O trabalho sempre foi muito importante para o ser humano sobre diversos aspectos, sendo um instrumento imprescindível para sua existência e subsistência.
A escravidão nada mais foi do que um sistema de trabalho forçado e desumano em escala global. Ora, o escravo era – entre outras coisas – um trabalhador agrícola explorado, escravizado, que não possuía nenhum direito e trabalhava sob a imposição da brutalidade e da força do chicote. A subjugação de outros seres humanos – tratados como animais – teve motivação sobretudo econômica, é bom lembrar. A posterior abolição da escravatura libertou os escravos, mas o Brasil foi um dos últimos países a fazê-lo, o que mostra que por aqui, há um atraso no avanço das ideias progressistas em relação ao resto do planeta.
Na história da relação homem-trabalho, a Revolução Industrial é tida como um divisor de águas, impulsionando uma era de forte crescimento econômico das potências capitalistas, notadamente na Grã-Bretanha – hoje Reino Unido. Este período – séculos XVIII e XIX – foi marcado pela substituição do trabalho artesanal pelo assalariado e com o uso de máquinas. A mudança de paradigma trouxe grandes mudanças econômicas e sociais, pois poupava o tempo do trabalho e aumentava a produção de mercadorias, e consequentemente, fazia crescer o lucro dos empresários.
Outro aspecto que sofreu grande transformação é o fato de que no trabalho artesanal, as máquinas eram simples e o indivíduo participava de todas as etapas do processo produtivo. Com o processo revolucionário da criação da indústria, os trabalhadores perderam o controle deste processo, já que passaram apenas a controlar máquinas que pertenciam aos donos dos meios de produção. Isto não impediu, no entanto, que estes mesmos trabalhadores tivessem que enfrentar jornadas exaustivas – e abusivas – de trabalho em troca de uma remuneração que só os garantiria uma sobrevivência miserável.
Todo este contexto alterou profundamente a sociedade e criou as bases para o surgimento do Direito do Trabalho, inclusive. Filósofos, pensadores e políticos perceberam a necessidade de organizar as relações de trabalho para garantir que os trabalhadores tivessem acesso aos bens de consumo que produziam e, mais importante, uma remuneração justa que garantisse uma vida digna. Neste escopo, legislações trabalhistas foram surgindo na maioria dos países do mundo, industrializados ou não, criando regras, direitos e deveres em um processo construído ao longo dos séculos e a base de muito suor e sangue derramados. A criação dos sindicatos fez parte fundamental deste processo, e foi a luta sindical que conseguiu reduzir jornadas, aumentar salários e garantir um mínimo de dignidade para quem trabalha.
Os avanços tecnológicos ocorridos nas duas últimas décadas foram tão intensos que há autores e correntes de pensamento que falam na existência de uma quarta revolução tecnológica (ou quarta revolução industrial). Chegamos em 2023 e esse avanço explosivo da tecnologia trouxe consigo a modernização não das relações de trabalho, como argumentam os donos dos meios de produção, mas sim das formas de exploração, que desumanizam os trabalhadores e se consolidam como o maior desafio da raça humana 4.0, como gostam de dizer.
A verdade nua e crua é que não existem “novas formas de trabalho”, e sim novas formas de exploração do trabalhador. Por exemplo, o que aplicativos e empresas de ‘intermediação de mão-de-obra’ fazem, na verdade, é burlar a legislação trabalhista para potencializar os lucros de seus acionistas. Parece complicado, mas é simples assim. Um motorista de aplicativo, é um motorista. Um entregador, é um entregador. Essas profissões já existem há séculos e a única coisa “nova” que se constata é a supressão dos direitos trabalhistas destes homens e mulheres.
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Um exemplo simbólico deste processo é a Uber, aplicativo que alega ser um intermediário entre um consumidor – que precisa chegar a algum lugar -, e um trabalhador, um motorista em busca de uma renda, mesma que seja “extra”. Na prática, a empresa se esquiva de todas as obrigações trabalhistas que teria que cumprir para lucrar com a mão-de-obra alheia. Mesmo depois de muita propaganda, lobby e anúncios milionários em jornais e redes de televisão, o jogo parece estar mudando. A empresa – com sede na Califórnia, nos Estados Unidos – enfrenta uma série de ações judiciais pelo mundo, onde é acusada de burlar diversos padrões nacionais de proteção ao trabalho e evitar negociações coletivas com motoristas.
Na Suíça, a Uber foi derrotada na Suprema Corte do país europeu e agora precisa cumprir obrigações trabalhistas com os motoristas cadastrados no aplicativo, visto que a Justiça reconheceu o vínculo empregatício entre a empresa e os condutores. No Reino Unido, o Poder Judiciário definiu que motoristas da Uber são funcionários do aplicativo, e não trabalhadores autônomos, e que por isso, têm direito a salário-mínimo, aposentadoria e férias remuneradas. Na Espanha e até nos Estados Unidos, existem decisões judiciais das altas cortes no mesmo sentido.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), já em 2006, se mostrava atenta às alterações sociais decorrentes dos novos modelos de produção de bens e serviços, expediu a Recomendação nº 198 (Sobre Relações de Trabalho), cujo preâmbulo já anunciava sua preocupação com as “dificuldades em determinar a existência de uma relação de trabalho quando os respectivos direitos e obrigações dos interessados não são claros, quando se tenta encobrir a relação de trabalho, ou quando existem inadequações ou limitações na legislação, na sua interpretação ou em seu aplicativo”. O órgão internacional segue na discussão pela necessidade da regulamentação do trabalho via aplicativos e plataformas online.
No Brasil, após longas batalhas judiciais, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista e a Uber e determinou que os autos retornem à origem para que um juiz do trabalho analise os pedidos do trabalhador que ajuizou a ação contra a plataforma. Trata-se de um precedente inédito na Corte, datada de 6 de abril de 2022. A decisão se deu por maioria de votos, prevalecendo o entendimento do relator e ministro Maurício Godinho Delgado. Durante o voto favorável ao reconhecimento de vínculo empregatício entre o motorista e a Uber, Delgado foi enfático ao defender que é preciso algum tipo de proteção aos trabalhadores por aplicativos.
“(A) desregulamentação amplamente praticada por este sistema, gera uma inegável deterioração do trabalho humano, uma lancinante desigualdade no poder de negociação entre as partes, uma ausência de regras de higiene e saúde do trabalho, a falta de proteção contra acidentes ou doenças profissionais, a inexistência de quaisquer direitos individuais e sociais trabalhistas, a ausência de proteções sindicais e, se não bastasse, a recorrente exclusão previdenciária.”, diz trecho do voto do relator da matéria.
O ministro do TST entendeu que há elementos claros que configuram o vínculo empregatício entre a Uber e o motorista, como por exemplo, a subordinação, já que a plataforma determina ordens objetivas a serem cumpridas pelos motoristas. A Uber recorreu da decisão, tendo o seu recurso negado pelo tribunal. Em sua defesa, a empresa alega que há jurisprudência consistente sobre a relação entre a Uber e os parceiros, apontando a ausência dos quatro requisitos legais para existência de vínculo empregatício (onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação) em distintas instâncias da Justiça brasileira.
“Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima”, argumenta a plataforma.
Ninguém é contra – por si só – ao avanço tecnológico, que trouxe e traz enormes benefícios para a sociedade em geral. Existem aplicativos que otimizam e muito a vida das pessoas. São milhares de aplicativos que facilitam diversas atividades comerciais. Plataformas que conectam, por exemplo, um proprietário de um imóvel e uma família em busca de um lugar para morar por aluguel. Ou alguém que busca um lugar para passar suas merecidas férias. Compras de passagens, diversas atividades foram facilitadas pelo avanço pela tecnologia. A questão é quando o aplicativo, empresa ou plataforma, ‘intermedia’ a contratação de um ser humano, ou seja, de mão-de-obra, e lucra com essa prática sem arcar com suas responsabilidades trabalhistas.
O ministro do TST Maurício Godinho Delgado, em seu voto, evidencia de maneira cirúrgica as diferenças entre estes dois grandes grupos.
“De um lado, as empresas que são realmente disruptivas, uma vez que conseguem aproximar o consumidor final do fornecedor final do produto, sem a intermediação do trabalho humano organizado, tal como ocorre, por exemplo, com empresas como a AirBnB – Air, Bed and Breakfast -, a qual consegue compartilhar para os consumidores de qualquer lugar do planeta ofertas de vagas em apartamentos, casas e outras residências situadas em locais distantes da cidade ou do país do consumidor interessado. E esse compartilhamento é feito sem a necessidade da organização de um sistema de trabalho à base de profissionais intermediários entre a plataforma digital e o consumidor interessado. Do mesmo modo, isso se verifica com a empresa Booking.com, plataforma pela qual qualquer indivíduo, em qualquer lugar do planeta, pode efetivar, em qualquer lugar da terra, reservas em Hotéis, pousadas, etc. Nesses casos, existe, sim, um sistema empresarial disruptivo, o qual não passa pela utilização predatória do trabalho humano. Aqui se trata de empresas reais de compartilhamento.”
“…Por outro lado, o segundo grupo de empresas de plataformas digitais que se dizem partícipes da economia compartilhada (mas que nela não estão efetivamente integradas ou apenas parcialmente estão ali inseridas) ostentam estrutura, natureza e dinâmica sumamente distintas, uma vez que passam pela utilização intensiva do trabalho humano, sem respeitar regras civilizatórias trabalhistas, para conseguirem cumprir os seus objetivos empresariais. Trata-se, por ilustração, das empresas de transportes de pessoas e coisas, que necessitam, estruturalmente, do trabalho humano intensivo, mas que o querem utilizar sem cumprir as regras legais civilizatórias existentes em benefício dos seres humanos envolvidos nessa dinâmica de labor intensivo. É o caso dos autos, conforme claramente se percebe. Ora, aqui não se trata das lídimas empresas da economia de compartilhamento. Trata-se de sistemas empresariais digitais que, mediante sofisticado sistema de algoritmos, conseguem realizar uma intensiva utilização de mão de obra com o fito de alcançarem o objetivo empresarial de fornecerem transporte imediato a pessoas e coisas. E assim o fazem sem o cumprimento da ordem jurídica constitucional e legal trabalhista.”
O novo governo eleito e que tem um ex-sindicalista como maior liderança – agora presidente pela terceira vez – pretende apresentar uma proposta de regulamentação do trabalho por aplicativo ainda este ano. A medida foi anunciada pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, após um encontro que contou com a presença do próprio Lula, em março deste ano. O ministério está ouvindo trabalhadores, plataformas, especialistas e estuda até a legislação adotada em outros países para chegar a uma proposta que considere satisfatória. Caso possam contribuir para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), os trabalhadores de aplicativo teriam direito a benefícios como aposentadoria, pensão por morte, auxílio invalidez, entre outros.
“Do jeito que está hoje não dá para ficar (…) Há trabalhadores que atuam para dois ou três aplicativos diferentes. Vamos encontrar uma solução que assegure direitos.”, pontua Luiz Marinho. O presidente Lula é partidário do processo de regulamentação e tem sido incisivo quando opina sobre o tema. “As empresas de aplicativos exploraram os trabalhadores como em jamais outro momento da história os trabalhadores foram explorados. É preciso repensar as relações no trabalho e recuperar direitos e dignidade para trabalhadores”, defende o presidente brasileiro.
Os trabalhadores de aplicativos são, no frigir dos ovos, trabalhadores e possuem, portanto, direitos assegurados pela legislação trabalhista nacional. Na esteira de toda essa discussão, está a necessidade de uma reforma sindical que garanta um mínimo de estrutura para atuação dos sindicatos de trabalhadores – deste e de outros setores do trabalho -, asfixiados e demonizados em um processo que culminou na Reforma Trabalhista de 2017, que precisa ser revista em diversos aspectos – outro ponto defendido pelo ministro do Trabalho, pelo novo governo e por amplos setores da sociedade.
Por Thiago Manga, jornalista, assessor, já atuou em campanhas eleitorais. Atualmente, é diretor de redação do Brasil Independente
*Texto originalmente publicado pelo Estadão