‘Resposta desdenhosa de Bolsonaro à doença custará caro ao Brasil’

Para Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do FMI, atitude do brasileiro fará o país ter perdas tanto em termos de vidas como de renda

A “resposta desdenhosa” do presidente Jair Bolsonaro à pandemia da covid-19 vai custar caro ao Brasil, tanto em termos de vidas como de renda, diz Maurice Obstfeld, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Com uma liderança apropriada, o Brasil claramente teria a capacidade de salvaguardar a saúde das pessoas, mas agora é uma área de alta incidência na América Latina. Isso não protege a economia – pelo contrário”, afirma ele.

Professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Obstfeld diz que a atitude de Bolsonaro pode levar a uma segunda onda de infecção ou a um confinamento mais severo à frente, por exemplo. “E as pessoas podem não ser capazes ou não ter vontade de participar integralmente da economia, se elas estiverem doentes ou temerem a infecção.” Na visão do americano, a economia brasileira pode encolher mais do que os 5,3% projetados neste ano pelo FMI por causa da resposta do presidente brasileiro à crise do coronavírus.

Obstfeld também critica a estratégia adotada nos EUA para o combate à doença. Para ele, o país não usou o período de confinamento com inteligência para desenvolver uma infraestrutura uniforme e coerente de amplitude nacional para testar e monitorar a disseminação do vírus, de modo que pessoas infectadas possam ser identificadas e isoladas. “E agora vários Estados estão sendo pressionados pelo presidente Donald Trump a reabrir [a economia] prematuramente, com motivação eleitoral. “Essa resposta precipitada aumenta a possibilidade de ressurgimento da doença e de uma perda econômica ainda maior”, diz Obstfeld.

Ao falar dos efeitos da pandemia sobre a economia global, Obstfeld afirma que não haverá recuperação rápida. “Não se pode consertar o desemprego e as falências tão rápido, mesmo se a resposta à doença for encontrada muito rapidamente”, avalia ele, economista-chefe do FMI entre 2015 e 2018.

Valor: Quais as principais implicações desta crise incomum para a economia global?

Maurice Obstfeld: Nós veremos contrações fortes do PIB em 2020 – possivelmente uma queda de 6% na América Latina – e um salto nas taxas de desemprego, com um ritmo de recuperação que tende a ser lento e dependente do avanço do controle e tratamento da covid-19. Países mais pobres vão ser duramente atingidos e, dentro dos países, a desigualdade entre ricos e pobres vai se acentuar.

Valor: O sr. acredita numa recuperação em “V” da economia global ou a atividade econômica mundial vai levar mais tempo para ganhar fôlego? Por quê?

Obstfeld: Nós não vamos ver uma recuperação em “V” – não se pode consertar o desemprego e as falências tão rápido, mesmo se a resposta à doença for encontrada muito rapidamente. Eu vejo um caminho longo para os níveis de atividade voltarem ao patamar do começo de 2020.

Valor: A China teve uma contração significativa do PIB no primeiro trimestre. O sr. acha que a China terá uma recuperação mais forte a partir do segundo trimestre ou a recessão nos EUA e na Europa vão contribuir para minar a retomada da economia chinesa?

Obstfeld: Há alguma reação na China, mas não suficiente para compensar totalmente o dano no curto prazo. E a doença terá efeitos negativos prolongados, devido à necessidade de medidas contínuas de prevenção e vigilância, até que tratamentos médicos efetivos sejam descobertos.

Valor: A crise atual terá principalmente efeitos transitórios ou o impacto será mais estrutural, afetando as cadeias globais de suprimentos e acelerando o processo de “desglobalização”?

Obstfeld: Pode haver alguns esforços para repatriar partes das cadeias de oferta. Acho que um ímpeto mas significativo em direção à “desglobalização” será o conflito de política econômica entre países, em parte o resultado do rancor de ações não cooperativas durante o confronto, em parte o resultado do jogo de culpados entre EUA e China, com os EUA pressionando terceiros países a escolher um lado. Nós talvez tenhamos perdido a chance de uma abordagem global verdadeiramente cooperativa para um problema mundial, e em vez disso enveredamos por um caminho que leva à fragmentação e ao conflito muito depois da covid-19 ter passado.

Valor: Como a crise atual se compara com a crise financeira global de 2008 e 2009? Qual é pior?

Obstfeld: Esta crise é claramente pior nos seus efeitos econômicos, e advém de uma causa diferente: a necessidade de retrair a atividade econômica para conter a disseminação do vírus. No entanto, esta crise tem efeitos potenciais de repercussão financeira similares aos que começaram a crise de 2008 e 2009, devido aos temores de calotes.

Valor: Como o sr. vê a resposta de bancos centrais e governos à crise? Eles ainda têm espaço para enfrentar a situação atual ou a munição está se esgotando?

Obstfeld: A capacidade dos bancos centrais de imprimir dinheiro é uma ferramenta-chave que permanece efetiva mesmo quando os juros básicos nominais estão no nível mais baixo. O Federal Reserve [Fed, o BC americano] está mostrando isso com intervenções que não têm precedentes em tamanho e escopo. Nas economias avançadas, dívidas públicas mais altas são sustentáveis desde que os bancos centrais mantenham baixos os juros nominais e evitem a deflação. Para as economias emergentes, a situação é menos favorável, uma vez que as expectativas de inflação podem estar menos ancoradas e a capacidade fiscal é menor. Os fluxos recentes de saída de capitais ilustram os desafios que os mercados emergentes enfrentam ao montar operações de apoio fiscais e monetárias em grande escala.

Valor: O sr. acha que imprimir dinheiro é uma resposta apropriada para a crise do coronavírus – e seria adequada para o Brasil, onde os juros estão baixos para padrões do país, mas continuam relativamente distantes de zero?

Obstfeld: As economias avançadas estão mais próximas do financiamento monetário de déficits fiscais do que já estiveram no pós-guerra. Mercados emergentes tendem a ver algum apoio monetário aos mercados de dívida do governo, levando a alguma inflação no fim do caminho.

Valor: Confinamentos rigorosos são a melhor estratégia para enfrentar a crise do coronavírus, tanto do ponto de vista de saúde pública quanto do econômico?

Obstfeld: Um confinamento temporário pode ser efetivo de um ponto de vista médico se o tempo é usado com inteligência para implementar testagem e monitoramento amplo, para que uma reabertura segura mais cedo seja possível. No entanto, como os pobres obviamente sofrem mais nesse cenário e podem também viver em condições que tornam o distanciamento social mais difícil, eles precisam especialmente de recursos médicos e financeiros. Esses problemas se tornam extremos em países mais pobres, onde o “lockdown” talvez não seja nem factível. Nesse caso, é fundamental investir pesadamente em saneamento e em ampla disponibilidade de tratamento médico.

Valor: Em que medida o atraso dos EUA em adotar uma quarentena mais severa afeta a economia do país neste ano?

Obstfeld: Os efeitos negativos já são evidentes nos EUA – o PIB pode cair 5% a 6% em 2020. Mas os EUA não usaram o período de confinamento com inteligência para desenvolver um infraestrutura uniforme e coerente de amplitude nacional para testar e monitorar a disseminação do vírus, de modo que pessoas infectadas possam ser identificadas e isoladas. E agora vários Estados estão sendo pressionados pelo presidente Donald Trump a reabrir [a economia] prematuramente, com a motivação sendo mais a vantagem eleitoral do que de saúde pública. Essa resposta precipitada aumenta a possibilidade de ressurgimento da doença e de uma perda econômica ainda maior.

Valor: O presidente Jair Bolsonaro é contra medidas de isolamento social, minimizando o risco da doença e afirmando que está preocupado com o impacto do confinamento sobre a e economia. Como o sr. avalia essa abordagem?

Obstfeld: A resposta desdenhosa do presidente Bolsonaro à doença vai custar caro ao Brasil, tanto em termos de vidas como de renda. Com uma liderança apropriada, o Brasil claramente teria a capacidade de salvaguardar a saúde das pessoas, mas agora é uma área de alta incidência na América Latina. Isso não protege a economia – pelo contrário.

Obstfeld: Porque pode levar a uma segunda onda de infecção ou a um confinamento mais severo, por exemplo. E as pessoas podem não ser capazes ou não ter vontade de participar integralmente da economia, se elas estiverem doentes ou temerem a infecção.

Valor: A economia brasileira pode sofrer mais que a de outros países por causa da atitude de Bolsonaro em relação às medidas de confinamento? E o FMI estima uma queda do PIB de 5% neste ano. O número pode ser pior por causa da resposta de Bolsonaro?

Obstfeld: Sim, para as duas questões.

Valor: O que o Brasil deve fazer para enfrentar a crise? Em que medida a dívida pública elevada é uma restrição do governo à crise?

Obstfeld: A precária posição fiscal do Brasil tem sido vista há muito tempo como uma vulnerabilidade – e agora nós vemos o custo de não se ter tomado medidas mais proativas. A falta de espaço nas contas públicas claramente vai afetar a eficácia da política fiscal. Ao mesmo tempo, a estabilidade social requer que o governo proteja os menos favorecidos, custe o que custar. Enfrentando condições financeiras globais, o resultado tende a ser um período de inflação mais alta. Para navegar nesse período, o governo vai ter que ser transparente sobre a sua estratégia e os “trade offs”, e comunicar de modo crível um plano para retornar à estabilidade de preços em não muito tempo.

Valor: Apesar da forte depreciação do câmbio neste ano, as estimativas de inflação no Brasil apontam para um IPCA abaixo da meta em 2020 e 2021, num cenário de contração da economia. O sr. acredita que a piora das condições financeiras globais e as vulnerabilidades fiscais brasileiras podem levar à inflação mais alta no Brasil?

Obstfeld: Acho que o Banco Central efetivamente vai ter que manter os juros baixos por um tempo, ajudando o governo a captar recursos, mas talvez levando à inflação mais alta.

Fonte: Valor Econômico

 

Compartilhe:

Leia mais
Assédio eleitoral trabalhador indenização
Assédio eleitoral: trabalhador demitido por negar apoio a Bolsonaro será indenizado
Lula precisa dar mais segurança aos trabalhadores
Governo Lula precisa honrar seus compromissos e dar mais segurança aos trabalhadores
Golpe internet indenização trabalhista
Justiça alerta para novo golpe sobre pagamento de indenizações trabalhistas
ataque israel líbano beirute 2024
Nota: centrais pedem diálogo pela paz em meio à escalada de conflitos pelo mundo
greve trabalhadores portos estados unidos
Presidente Biden apoia greve de portuários: "empresas devem dividir lucros recordes"
CSB inauguração sala darcy ribeiro puc sp
Com apoio da CSB, sala em homenagem a Darcy Ribeiro é inaugurada na PUC-SP
empregos na industria brasileira 2024
Criação de empregos na indústria cresce 83% em 2024, com 344 mil novos postos
diretoria eleita sindpd-sp
Justiça aponta mentiras de militantes da UP e confirma lisura da eleição do Sindpd-SP
Resolução CNJ veta questionamento acordos justiça do trabalho
CNJ veda questionamento de acordos homologados pela Justiça do Trabalho
Greve portuários EUA ILA union
Portuários dos EUA entram em greve pela 1ª vez em quase 50 anos e paralisam 36 portos