Samuel Marques sai às 9h do Capão Redondo para chegar ao trabalho, na Vila Olímpia, por volta das 10h. Vai de bicicleta, com uma caixa térmica de 45 litros nas costas e a meta de só voltar pra casa depois de colocar no bolso R$ 50 com entregas para os aplicativos em que está cadastrado: Rappi, iFood e Uber Eats.
“A gente não descansa”, diz o rapaz, que trabalha pelo menos 12 horas por dia e sete dias por semana. Ganha cerca de R$ 1 mil por mês com a jornada, já descontados os gastos com alimentação e um ou outro imprevisto do caminho, como um pneu furado. “Não me lembro da minha última folga desde que comecei a trabalhar com isso, um ano atrás. Toda as vezes que sento para assistir à televisão em casa, penso que poderia estar pedalando e fazendo algum dinheiro”, afirmou.
Samuel Marques é um entre os cerca de 30 mil entregadores ciclistas cadastrados nos aplicativos somente na capital paulista. O número dá a dimensão de uma atividade que, há um ano, passava quase despercebida em São Paulo. Hoje, os ciclistas com caixas nas costas tomam as paisagens dos centros comerciais nas horas de pico da fome – das 12h às 15h e das 19h às 22h -, além de serem presença constante em calçadas próximas a shopping centers, restaurantes ou supermercados nos fins de semana.
De 18 a 27 anos
Um perfil desse trabalhador foi traçado em junho pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), coordenado pelo instituto Multiplicidade e apoiado pelo Laboratório de Mobilidade Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após entrevistas com 270 ciclistas em São Paulo, o levantamento concluiu que 75% desses profissionais têm idade entre 18 e 27 anos e, como Samuel Marques, pedalam cerca de 12 horas por um salário médio mensal de R$ 936. Realizam diariamente dez entregas, a R$ 5 cada. Seis em cada dez ciclistas trabalham todos os dias da semana, sem folgas.
Apenas o iFood comentou a pesquisa. A startup tem dados diferentes sobre jornada e folgas. Levantamento da empresa aponta que os ciclistas ficam disponíveis para as entregas dentro da plataforma por, no máximo, dois dias consecutivos e que trabalham, em média, 8 dias do mês. “A maioria dos parceiros pedala cerca de 10 km por dia durante o período de entregas”, disse a companhia, em nota.
Para Daniel Guth, diretor executivo da Aliança Bike, as divergências nos dados ocorrem em função de os ciclistas prestarem serviços para várias empresas de aplicativo. “O ciclista não trabalha só para uma companhia”, diz. “Um trabalhador pode muito bem pegar entregas do iFood em dois dias da semana e trabalhar para o Uber Eats e para o Rappi nos outros dias. Ou pode ser tudo isso no mesmo dia.”
Picos de consumo
Para Guth, mais do que a distância pedalada, o desafio hoje de quem faz entregas com uma bicicleta nas ruas da cidade diz respeito à alta concentração dos pedidos. Segundo ele, isso gera uma falha de mercado: os ciclistas ficam parados por um período muito longo, por conta da baixa demanda fora dos horários de pico.
O serviço, segundo os aplicativos, está dividido basicamente em dois momentos – na hora do almoço e na do jantar. Os pedidos estão distribuídos em um raio de até 3 quilômetros entre o restaurante e o cliente. “Como o ciclista mora longe, ele não pode voltar para casa depois do almoço para retomar o trabalho na parte da noite. Acaba ficando o dia inteiro à espera dos pedidos”, diz Guth.
Nas ruas, principalmente perto de shoppings e hipermercados, é fácil encontrar grupos com cinco a dez entregadores de bicicleta. “Das 15h às 19h a gente geralmente não faz quase nada, só esperando e conversando”, afirma Erick Carlos Abrão, de 19 anos. No último dia 5, ele estava na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, a 44,6 quilômetros de sua casa, no município de Itaquaquecetuba. “Não dá para voltar pra Itaquá. Eu saio pedalando antes do almoço e passo o dia na rua, esperando dar o horário das entregas da noite”, disse.
Esse é o primeiro emprego de Erick Abrão. Ao completar 18 anos, ele começou a procurar trabalho. “Peguei a (carteira de) reservista no ano passado e fui tentar um emprego.” Visitou fábricas, lojas do centro e cadastrou seu currículo em sites de agências de emprego. “Só consegui umas entrevistas”, diz ele, que pegou sua bicicleta no começo de setembro e se cadastrou para as entregas via aplicativos. Quando encontrou a reportagem, estava há uma semana no serviço. O plano, diz, é guardar dinheiro para prestar vestibular nos próximos anos. “Quero fazer engenharia civil.”
Poucas chances
Dados do segundo trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, mostram que a faixa etária de 18 a 27 anos é a que mais vem sofrendo com a falta de trabalho no Brasil. O desemprego atinge 5,15 milhões de brasileiros desse perfil (22,5%) – quase um a cada quatro. A proporção é 10,5 pontos porcentuais maior do que a da população economicamente ativa entre todas as idades. Há cinco anos, essa diferença era de seis pontos porcentuais.
Os dados da Pnad indicam que entre os 17,7 milhões de pessoas entre 18 e 27 anos que se dizem empregadas, 7,3 milhões deles vivem de bicos ou sem a carteira assinada.
“Uma parte desses entregadores são os jovens que tentam ingressar no mercado de trabalho desde 2014, mas enfrentam dificuldades com a crise”, afirmou o economista Eduardo Zylberstajn, do departamento de pesquisa e inovação da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). “Uma crise tão prolongada deixa cicatrizes, e o desemprego entre os jovens talvez seja a maior delas.”
Zylberstajn disse que os aplicativos não podem ser apontados como responsáveis pela precarização de trabalho. “É o que gera ocupação hoje em dia”, disse. Ele não é o único a pensar dessa maneira. “Sempre haverá um tipo de trabalho para quem está nas franjas da economia. Esse seria o caso do emprego para os entregadores ciclistas”, afirmou Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Mas o que eu vejo acontecer é que, agora, com o desemprego e o avanço dos aplicativos, esse trabalho está avançando também para uma mão de obra de nível intermediária, que não está conseguindo se posicionar.”
Quando o motorista Ricardo de Oliveira, 44 anos, perdeu emprego no ano passado, ele procurou recolocação por seis meses. “Entre alugar um carro e ser Uber, resolvi pegar uma bicicleta e fazer entregas no centro”, disse ele, que está há três meses na atividade. “É um trabalho duro, mas a procura é alta.”
Bases
Oliveira é um dos líderes dos entregadores que se organizam no centro de São Paulo, na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Theatro Municipal. Apesar de as empresas investirem em espaços de descanso para os ciclistas, principalmente na região da Vila Olímpia, eles, por conta própria, definiram quatro pontos da cidade estrategicamente posicionados dentro de um raio de 3 quilômetros entre a demanda e a oferta. Toda distância superior força o algoritmo dos aplicativos a redirecionar a entrega para um motoboy.
As principais bases, além do centro, estão no Largo da Batata, em Pinheiros, na Praça Oswaldo Cruz, no início da Avenida Paulista, e na Rua Mariana Amorim Carrão, no Itaim Bibi. Essa rua é a mais concorrida da cidade – principalmente nos fins de semana.
‘Vampiros’
A rua foi inteiramente abraçada pelo Extra Itaim, que ocupa as laterais e os fundos. De longe, parece com a entrada do estacionamento do supermercado. Apelidada de “caverna”, a via virou ponto de apoio improvisado, com sofás e lâminas de papelão pelos cantos. Ali trabalham os “entregadores vampiros”, que dormem na rua durante o dia para passar a madrugada trabalhando. É comum os casos dos que chegam na rua na sexta-feira para voltarem para casa no fim do domingo.
Caio Lucas da Silva, 19 anos, e Samuel Marques, citado no início desta reportagem, são dois dos que costumam virar o fim de semana trabalhando e dormindo na “Caverna”. “A gente dorme na rua entre uma entrega e outra na madrugada”, diz Caio Silva. “O trabalho é assim. Mas é porque eu quero. Ligo e desligo o aplicativo a hora que quiser. Trabalho sem patrão.”
Crescimento
Nos últimos anos, os aplicativos de entrega têm chamado a atenção pelo rápido crescimento. A colombiana Rappi, que chegou ao Brasil em julho de 2017, diz que o faturamento de sua operação local cresce 30% ao mês. No fim de 2018, recebeu investimento de US$ 200 milhões do fundo DST Global, o que a colocou entre as “unicórnios” do mercado, nome dado às empresas de tecnologia avaliadas em mais de US$ 1 bilhão.
Além do Uber, que tem ações negociadas em Nova York, a brasileira Movile, dona do iFood, é outra que também recebeu, no ano passado, a alcunha de “unicórnio”. Segundo estudo do Itaú BBA, a busca por conveniência é o combustível do crescimento dos serviços de entrega. O cliente quer comida quente, e rápido – é exatamente o que os bikeboys se dispõem a oferecer.
Fonte: O Estado de São Paulo – Renato Jakitas e Tiago Queiroz
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