CSB e entidades sociais buscam punição para as companhias que financiaram o Golpe Militar
A participação e atuação de empresas na repressão ao trabalhador durante o período da ditadura começou a ser discutida em audiência pública no dia 27 de fevereiro – a segunda etapa acontece em 2 de março. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e o Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação, do qual CSB é integrante, analisaram a participação da Volkswagen, da antiga Cobrasma (Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários), da Aliperti, do Metrô, da Embraer e da Docas. A atuação de outras empresas será investigada nas próximas audiências.
Foram apresentados documentos e vídeos levantados ao longo da pesquisa das centrais sindicais e entidades ligadas ao Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical da Comissão Nacional da Verdade. Além da apresentação de materiais colhidos, foram ouvidos os depoimentos de trabalhadores que testemunharam ou vivenciaram episódios de repressão em fábricas, de funcionários responsáveis pelas empresas à época da repressão e de representantes atuais dessas empresas.
Entre os documentos apresentados está há uma lista de 1980, obtida nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que contém nomes de trabalhadores ligados ao movimento sindical. A lista teria sido fornecida pela própria Volkswagen aos órgãos de repressão criados pela ditadura militar. Os ex-trabalhadores da Volkswagen ouvidos durante a audiência disseram que parte da diretoria da empresa na época era composta por militares. A montadora mantinha também uma “lista suja”, com nomes de trabalhadores sindicalizados, que repassava aos agentes da ditadura.
Depoimentos
O ex-ferramenteiro e sindicalista Lucio Bellentani, que trabalhou na Volks entre os anos de 1964 e 1972, foi um dos trabalhadores que prestaram depoimento sobre as ações da montadora durante o período do regime militar. “Fui preso e torturado dentro da própria empresa. Quem comandou a prisão foi o coronel Rudge, que era chefe de segurança da empresa na época. O Rudge estava encostado em uma coluna com vários policiais, e mais gente da segurança da Volks, que encostaram uma metralhadora nas minhas costas. Levaram-me para o Departamento de Pessoal, onde havia outros agentes do Dops. Ali levei porrada. Dali fui para o Dops, onde fiquei 45 dias totalmente incomunicável”, contou.
Bellentani relatou ainda que agentes da ditadura, pouco tempo depois de sua prisão, passaram a ir sistematicamente à sede da Volks para prender trabalhadores. “Cerca de 32 prisões foram feitas, todas efetuadas dentro da Volks, com auxílio da segurança da montadora. E todos os que chegavam lá iam para acareação e para sessões de tortura”, disse. Para o ex-ferramenteiro, a ajuda da Volks e de outras empresas à ditadura precisa vir à tona e ser esclarecida. “É necessário que essas coisas venham a público e as empresas sejam realmente punidas”, completou.
Lula
Documentos com a identificação dos empregados, os endereços pessoais e até o setor em que trabalhavam foram encontrados por pesquisadores nos arquivos do Dops. Em outro documento localizado no Dops, sobre a Volkswagen, consta um trecho de um discurso feito pelo então sindicalista e ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva a trabalhadores da Volks.
No discurso, Lula diz aos trabalhadores: “Dentro da Volks, em alguns setores em que vocês trabalham, a segurança fica de olho em vocês, através de um circuito de televisão, e o coronel Rudge fica o dia inteiro vendo a televisão e vendo vocês trabalhando”. De acordo com os integrantes do Fórum, é uma prova de que a empresa monitorava toda a movimentação dos empregados.
Segundo Alvaro Egea, secretário-geral da CSB, objetivo do Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação é continuar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade. “As audiências são a continuidade do nosso trabalho. As empresas que comprovadamente tiveram envolvimento com o regime militar precisam ser responsabilizadas. Não podemos permitir que empresas que contribuíram com a tortura e financiaram a ditadura fiquem impunes. Não queremos uma indenização individual, mas sim coletiva. O papel do trabalhador para crescimento e desenvolvimento do Brasil precisa ficar claro para as próximas gerações”, afirma.
Para o deputado estadual e presidente da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, Adriano Diogo, a ditadura foi arquitetada, financiada e preparada pelo empresariado paulista. “Um golpe não se improvisa e o golpe tem um preço. Ele não acontece do dia para noite. Existem documentos militares provam quanto cada empresário pagou pelo golpe, como carros, uso de aviões e fornecimento de alimentos. Os empresários que financiaram o golpe são os mesmos que financiaram a repressão. Não podemos temer as ações das empresas que prejudicaram tantos trabalhadores e contribuíram tanto para a ditadura. Nossas investigações continuam, e os responsáveis serão punidos”, disse.
Ismael Antonio de Souza, representante da CSB no Fórum, explica que muitas empresas que contribuíram com golpe foram beneficiadas em licitações públicas. “O golpe foi claramente contra os trabalhadores. Os empresários, junto com os militares, uniram forças contra o povo. Muitas famílias com tradição no empresariado fizeram verdadeiras fortunas na época da ditadura, pois pagavam mal aos trabalhadores e recebiam incentivos do governo. A ditadura favoreceu uma única classe, a dos ricos. Os financiadores desse regime não podem ficar impunes”, argumentou.
De acordo com Raphael Martinelli, ex-presidente da Federação Nacional dos Ferroviários e ex- dirigente do CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), cassado pela ditadura em abril de 1964, as empresas nunca cumpriram os direitos trabalhistas durante o período da ditadura. “A ditadura acabou com os direitos trabalhistas, e temos que lutar e muito para que alguns direitos sejam restabelecidos. Tem muitas empresas que ainda não cumprem os direitos, são capitalistas que só visam a exploração. A punição das empresas financiadoras do golpe militar é forma de coibir que isso se repita”, afirmou.
Documento
Na audiência, integrantes do Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação também entregaram uma carta aberta à Comissão Estadual da Verdade em que dizem que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) deixou de enviar uma recomendação à Presidência da República para responsabilizar as empresas que colaboraram com a repressão durante a ditadura militar.
No documento, a entidade pede que os empresários e empresas privadas e estatais sejam investigados, denunciados e punidos por colaboração com a ditadura militar. Também solicitam que seja instituído um fundo, mantido com multas e punições às empresas e aos empresários, para reparação dos danos provocados aos trabalhadores e organizações sindicais na época. A carta foi entregue para Rosa Cardoso, ex-membro da Comissão Nacional da Verdade, que ficou de se mobilizar para encaminhar essas reivindicações ao governo, mesmo após o fim dos trabalhos da CNV.
Rosa Cardoso disse que a CNV abordou o tema da colaboração das empresas em seu relatório final, mas, em sua opinião, isso deve continuar sendo explorado e publicado pelas demais comissões, movimentos sociais e pelo Ministério Público. “Todos os grupos devem continuar seus trabalhos e publicações”, ressaltou.