Por Valdete Souto Severo
Tenho recebido notícias sobre acordos judiciais trabalhistas, cujos valores têm sido reduzidos ao argumento de que a pandemia impede o seu cumprimento. A tese jurídica invoca a teoria da imprevisão e vem sendo aceita em muitas Varas do Trabalho. Trata-se, portanto, de uma questão que merece nossa atenção.
A pandemia da COVID-19 certamente é algo inesperado, que tem determinado a perda de lucro por parte de muitas empresas, especialmente em razão do isolamento físico necessário. O refreamento do consumo que decorre da interrupção das atividades empresariais, se por um lado é algo positivo, porque altera desde a quantidade de emissão de carbono na atmosfera até o modo como nos relacionamos com o consumo de bens dos quais não temos necessidade alguma, sem dúvida coloca os empresários, especialmente aqueles que lidam seriamente com suas atividades e honram suas dívidas, em situação objetiva e subjetivamente difícil.
É exatamente por isso que crises sanitárias como essa exigem um Estado atuante, que promova imediata transferência de renda para as mãos de quem emprega e de quem vive do trabalho.
Até mesmo o presidente dos EUA percebeu isso e anunciou um repasse de dinheiro às pessoas que vivem do trabalho. A Espanha estabeleceu moratória sobre pagamentos de hipotecas, ajuda financeira a trabalhadores independentes e empresas com perdas graves, suspensão do corte de água e serviço de internet para quem não pode pagar e ajuda financeira a famílias com menos recursos. A Itália anuncia o pagamento, pelo governo, de 80% dos salários dos trabalhadores cujas empresas estão fechadas e o pagamento de “vouchers” de 600 euros para a contratação de babas pelas famílias que precisarem continuar trabalhando, valor que sobe para 1000 euros se o trabalho for na área da saúde. Vários outros exemplos poderiam ser citados.
No Brasil, a ajuda é de R$ 600,00 para trabalhadores autônomos e esse valor, embora resultado de lei a que resistiu o governo, publicada em 02 de abril, ainda não chegou às mãos da maioria das pessoas necessitadas.
O governo ainda acabou com o PIS e autorizou o saque do FGTS em valores limitados a R$ 1.045,00 (MP 946). Ou seja, extinguiu um benefício social e permitiu que os trabalhadores acessem apenas uma parte de outro patrimônio que já lhes pertence, em desalinho com o que dispõe o artigo 20, XVI, da Lei 8.036, que já autoriza o saque em caso de “desastre natural” sem qualquer limitação de valor.
Quanto aos empregados e seus empregadores, a solução proposta foi a) aceitação de acordos individuais para redução de salário ou suspensão do contrato (MP 936); b) oferecimento de empréstimo bancário para honrar salários (MP 944). Ou seja, para os empregadores que, sem condições financeiras, não estejam dispostos reduzir os salários de seus empregados para não lhes negar uma sobrevivência digna, a única saída proposta pelo governo é o endividamento.
Quem tiver o contrato de trabalho suspenso poderá receber um benefício emergencial de valor que será de no mínimo um salário e no máximo cinco. Por sua vez, a redução de salário pode ser de 25%; 50% ou 70% do salário. Nesse caso o benefício será equivalente a média aritmética dos três últimos salários, com a redução imposta no acordo. Ou seja, quem recebe um salário mínimo (R$ 1.045,00) e sofrer redução de 70%, terá direito a um Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda de R$ 313,50.
Essa previsão da MP 936 é ainda complementada com a disposição de que o empregador poderá, querendo, pagar uma “ajuda compensatória mensal” que complemente a renda das pessoas que emprega. Tal valor seria indenizatório, não integraria a base para o cálculo do imposto de renda e da contribuição previdenciária e sobre ele não incidiria FGTS. Hipótese clara, portanto, de renúncia fiscal, praticada por um governo que há bem pouco tempo aprovou o desmanche do sistema de seguridade social – EC 103 – ao argumento da necessidade de mais arrecadação. Uma renúncia que o DIEESE estima possa somar 10,6 bilhões de reais.
Essas medidas não ajudarão os empregadores a manter suas empresas em funcionamento, pois a folha de salário não é o único compromisso que precisará ser honrado durante o período de drástica redução ou paralisação das atividades. Terão, porém, um efeito deletério que se estenderá no tempo, já que esses empregadores ficarão endividados, caso aceitem o empréstimo oferecido. O benefício, em caso de redução de salário ou suspensão do contrato, não permitirá que as famílias honrem suas contas, pois não é novidade alguma que a maioria das pessoas que vivem do trabalho que realizam usam a totalidade da remuneração que recebem para dar conta dos gastos ordinários. Isso implicará endividamento, em uma realidade na qual, de acordo com a Agência Brasil, 66,2% das famílias já estão endividadas. A drástica redução nas possibilidades de viver com dignidade e o endividamento que daí decorrerá afetará o consumo. E tudo isso sem considerar os efeitos que as mortes e adoecimentos provocados pela COVID-19 terão sobre as famílias e os ambientes de trabalho.
Dentro desse quadro, o uso da teoria da imprevisão para reduzir ou postergar o pagamento de valores decorrentes de acordos realizados em demandas trabalhistas será mais um tiro no pé.
Quem busca a Justiça do Trabalho exerce um ato de coragem, pois sabemos das chamadas “listas sujas” e da dificuldade que é ausentar-se do trabalho para participar de uma audiência trabalhista, quando não há garantia alguma contra a despedida e incentiva-se uma cultura de que demandar em juízo é ato de ingratidão.
Os valores reconhecidos como devidos em uma sentença ou acordo não são retirados do patrimônio de uma parte, para serem alcançados a outra, como uma espécie de prêmio. Constituem restituição de um patrimônio ilicitamente subtraído. Uma restituição sempre tardia e parcial. Basta pensarmos no acordo para pagamento de horas extras realizadas durante o vínculo e não adimplidas. Ainda que contemple o montante integralmente devido e ilicitamente subtraído da parte autora, o seu pagamento certamente não compensará o desgaste físico e emocional, bem como a perda de tempo (de convívio familiar, de estudo, de descanso) suportado.
Além disso, o valor acordado é crédito alimentar, na forma prevista no art. 100 da Constituição da República. Isso não se dá por escolha aleatória e sim pelo fato objetivo de que em uma sociedade capitalista, o salário não constitui um valor em si, mas o único modo – para a maioria da população brasileira – de obter alimento, moradia, roupa, ou seja, os bens indispensáveis à sobrevivência física. Por isso, esse crédito é insuscetível de renúncia.
Nem mesmo a pandemia justifica tal renúncia, evidentemente, pois renunciar a alimento é renunciar à vida. Logo, em momentos nos quais uma nova doença nos ameaça concretamente, torna-se ainda mais importante preservar a integralidade do salário e dos créditos alimentares reconhecidos por decisões judiciais, sejam elas acordo ou sentença.
Há, ainda, outro argumento jurídico a impedir a revisão de acordos judiciais. Conforme o artigo 831 da CLT, acordo é sentença irrecorrível, estando, pois, abrangido pelo manto da coisa julgada. O juiz não pode alterar seus termos, sob pena de estar realizando atividade revisora da própria decisão, de forma claramente ilegal.
E ainda que assim não fosse, a ideia de que a imprevisão da COVID-19 justificaria a alteração de um acordo judicial já homologado exige alguns exercícios de reflexão. Se fosse possível invocá-la para o efeito de pleitear redução do valor ou extensão do prazo para pagamento, com mais razão ainda seria possível fazê-lo para buscar a majoração dos valores pactuados ou o adiantamento das parcelas vincendas. Se a/o reclamante perdeu o emprego após o início do período de crise sanitária, teve seu salário reduzido, perdeu sua possibilidade de renda ou sofreu suspensão do contrato, nada mais razoável do que exigir – a partir desse raciocínio de aplicação da imprevisão aos acordos trabalhistas – que o juízo determinasse a majoração dos valores acordados ou o pagamento imediato da totalidade do crédito.
Aliás, é possível argumentar que apenas nesse caso estaríamos realmente diante de uma situação de imprevisibilidade capaz de afetar as possibilidades de sobrevivência e, portanto, tendente a justificar uma medida de exceção em que o ajuste entre as partes fosse simplesmente alterado pelo Estado, onerando o agressor da ordem jurídica em favor do titular do crédito alimentar.
O fato de que essa hipótese não tem sido sequer aventada na prática das relações trabalhistas judicializadas em que existem acordos sendo (des)cumpridos, dá a medida da ideologia que mal se esconde por trás do discurso que busca utilizar a teoria da imprevisão para justificar ainda mais locupletamento por parte de quem explora força de trabalho.
Mesmo que os acordos trabalhistas contemplassem a totalidade do montante discutido em juízo, não seria possível pensar alterá-lo, em face da irrenunciabilidade dos créditos que se destinam à alimentação e do caráter de coisa julgada de que se revestem seus termos.
É preciso admitir, porém, que sequer é esse o caso, pois a maioria absoluta dos acordos trabalhistas são feitos por valor inferior àquele discutido nos autos e inferior, inclusive, àquele que a empresa já reconhece (em seu cálculo de risco) que irá “perder” no processo.
Podemos ainda pensar outra hipótese, levantada em conversas tanto pelo amigo Jorge Souto Maior quanto pelo meu companheiro João Vicente Araújo: para as empresas que não tiveram problemas econômicos, como aquelas que lidam com produtos alimentícios, ou até mesmo estão aumentando seu faturamento com a crise, como é o caso daquelas que produzem máscaras e álcool gel, haverá majoração nos valores acordados? E depois da crise, se alguma empresa aumentar significativamente seus lucros em decorrência de situação não prevista, também valerá a teoria da imprevisão, para o efeito de, superando os limites da coisa julgada, majorar o acordo?
Há alternativas para as empresas que enfrentam dificuldades em razão da suspensão das atividades e da redução do consumo, em face da recessão que já experimentávamos por aqui e que foi agravada pela pandemia da COVID19.
Essas alternativas passam pela redistribuição de renda por meio do confisco de dinheiro das instituições financeiras, que possuem um dever cívico de devolver à sociedade parte dos valores que auferiram em 2019, enquanto toda a classe trabalhadora empobrecia – R$ 109 bilhões de reais entre julho de 2018 e junho de 2019[1]. Passam, também, pela taxação de grandes fortunas, prevista na Constituição e nunca regulada, ou pela taxação de iates, jet skys, helicópteros ou templos religiosos, bens que hoje simplesmente não são sujeitos à tributação. Passam pela cessação de cobrança de bens essenciais à sobrevivência, como água e energia elétrica, pela supressão dos tributos sobre gêneros alimentícios ou pela utilização dos recursos vertidos para pagamento da dívida pública em favor das famílias e empresas que enfrentam maiores dificuldades.
Não é revisando acordo trabalhista que se resolverá o problema (real) de manutenção das empresas, com que hoje confrontam-se os pequenos e médios empresários no Brasil. Ao contrário, uma medida como essa compromete, ao mesmo tempo, a possibilidade de sobrevivência física de quem tem no valor do acordo, muitas vezes, a única fonte de renda, e a coerência e integridade jurídica do processo trabalhista.