Opinião | Antonio Neto e Arthur Silva – O Ministério do Trabalho e a Soberania Nacional

*Antonio Neto e **Arthur Silva

Quando indagado por um jornalista a respeito da “questão operária”, o último presidente da República Velha – Washington Luís – respondeu que ela era mais uma questão de ordem pública do que uma questão social. Trocando em miúdos, sua opinião era bastante clara: a questão social era caso de polícia. O coração da Revolução de 1930 foi o Ministério do Trabalho, chamado por Getúlio Vargas de “Ministério Revolucionário” e sua função foi justamente corporificar na estrutura do Estado a questão social. Um olhar detido na História Brasileira mostra que é impossível separar a questão social da questão nacional. Por isso, a extinção do Ministério do Trabalho não pode ser apartada do projeto de recolonização do Brasil perpetuado pelo governo de Bolsonaro.

Nascemos enquanto Nação como uma plataforma de produção de produtos tropicais para os grandes impérios marítimos da Europa. Nossos conquistadores portugueses eram oriundos de um pequeno reino despovoado, cuja independência era constantemente ameaçada pela ambição espanhola de dominar toda a península ibérica. Foi o açúcar e mais tarde o ouro produzido pelo Brasil que asseguraram a renda necessária para a manutenção da independência de Portugal, pagando as despesas de seu Estado moderno e de sua Marinha extremamente bem equipada. Como foi possível para esse pequena monarquia produzir o impressionante volume de produtos tropicais em um país continental do porte do Brasil? A resposta foi a escravidão negra e indígena.

Durante a colônia, no ciclo açucareiro, o núcleo mais dinâmico da economia brasileira estava na zona da mata no nordeste.  Como pouco era produzido no Brasil além dos produtos tropicais requeridos por nossa metrópole, o senhor de engenho, o capitão da indústria do açúcar, dependia da importação de maquinarias para o engenho, armas, escravos africanos e até mesmo o cal para a construção civil. Tudo era fornecido pelo mercador lusitano na forma de empréstimos, pagos posteriormente com melaço de cano. Assim eram os grilhões que mantinham o Brasil como Colônia do império lusitano. A escravidão indígena foi relativamente marginal no Brasil, florescendo nos rincões mais distantes do capital comercial dos mercadores portugueses. Contudo, desempenhou um papel central no desbravamento do território do Brasil Profundo e na descoberta do ouro em nosso país.

Na colônia e no Império, a questão social do Brasil esteve nas mãos da Igreja. Foram os Jesuítas que educaram os índios e os protegeram parcialmente da escravidão. A Igreja também procurava colocar limites na crueldade desenfreada da escravidão negra, como testemunham os Sermões do Padre Antônio Vieira. Do outro lado, a força dos quilombos como de Zumbi dos Palmares e da resistência indígena como os manauaras liderados por Ajuricaba impunham severas derrotas a sanha descontrolada dos colonizadores.

O capitalismo mundial atravessava profundas contradições no final do século XIX. Na Europa, a moderna maquinaria trouxe um nível civilizatório nunca antes visto na humanidade. Contudo, a tendência da maquinaria industrial cada vez mais sofisticada em poupar mão-de-obra fez com que o fantasma do desemprego assombrasse as grandes potências europeias. Sem conseguir escoar seus produtos no mercado interno cuja renda do trabalho estava sempre declinante, os grandes capitalistas se viram obrigados a usar seus Estados para criar vastos impérios globais para absorver essa oferta insaciável. Desse modo, a França abocanhou pedaços enormes do norte da África e do Sudeste Asiático, além de outras regiões, e o Império Britânico tornou-se tão colossal que o sol nunca se punha em seu imenso território.

O Brasil do final do Império não passou incólume por essas transformações. Era o auge do ciclo do café e mão-de-obra escrava já não era mais tão dinâmica. Aos poucos, foram substituídos pelos imigrantes expelidos da Europa pela industrialização. Os descendentes dos escravos se viram expulsos das terras que haviam enriquecido, sem indenização ou qualquer tipo de auxílio. A gritante questão social apareceu nos enfurecidos escritos dos abolicionistas que enxergaram a injustiça daquela época.

Impedir a industrialização do Brasil sempre foi um imperativo das potências imperialistas. Na colônia, Marquês de Pombal chegou a proibir a manufatura. Especializando-se em consumir manufaturados estrangeiros e exportar bens primários, o Brasil se viu preso em um ciclo vicioso, em que não conseguia criar mercado interno, pois nosso povo praticamente não tinha renda dado a escassez de trabalho industrial, ao mesmo tempo em que dependia crescentemente dos bens industrializados oriundos da Europa.

É nesse contexto de crise mundial e de crise no Brasil. que surge a Aliança Liberal capitaneada por Getúlio Vargas. Em seu famoso discurso na Esplanada do Castelo no Rio de Janeiro, Getúlio responde a Washington Luís dizendo que a questão social não era caso de polícia. Ao assumir a chefia do Governo Provisório após a vitória da Revolução de outubro de 1930, um de seus primeiros atos foi a criação do Ministério do Trabalho, apelidado de “Ministério Revolucionário”. Getúlio aprofunda e estende os direitos trabalhistas de algumas categorias duramente conquistados pelo movimento sindical na República Velha para a universalidade dos trabalhadores urbanos. Sua intenção era estendê-las também aos trabalhadores rurais em conjunto com a reforma agrária, mas a complexa conjuntura brasileira da época impediu que seu sonho se concretizasse.

Os sindicatos, severamente reprimidos na República Velha, passaram a contar com proteção do Estado para seu funcionamento. Lindolfo Collor, o primeiro Ministro do Trabalho, e o socialista Joaquim Pimenta, que havia sido militante sindical nos anos 20 em Pernambuco, lançaram as bases normativas do que viria a ser a estrutura sindical brasileira por quase 100 anos. Lá estavam a contribuição e a unicidade sindical, pedras angulares da coesão dos trabalhadores em suas lutas contra os patrões. A Justiça do Trabalho, na época com juízes classistas eleitos em parte pelos sindicatos, tornou-se o canal para efetivar as demandas da questão social no Brasil. Corporificava-se, assim, nas entranhas do Estado, o poder da classe trabalhadora organizada.

A legislação trabalhista foi o grande feito desse período. Se antes a exploração dos trabalhadores do Brasil era praticamente desenfreada, o povo brasileiro contava com limites em sua jornada de trabalho e férias remuneradas, universalmente garantidas a todos os trabalhadores urbanos. Nesse mesmo sentido, foram regulamentados o trabalho noturno e o trabalho feminino e proibido o trabalho infantil. A Lei do Salário Mínimo, talvez a maior conquista isoladamente considerada, garantia uma existência digna acima do patamar da miséria para o trabalhador brasileiro, ao mesmo tempo em que rompia com mais um grilhão da colonização do Brasil: criou-se um dinâmico mercado interno no país. O trabalhador com renda podia consumir os bens produzidos no país e o empresário interessado no desenvolvimento nacional encontrava demanda interna no Brasil, não mais contando somente com a via da exportação de bens primários para obter lucros. Quebrava-se um ciclo vicioso secular.

A instituição da Previdência Social a partir da gestão de Agamenon Magalhães no Ministério Revolucionário nos anos 30 universalizou para todos os trabalhadores urbanos o direito à aposentadoria, até então restrito a determinadas categorias. Também foram estabelecidas as indenizações pelos acidentes de trabalho. Mitigava-se, assim, a superexploração do trabalhador brasileiro, marca indelével de nossa condição colonial, que tinha que fornecer excedentes extraordinários para as potências imperialistas desde os tempos da escravidão.

Sem o desenvolvimento da indústria nacional, a legislação trabalhista e as conquistas do Ministério Revolucionário jamais teriam prosperado. Aproveitando-se da tempestuosa conjuntura internacional dos anos 30, Getúlio Vargas, por meio de uma genial política diplomática pendular, força os Estados Unidos a ceder tecnologia para o Brasil e os países europeus – sobretudo o Império Britânico – a abrir mão da posse sobre nossas mineradoras e ferrovias. Surgem assim a Companhia Vale do Rio Doce e Companhia Siderúrgica Nacional, as bases sobre as quais se edificará a cadeia industrial do Brasil.

Com a reorientação mundial da Guerra Fria, a independência do Brasil começou a ameaçar os interesses dos Estados Unidos para a América Latina. É assim que o império estadunidense, utilizando-se do aparato militar internacional montado na Segunda Guerra Mundial, patrocinou um golpe de Estado contra Getúlio Vargas em 1945 que contou com o apoio da elite agroexportadora conservadora. A estrutura sindical entendeu perfeitamente o que se passava naquele momento e apoiou o movimento “queremista”. Até mesmo proeminentes figuras que haviam sido oposição ao governo de Vargas como Luís Carlos Prestes passaram a apoiá-lo frente a restauração conservadora que se formava com o brigadeiro Eduardo Gomes. O vínculo que unia a questão nacional à questão social mostrava-se cristalino na luta sindical.

Em 1951, Getúlio Vargas volta ao poder nos braços do povo. É um período de forte industrialização do país com a criação de importantes alicerces da cadeia industrial brasileira como a Petrobras e a Eletrobras. No entanto, a contradição mais importante do Brasil, a dependência da importação de manufaturados, ainda estava lá. Em conjunto com a remessa de lucros pelas empresas transnacionais, essas válvulas de sucção das riquezas do povo brasileiro comprometiam nossa balança de pagamentos, o que levou à inflação. O movimento sindical constrói a greve dos 300 mil, alterando a correlação de forças e permitindo que o ministro do Trabalho à época – João Goulart – aumentasse o salário-mínimo em 100%. Durante todo o governo Dutra, o salário-mínimo não havia sido reajustado sequer uma vez. A medida foi vista como um desafio imediato ao FMI e outros organismos imperialistas que se sentiram ultrajados. Mais uma vez o Ministério do Trabalho protagonizou a luta pela soberania do país.

O governo radical, popular e nacionalista de Getúlio Vargas foi um desafio maior do que os interesses imperialistas podiam tolerar. Em conluio com os setores mais conservadores da elite brasileira, arma-se mais um golpe de Estado visando aniquilar os esteios da luta anti-imperialista. Por amor à nação, Getúlio tira sua vida e entra na história. O cerne da carta-testamento que Getúlio legou ao povo brasileiro é o vínculo que une a espoliação do país à espoliação do povo.

Sobre os alicerces industriais deixados por Vargas, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek expande a produção manufatureira do Brasil pela substituição de importações. A estrutura sindicalista brasileira cresce junto do sistema industrial brasileiro. No governo de João Goulart, o Ministério do Trabalho adquire uma importância ainda maior em razão da pressão inflacionária causada pela Remessa de Lucros cuja regulamentação havia custado a vida de Getúlio.  Os ajustes do salário-mínimo eram parte integral das Reformas de Base, que contemplavam a extensão dos direitos trabalhistas ao campo por meio do Estatuto do Trabalhador Rural. As Reformas atacavam o coração da condição colonial brasileira, defendendo a que o excedente econômico brasileiro permanecesse no país para a formação de meios de produção nacionais e combatendo a superexploração do trabalhador agrícola, fundamental para nossa manutenção como meros exportadores de commodities.

Mais uma vez a independência do Brasil incomodou os Estados Unidos que baixou sua pesada mão na forma de um golpe de Estado. Setores dos militares traíram o Brasil e se apossaram do poder por décadas. Entretanto, a estrutura combativa da classe trabalhadora deixada por Getúlio Vargas mostrou-se fundamental na dupla luta pela soberania nacional e pela questão social. As greves de Contagem e Osasco foram a expressão da batalha contra o arrocho salarial que visava engordar os lucros das transnacionais.

Na redemocratização, a estrutura do Ministério do Trabalho revelou-se fundamental na luta contra o moribundo regime militar. Com o retorno do fantasma da inflação ao país em razão da crise mundial do dólar nos anos 70, o Novo Sindicalismo foi o protagonista na mobilização pela recomposição dos salários, desidratados pela escalada de preços. Embora criticada, a unicidade e a contribuição sindical foram importantes instrumentos para a organização dos trabalhadores em um momento crucial de nossa história. Foram em parte graças a esses institutos que os trabalhadores puderam protagonizar a luta pelas Diretas Já.

Os anos 90 foram marcados pelo neoliberalismo e o consequente ataque ao Ministério do Trabalho. O fim dos juízes classistas foi um duro golpe desferido contra a Justiça do Trabalho. As greves foram fundamentais na luta contra as privatizações, com destaque para a mobilização dos petroleiros em 1994. No entanto, a desindustrialização a partir da abertura desenfreada da economia brasileira no governo Collor começou a minar o alicerce industrial do sindicalismo brasileiro.

Nos governos Lula e Dilma, a estrutura varguista do Ministério do Trabalho foi a coluna vertebral da mais importante conquista dos trabalhadores nesse período: a valorização do salário-mínimo acima da inflação. O aumento no poder de compra da classe trabalhadora foi central para a prosperidade econômica percebida nesses anos por causa do aquecimento do mercado interno. Contudo, como é uma constante em nossa história, a soberania econômica do Brasil – mesmo hesitante – foi suficiente para despertar a ira do império estadunidense, que patrocinou mais um golpe de Estado no Brasil.

O capitalismo mundial mais uma vez aproxima-se de uma grande encruzilhada. O modelo financista de acumulação esgotou-se e não há nenhuma solução a vista para os países de primeiro mundo. Por isso, há um recrudescimento do imperialismo na forma de guerras híbridas que objetivam destruir os alicerces da soberania econômica nos países de terceiro mundo. A tomada do petróleo nacional, a entrega da Embraer, o ataque judicial à tecnologia da construção civil brasileira, o ataque a nosso setor nuclear e a privatização criminosa de nossas riquezas nacionais são parte integrante do desespero dos países centrais. Sem o excedente econômico extraído dos Trabalhadores do Brasil, sua hegemonia periga perecer.

É nesse contexto que a Reforma Trabalhista, a Terceirização Irrestrita e a Destruição da Previdência surgem como expedientes para garantir que as riquezas geradas pelos Trabalhadores do Brasil sejam sugadas pelas perdas internacionais. O fim do Ministério do Trabalho – o Ministério Revolucionário – tem por objetivo desorganizar a classe trabalhadora, como ficou patente na extinção da contribuição sindical. Notícias veiculadas pela mídia apontam que o governo lesa-pátria de Bolsonaro tem agora a unicidade sindical na sua mira. Trata-se de um claro projeto de desmantelamento do órgão que corporifica a questão social no Estado brasileiro – mais uma vez revelando, tal como na Carta Testamento de Vargas, a indissociabilidade da questão social da questão nacional.

O modelo financista de valorização do capital imposto ao Brasil deixa um legado de destruição no tecido social brasileiro. A superexploração, isto é, a exploração do trabalho a um grau que não permite a reprodução social do trabalhador e sua família a um nível normal, voltou a crescer na forma de novas relações de trabalho irregulares. Os subocupados, trabalhadores que forçosamente desempenham atividade remunerada por menos do que 40 horas semanais, tiveram um salto de pouco mais de 4 milhões de brasileiros no final de 2015 para mais de 7 milhões no segundo trimestre de 2019[1]. Embora a taxa de desemprego apresente uma leve redução desde o pico de 13,1% no final de 2016 para 12% no segundo trimestre desse ano, os dados do Caged apontam que a maioria dos postos de trabalho foram criados na informalidade. No trimestre móvel encerrado em janeiro deste ano[2], a expansão da quantidade de trabalhadores ocupados por conta própria foi de 3,1% e os assalariados sem carteira assinada no setor privado aumentaram em 2,9%, enquanto os trabalhadores com carteira assinada no setor privado tiveram recuo de 1,1%. Além disso, dos postos de trabalho formal gerados entre abril de 2018 a janeiro de 2019, 23% foram em regime parcial ou intermitente. O desalento, a desistência do trabalhador em buscar emprego, explodiu de cerca de 1% da população em idade ativa para quase 3%, revelando o grau de desgaste do mercado de trabalho nacional.

A uberização dos trabalhadores do Brasil é a faceta mais moderna desse processo de desmantelamento de nossas instituições trabalhistas. Transnacionais conseguiram monopolizar até mesmo segmentos do mercado informal brasileiro por meio de aplicativos de celular, extraindo mais-valor de sujeitos travestidos de empresários que procuram valorizar a si mesmos como se fossem um capital autônomo, aumentando os acidentes de trabalho e de trânsito.

Esse retrocesso na estrutura do mercado de trabalho brasileiro não pode ser dissociado de um projeto de recolonização corporificado na desindustrialização do Brasil. Entre 1984 e 2018, a participação da indústria brasileira no PIB recuou de 27,3% para 11,3%[3]. Restaura-se o ciclo vicioso de dependência por manufaturados e diminuto mercado interno que havia mantido o Brasil em uma posição subordinada no mercado mundial antes da Era Vargas.

O Ministério do Trabalho – o Ministério Revolucionário de Vargas – é o vinculo que une a prosperidade do povo brasileiro com nossa emancipação enquanto Nação. Não é possível separar o esgarçamento do tecido social do Brasil e a correlata piora na qualidade de vida do nosso povo da recolonização de nosso país expressa na desindustrialização imposta pelo modelo financista de acumulação capitalista. É nesse sentido que o Projeto Nacional de Desenvolvimento proposto por Ciro Gomes é muito mais do que um programa de governo. Ele é o instrumento de autoconhecimento de um povo, diagnosticando os problemas da financeirização no Brasil e o grito rebelde dos Trabalhadores do Brasil clamando pela industrialização de nosso país. Precisamos voltar a pensar o Brasil estrategicamente.

[1] Esses dados foram extraídos da 43ª edição dos Cadernos de conjuntura do IPEA, disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/190618_cc_43_mercado_de_trabalho.pdf

[2] Dados do Caderno de Conjuntura do IPEA nº 42, disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/190320_cc_42_mercado_de_trabalho.pdf

[3] https://valoradicionado.wordpress.com/2019/02/28/desindustrializacao-segue-intensa-em-2018/

*Presidente da Central dos Sindicatos Brasileiro (CSB) e do Diretório Municipal do PDT de São Paulo;

**Coordenador do Tutor Trabalhista do PDT de São Paulo e graduado em Ciência Sociais pela FFLCH/USP;

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