Enchentes no RS: “A catástrofe gaúcha e seus refugiados climáticos”

Por Tania Regina Maciel Antunes e Pedro Ivo de Souza Batista

O ano de 2024 desafia a humanidade à reflexão sobre a relação do homem e suas ações com a natureza.

Estudos científicos apontam que a última década foi a mais quente do planeta. As queimadas, a exploração predatória, a mineração desenfreada, o desmatamento, a queima de combustíveis fosseis, entre outros, são elementos que contribuem para o aquecimento global e a ocorrência de eventos climáticos severos. O aumento sucessivo e ininterrupto das emissões de gases de efeito estufa tem acelerado esse processo.

No recente período diversos eventos climáticos extremos ocorreram pelo mundo, como o avassalador terremoto em setembro de 2023 que atingiu Marrocos alcançando 6,8 graus(escala) onde mais de 2.100 pessoas perderam a vida e 2.421 ficaram feridas, a catastrófica enchente em setembro de 2023 na Líbia resultando na morte de mais de 6 mil pessoas e 10mil desaparecidos, o terremoto em fevereiro de 2023 que atingiu a Turquia e a Síria culminando na morte de mais de 50 mil vidas e milhares de pessoas feridas, inundações recordes em Hong Kong, incêndios no Havaí, entre outros eventos de menor dimensão, mas que igualmente deixaram um rastro de destruição e desafios humanitários anunciando um período de reação da natureza ao comportamento humano.

No mesmo ínterim, em setembro de 2023, no Brasil, assistíamos impactados a morte de dezenas de botos na Amazônia, afetados pelo calor e no outro canto, acompanhávamos incrédulos a enchente que atingia 106 municípios impactando fortemente o vale do Taquari no Rio Grande do Sul (RS) pelo enorme número de pessoas afetadas e cidades inteiramente devastadas.

Oito meses depois, o Rio Grande do Sul é vítima de uma nova enchente, apesar de alertas, como o do primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, elaborado por 345 cientistas datado de 2013. Esta tragédia em curso deixa um rastro de devastação sem precedentes e, sem dúvidas, é um evento climático extremo da maior magnitude e repercussão já enfrentado pelo Estado, pelo país e possivelmente pela América Latina.

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Mais de 84% dos municípios são fortemente atingidos pelas enchentes de maio de 2024. Algumas cidades atingidas pela terceira vez (setembro e novembro de 2023 e maio de 2024), algumas delas inteiramente submersas e completamente devastadas. O saldo de destruição é incalculável, as autoridades informam que são 146 vidas perdidas, mais de 600 mil desalojados, 125 desaparecidas e 756 pessoas feridas até este momento.

É importante destacar que a ausência do Estado e a falta de política pública sistêmica, ambiental e preventiva, aliado a negligência em relação aos estudos e recomendações previamente apresentados pelos órgãos competentes, como o Plano de Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE-RS) finalizado em 2019 pela Secretaria de Meio ambiente do Estado do RS (SEMA), o arquivamento do Plano de Prevenção de Desastres elaborado em 2017 a pedido do próprio governo e o não cumprimento da implantação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos previsto na constituição Estadual do RS colaborou para que a catástrofe ambiental alcançasse patamares inimagináveis e por consequência resultasse no colapso social, econômico e ambiental que resultaram na morte prematura de centenas de pessoas em franca violação aos direitos humanos e forçarão milhares de gaúchos a migrarem para outras regiões, porque não haverá mais condições socioambientais de permanecerem morando nos seus locais de origem.

A vida é um direito fundamental universalmente reconhecido, entretanto, somente no Rio Grande do Sul, tivemos como resultado dos últimos três eventos climáticos, até o momento, aproximadamente 200 óbitos. Estamos vivendo uma espécie de “genocídio ambiental”, onde comunidades ribeirinhas, quilombolas, povos originários e periféricos, são mais gravemente atingidos pela enchente avassaladora. Obviamente, não se desconhece que outras comunidades melhor estruturadas, também, foram fortemente atingidas.

As pessoas que enfrentam desastres ambientais, normalmente perdem os meios de subsistência e muitos são obrigadas a deixar suas cidades, sua história, suas relações e vínculos pessoais e mudarem para outras regiões e até mesmo de país, em virtude dos eventos climáticos que colocam suas vidas em risco ou afetam drasticamente a sua condição de sobrevivência.

Os impactos provocados pelos eventos climáticos extremos, vai muito além, ameaçando a segurança alimentar e hídrica das comunidades atingidas e interferindo no próprio desenvolvimento econômico e social. Comprometem direitos básicos como saneamento, moradia, saúde e educação atentando contra a dignidade das pessoas e violando a concretização de Direitos Humanos constitucionalmente previstos. Afetam, também, o setor de serviços com a extinção de empregos, o aniquilamento de industrias e comércio comprometendo a sustentabilidade da região.

As enchentes assim como a seca ou a interrupção de eventos climáticos sazonais são algumas das causas da migração em razão do clima, que conformam uma nova categoria, a população de refugiados climáticos.

A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima definida na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Rio 92), o Protocolo de Kyoto de 1997, a III Conferência Nacional de Meio Ambiente sobre Mudança Climática de 2008, promovida pelo governo brasileiro, entre outras iniciativas, já propuseram medidas para o enfrentamento do aquecimento global, além da Agenda 2030, contudo, as medidas ainda não surtiram efeito positivo capaz de estancar ou atenuar os efeitos climáticos.

Em 2025 ocorrerá a 30ª conferência preparatória à COP30 em Belém do Pará- Brasil. Será uma oportunidade para que a comunidade brasileira, cientistas, pesquisadores, gestores públicos e a comunidade internacional, sem prejuízo de soluções de médio prazo, discutam proposições e iniciativas imediatas para conter o aquecimento global, e o momento de debater políticas e normas de acolhimento e proteção das pessoas enquanto sujeitos de direito humanos albergados pela Declaração Universal de Direitos Humanos.

Urge um novo pensamento. Vontade política, investimento do poder público, acompanhamento e regulamentação pelos Estados Nação e pelos organismos Internacionais para de modo articulado frear esta situação, com foco na preservação do meio ambiente e proteção das pessoas, dos refugiados climáticos com a preparação destas comunidades para a adequação das mudanças decorrentes dos eventos climáticos.

As mudanças ambientais produzem repercussões de dimensão proeminente sobre a vida humana constituindo-se, entre outros fatores, em uma emergência de saúde das mais urgentes. As pessoas que sobrevivem a um desastre ambiental, uma catástrofe climática, saem absolutamente destruídas desse ambiente, também, devastado. Saem adoecidas emocional e psicologicamente.

O tratamento dispensado aos atingidos pelos eventos climáticos e aos refugiados climáticos exige inovação, política de Estado para a atenção e cuidado das pessoas, e de responsabilização civil e criminal dos entes públicos que não observarem os diretrizes e recomendações de mitigação dos efeitos climáticos recomendados pelos órgãos competentes, sendo imprescindível que os organismos internacionais editem instrumentos de regulação, que auxiliem na implementação de medidas de proteção.

Tania Regina Maciel Antunes, Conselheira Estadual de Direitos Humanos (CEDH/RS), Conselheira Estadual da OAB/RS e Secretária Nacional, de Formação da ADJC.

Pedro Ivo de Souza Batista, Presidente da Associação Alternativa Terrazul, membro da Coordenação Nacional do FBOMS (Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente), Conselheiro do Conama e Conselho Nacional de Participação Social da Presidência da República.

Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

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