Entre os direitos de Vargas e a “liberdade” de Musk: onde estaremos daqui cinco anos?

POR JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO

Coube à CSB, na recente audiência pública no STF, levantar a questão da suposta autonomia dos trabalhadores por aplicativo, tão propagandeada pelo exibido e atrevido deputado Nikolas Ferreira – que se tornou celebridade nacional quando discursou na tribuna da Câmara envergando uma peruca loira, o que dá a medida de sua absoluta falta de seriedade para discutir qualquer problema de interesse coletivo e de importância para o país.

Segundo Nikolas, o PT e o governo querem “tomar o dinheiro do trabalhador” quando propõem um mínimo de proteção legal a esse trabalho. Ele fala como se um garoto entregador de pizza pudesse ter como futuro a perspectiva de tornar-se um novo Elon Musk – escondendo que Elon Musk e a grande maioria dos bilionários, e mesmo milionários de segunda classe, já nasceu em berço de ouro, em famílias de muito dinheiro, e começou a vida com uma boa grana fornecida pelo papai ou por um “Tio Patinhas”.

Essa onda começou com a Uber e no início não assumia tal pretensão. Era apenas uma oportunidade de ganho extra para quem tinha carro e se dispunha a trabalhar com ele nas horas de folga para faturar uns trocados.
Logo se viu que a coisa não era assim tão simples. As empresas provedoras dos aplicativos só prestavam o serviço em troca de uma comissão gorda embutida no preço da corrida.

Os sindicatos de taxistas se mobilizaram contra a Uber. O de Brasília chegou a investigar se de fato o bilionário Bill Gates, então a estrela das listas das revistas Forbes e Fortune, era quem ficava com a fatia mais gorda do faturamento da Uber.

Em pouco tempo já se falava internacionalmente em uberização da economia. Além do serviço de transporte de passageiros, a Uber e os outros aplicativos que foram aparecendo já ofereciam serviços, por exemplo, de entrega a domicílio de comida, de farmácia e até o pet-taxi, que leva o animal de estimação da família à tosa e banho e ao veterinário.

A ideia da autonomia foi se consolidando aos poucos e era um subterfúgio para esconder a falta de proteção geral que tais relações de trabalho implicavam. Falta de proteção trabalhista, de cobertura previdenciária e de assistência médica – o que só agora começa a ser discutido seriamente.

Em entrevista no fim do ano passado ao jornalista Reinaldo Azevedo e ao advogado Walfrido Warde, a presidente do PT, Gleisi Hoffman, reconheceu que o partido e o governo ainda não se envolveram suficientemente a fundo nessa questão e que o futuro desses trabalhadores e seu envelhecimento é assustador.

Poucos deles vão tomar a iniciativa de entrar no sistema previdenciário e começar a contribuir espontaneamente para uma futura aposentadoria. E não terão o complemento da contribuição pago pelo empregador dos trabalhadores com carteira de trabalho anotada.

Além disso, os ganhos do suposto autônomo são tão pequenos que nada sobra para contribuir com a previdência ou para formar uma poupança.

Terceirização, nome anterior da tal autonomia

Décadas antes da “autonomia” e da uberização, o mundo foi iludido por outra palavra mágica: terceirização, que foi apenas o novo subterfúgio para a fraude trabalhista que agora é a mesma e apenas tem outro nome e outra promessa ilusória.

Foi o início da década de 1990, quando os Estados Unidos respiraram um pouco, depois dos 12 anos da Era Reagan/Bush pai e elegeram Bill Clinton, e o Brasil era surpreendido pelo caos do governo Collor.

A terceirização surgiu como um propulsor da vida empresarial e de um desenvolvimento que, em tese, beneficiaria também os trabalhadores, já privados do poder anterior de seus sindicatos, destruído pelo neoliberalismo de Reagan e Margaret Thatcher.

Não tinha sentido grandes empresas e mesmo as pequenas manterem serviços próprios de atividades-meio, como limpeza e segurança, indispensáveis, mas que nada tinham a ver com suas atividades-fim.

Mas a terceirização avançou e logo estava atingindo atividades-fim, às vezes com situações de perigo para os trabalhadores terceirizados. O caso mais trágico, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi o da Petrobrás.

Quando uma plataforma de produção afundou em alto mar, com mortos e feridos, o Ministério Público do Trabalho descobriu facilmente que algumas das vítimas e muitos sobreviventes eram empregados de uma empresa terceirizada, e tinham menos treinamento, menores salários e maior jornada de trabalho que os dos operadores de carreira, com longa experiência, da Petrobrás.

Para não ser condenada na Justiça, a Petrobrás foi obrigada a assinar um termo de reajustamento de conduta, comprometendo-se a acabar com essa terceirização. Mas o prestígio internacional da Petrobrás, frequentemente premiada pela excelência de seus padrões e índices de segurança operacional ficou abalado por muito tempo, causando inclusive prejuízos financeiros, pelo encarecimento dos seguros que ela era obrigada a ter e pela desvalorização de suas ações no mercado de capitais.

Só essas consequências financeiras já eram suficientes para demonstrar a insensatez dessa terceirização, que já vinha sendo denunciada como um artifício para burlar e fraudar a legislação trabalhista e os acordos coletivos com os sindicatos.

Desregulamentação e privatizações

Mas o golpe mais mortal contra os trabalhadores aconteceu antes e foi a abertura de oportunidades para tudo isso. Foi a onda da desregulamentação e das privatizações iniciadas com os governos Thatcher na Inglaterra (1979) e Reagan nos Estados Unidos (1981), depois de tentada experimentalmente na ditadura do general Pinochet no Chile (1973).

Os avanços da tecnologia dos computadores, ao possibilitarem a globalização da economia, é que tornaram também possíveis sua financeirização e a concentração de renda que hoje permitem um fenômeno indecente como a fortuna de um Elon Musk e eleição de um Donald Trump.

O pretexto foi a burocracia e a corrupção dos governos. Mas os verdadeiros objetivos dessa onda eram baratear os custos de produção à custa dos trabalhadores, como acontece há milênios nos modelos econômicos que se baseiam na exploração do homem pelo homem.

No Brasil, a fase atual da “autonomia” acontece quando faltam só cinco anos para o centenário da revolução de 1930, que transformou o país de uma economia agrária e atrasada numa das maiores economias industriais do mundo. E, no curso essa mudança, dotou o Brasil de uma das mais modernas legislações trabalhistas já adotadas em qualquer país.

Antes de 30, o Brasil vivia aquele absurdo que o escritor francês Anatole France definiu como o sagrado direito do milionário e do mendigo, de jantarem no hotel Ritz, com seu luxo e sua cozinha sofisticada e vinhos raros, e depois dormirem embaixo da ponte. Hoje o poder econômico no mundo opera como se seu maior objetivo fosse realizar esse sagrado direito.

*José Augusto Ribeiro é jornalista e escritor. Já foi editor, diretor de redação e comentarista político em diversos veículos como Correio da Manhã, O Globo e Rede Bandeirantes. Também foi assessor do Ministério do Trabalho durante o governo João Goulart, quando participou da campanha de sindicalização rural. Na época, foram criados e reconhecidos cerca de 1500 sindicatos de trabalhadores rurais em menos de um ano.


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