expressão máxima da liberdade na formação de um negócio jurídico”.

Lembre-se de que os direitos trabalhistas estão consagrados na Constituição Federal tanto quanto está o direito de propriedade. Aliás, o exercício do direito de propriedade está limitado pelo respeito à sua função social e o Direito do Trabalho se estruturou com base no princípio da irrenunciabilidade.

Assim, sem considerar as questões históricas e ética certamente envolvidas, não se pode, de forma juridicamente válida, dizer aos trabalhadores: “É um trabalho sem direitos ou a vida”. E, em complemento, que: “Se aceitar (não perder a vida) e se for bonzinho, te darei um troquinho para você voltar para casa…”

Casa? Que casa?

Aliás, diante dessa proposição a pergunta mais adequada é: que país é esse?

Que país é esse em que se preconiza, como solução para a economia, o desrespeito à Constituição para negar aos cidadãos trabalhadores condições mínimas de trabalho e de cidadania, tais como: idade mínima para o trabalho; limitação da jornada de trabalho; salário-mínimo; descanso semanal; férias; descanso durante a jornada; proteção contra acidentes e doenças ocupacionais; garantias contra o desemprego etc?

​Que país é esse em que o Presidente da República, explícita e impunemente, diz que essa é a mensagem que quer transmitir diretamente aos trabalhadores e é aplaudido por alguns segmentos empresariais e até por muitos trabalhadores?

Um trabalho sem direitos, é bom que se diga expressamente, é um trabalho que pode ser realizado durante 14, 15, 16, 17 ou mais horas por dia; que pode ser exercido a partir de qualquer idade, sob qualquer remuneração ou mesmo remuneração alguma, sendo retribuído com utilidades ou quinquilharias; que, sem limitações e regramentos de proteção, mutila e mata.

A humanidade sofreu muito para superar esse falso dilema e assumiu compromissos expressos para que não fosse retomado. Colocar essa questão em debate, dentro dos marcos regulatórios do capitalismo, representa um retrocesso humano sem precedentes.

De fato, aqueles que dizem que a economia capitalista só pode funcionar assim, ou seja, sem garantir aos cidadãos condições dignas de vida, na verdade estão dizendo que o capitalismo é incompatível com a espécie humana, propondo, pois, que não discutamos mais os direitos e sim o modelo de sociedade.

Se não for esse o caso, então, ao menos que se respeite a promessa constitucional, fixada também em diversas Declarações da ONU e demais organismos internacionais, assim como se verificam nas 190 convenções da OIT, órgão que, inclusive, recentemente, em sua Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho, aprovada na 108ª reunião da entidade, realizada no mês de junho de 2019, em Genebra, reafirmou o princípio fundamental de toda relação capital-trabalho no mundo no sentido de que o trabalho humano não é mera mercadoria de comércio.

Diante do constante vaivém das falas do Presidente, já é até possível antever que venha a público para dizer que não foi bem isso o que disse ou pretendeu dizer.

Seja como for, é crucial que não mais se expresse neste sentido, porque, para além da agressão às milhões de vidas mundo afora que foram sacrificadas para que se chegasse à consagração dos direitos trabalhistas e da grande ofensa moral que se desfere contra quem já sofre com o desemprego, discriminações, assédios, ameaças, acidentes, trabalhos mal remunerados e direitos que, sob o mesmo falso argumento de aumentar o número de empregos e por meio de outras graves afrontas à Constituição, já foram bastante precarizados, a fala também representa um despeito explícito ao dever funcional de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis e promover o bem geral do povo brasileiro”, conforme expresso no termo de posse.

Na renitência, as instituições políticas e jurídicas, em regular funcionamento democrático, responsáveis pela defesa do Estado de Direito, estariam autorizadas, de forma, aí sim, legítima, a anunciar: “A Constituição ou o cargo!”

São Paulo, 25 de julho de 2019

Juiz Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002); coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital – GPTC; membro da Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e da Seguridade Social – RENAPEDTS; e Juiz do Trabalho (desde 1993), titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí/SP (desde 1998).

Fonte: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-carteira-ou-a-vida?fbclid=IwAR0IynPTuKKBxQ-CuaQsEKyoaYb1AKkM6aRKg7CSamMnkjP3nx07EJF-giM

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