Central dos Sindicatos Brasileiros

Defender ciência não é apoiar indústria farmacêutica

Defender ciência não é apoiar indústria farmacêutica

Co-autor de livro resenhado em Outras Palavras responde ao texto. Ele afirma que sua atitude crítica diante da Big Pharma foi confundida com negacionismo e com pregação em favor da cloroquina

Por Ricardo Garrido Mayan1

O mundo é realmente redondo, embora suas voltas nunca sejam acompanhadas completamente por instituições ou por indivíduos cuja profissão é pensar livremente e sem dogmas. Mas sob o manto da dominação produzida pelas ideologias dominantes, mesmo o pensamento que se quer crítico nem sempre consegue se rebelar contra as variações que aparecem no espectro dos pensamentos hegemônicos, sejam eles à esquerda ou à direita. Pensar é muito mais que verbalizar ideias prontas, definitivas. Em 19842 o Big Brother que se apoderou de uma Revolução que deveria liberar homens e mulheres da exploração de seus trabalhos e desenvolver o pensamento crítico, faz o contrário e implanta pela força de seu aparelho político, não apenas o pensamento único, mas também uma única linguagem. A ideia que Saturno devora a seus filhos parece adquirir na pena de Orwell uma lógica implacável que se apodera sempre de mais um replicante, como em Blade Runner, e de todo sobrevivente capaz de pensar e agir criticamente com independência.

Sob a base instituída pelo sistema capitalista mundial, esta lógica se apodera de partidos políticos, de instituições de ensino e pesquisa e de organismos estatais. À esquerda, mesmo nos partidos mais democráticos e progressistas, esta lógica está presente também e de forma hegemônica. Nos menos democráticos “os fins continuam justificando os meios”3 Na pesquisa científica também e isto em todos os seus domínios. No campo das ciências bioquímicas e farmacêuticas, sua presença ainda é mais complexa pela aplicabilidade de seus resultados e sua conexão direta com a produção do lucro. Estamos tratando aqui de um ramo industrial dos mais lucrativos e que, como poucos, mesmo com a crise mais profunda, não deixa de lucrar. Para tal, a indústria farmacêutica constitui uma máquina de publicidade humana “destacada” da produção direta de medicamentos. Ela age corpo a corpo nos consultórios médicos, nas clínicas de saúde as mais diversas, age junto as instâncias universitárias e de pesquisa, financia congressos de pesquisadores e médicos, promove sorteios de carros e casas, tudo isto para dominar de maneira ampla médicos, pesquisadores, agentes políticos, governos, etc. Se isso pode ser colocado em dúvida, as pesquisas diversas nas áreas das ciências sociais progridem no sentido de mostrar o quanto pode ser ilusório acreditar serem os medicamentos e produtos da indústria farmacêutica apenas valores de uso e não mercadorias (valores de troca) buscando lucratividade máxima.4 Desgraçadamente esta verdade explodiu de forma abrupta e desavergonhada com a proliferação da covid-19 (e suas variantes virais) em pandemia mundial. Se a ideia de promover o bem-estar humano, a saúde de homens, mulheres e crianças do planeta mobilizam e fazem com que os profissionais de laboratórios químico-farmacêuticos se mobilizem e deem o melhor de si para descobrirem remédios, vacinas e antídotos diversos contra as doenças que já são conhecidas ou aquelas que aparecem, aqueles diretores e presidentes das mega usinas do ramo estão preocupados única e exclusivamente com o lucro cada vez maior que podem conseguir com a venda de seus medicamentos nos mercados do mundo.

A população de baixa renda em particular sabe pouco sobre isto, mas sofre na pele, por exemplo, o preço exorbitante de certos medicamentos e o custo permanente que têm com suas utilizações no combate de enfermidades como a diabetes.5 Mas as outras camadas sociais também, como as classes médias nas quais prolifera a doença que acentua o sentimento de tristeza pela depressão. Os medicamentos não foram produzidos para curar as doenças, mas para tornar as pessoas dependentes atenuando os sintomas das enfermidades. Enquanto pesquisador e diante dessa realidade não podemos adotar uma visão que não seja aberta, crítica, perquiridora, pelo menos até onde o nosso alcance nos permite. A bem da verdade, a dificuldade da pesquisa nesse campo, é enorme porque como se sabe, na guerra de concorrentes (como em toda guerra) a primeira vítima é a documentação, a informação completa que possibilita o alcance da verdade científica capaz de informar com segurança através de profissional, seja ele sociólogo, antropólogo, economista, historiador, ou simplesmente jornalista.

Uma resenha ao livro Soou o Alarme

Em 15 de março, foi publicada por esse importante jornal6 uma crítica sobre o livro Soou o Alarme – A crise do capitalismo para além da pandemia7, onde Renildo Souza (economista professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia) teceu comentários acerca desta obra. De uma maneira geral sua leitura crítica foi bem estruturada, embora ela não tenha levado em consideração alguns aspectos relevantes e tenha enfatizado alguns aspectos e detrimento de outros. É curioso que tenha deixado quase desapercebido a própria contribuição dos organizadores que são também autores importantes. Nada mais natural se a respectiva leitura ficasse por aí. Nada mais natural também que críticas aparecessem, sugestões e complementos informativos aparecessem. A personalidade de uma leitura surge exatamente nesses momentos, particularmente quando se trata de uma obra coletiva, densa e robusta de 23 artigos que partem de pontos de vistas que nem sempre coincidem, embora existam convergências importantes também. Do livroSoou o Alarme podemos afirmar que é pleno de méritos, sendo o maior deles a capacidade de abraçar pensamento divergentes de modo dialógico e sem censura alguma.

A resenha elaborada pelo Professor Renildo Souza teve uma parte discrepante quando aborda o artigo “Esboço Histórico das Pandemias: da peste antonina à covid-19”. Abem da verdade seu autor concentrou suas críticas ao meu artigo em duas notas de pé de página que são bastante extensas. Na segunda delas pretende que sou defensor da cloroquina e da hidroxicloroquina, ou na melhor das hipóteses quer dar esse sentido, concentrando sua leitura nesses dois medicamentos, quando no artigo falo de um número considerável deles que pareceu não lhe despertar nenhum interesse. Sim, falo de vários, mas não defendo, nem condeno necessariamente, nenhum deles. E isso por uma razão simples: a de que não tenho nenhuma autoridade para fazê-lo.

Por conseguinte, não posso concordar com o conteúdo de sua longa segunda nota de pé de página. Ele alega ter eu produzido um “erro gravíssimo”. Porém lendo e relendo, percebo que foi a perspectiva de seu olhar que produziu uma representação dominante imputando-a a mim como se em algum momento tivesse adotado a defesa de medicamentos colocados no index daqueles malditos ou qualquer outro. Diz ele: “(…) Garrido elabora um relato importante da história das pandemias, mas incorre equívocos especificamente ao se referir à cloroquina e à hidroxocloroquina”. Mas na página 110, segundo o próprio Souza, registrei o fato de o ministério da Saúde da França ter recomendado o uso dos fármacos (que os proíbe depois), mas deixa de se referir ao fato de que, nesta mesma página, no parágrafo anterior eu afirmo o que se segue:

O isolamento social tem sido a principal medida adotada pela maioria dos governos nesse momento, vez que o vírus tem alta taxa de transmissão e grande parte dos portadores são assintomáticos. Acredita-se que essa medida é a melhor forma, não só de prevenção, mas para evitar o colapso dos sistemas de saúde.

Por qual razão meu crítico não cita tal parágrafo, apesar de fazer referência a mesma página do mesmo artigo? Não consegui entender! Na mesma lauda, onde cito a questão concernente a hidroxocloroquina, na nota de número 21, logo após afirmar que o ministério da França defendia o uso do fármaco, tive o cuidado de registrar que “A OMS anunciou, no início de julho, o fim das pesquisas com o uso da cloroquina no combate a Covid-19.8 Souza preocupou-se apenas em afirmar que eu cometi equívocos com relação tais medicamentos, como se citar suas existências e o fato de eles serem utilizados em clínicas e hospitais no Brasil e em outros países constituisse uma adesão aos mesmosAo destacar trechos do meu artigo e redigir da forma como o fez, nosso críticoacreditou que faço uma defesa inconfessável dos mesmos remédios que ele critica, mas sem dar conta ao leitor da amplitude e abrangência que dei quando falo de medicamentos diversos que estão sendo usados em continentes e países diversos.

Na mesma nota de nº 2, Souza continua sua “demonstração”:

Mas em 27 de maio aquele Ministério divulgou um comunicado em que explicita o seguinte: “esta molécula não deve ser prescrita para pacientes com covid-19”. Neste comunicado, a instituição informa sobre a ineficácia do medicamento para covid-19 e sobre a sua toxicidade. Se o livro foi publicado em novembro, os fatos já deviam ter sido corrigidos.

Tendo em alguma medida acompanhado o árduo processo de elaboração do livro pelos seus organizadores e o extremo cuidado com o qual os professores Soleni Fressato e Jorge Nóvoa realizaram sua edição (diga-se de passagem, em tempo recorde), emboraSoou o alarme tenha sido publicadoem novembro, sei por confirmação dos referidos organizadores que os originais foram entregues com uma antecedência considerável. Naturalmente a editora necessitava de tempo para a confecção da obra no seu conjunto. Contudo, não foi o articulista quem afirmou, mas sim a Organização Mundial da Saúde de quem ele simplesmente transcreveu que a nota concernente a OMS deixa claro que tal medicação não é recomendada. Isso não quer dizer que acreditemos piamente em tudo que a OMS diz e faz. Como historiador tenho o dever de buscar a verdade, independentemente de razões de Estado, instituições, de corporações de ofício, de partidos ou sindicatos etc. Aliás, esse é um dever absoluto e todos nós temos de fazer nosso “Juramento de Hipócrates”.

Muito determinado em detectar mais que uma diferença de perspectiva, nesta mesma nota, a de nº 2, Souza destaca o seguinte:

Diz Garrido que “as polêmicas em torno de medicamentos preexistentes [cloroquina, hidrocloroxina, etc] estão condicionadas ao poder de influência política e econômica que têm os conglomerados das indústrias farmacêuticas”. Não é isso. A polêmica principal é sobre a ineficácia e os malefícios dos efeitos colaterais da cloroquina e hidroxicloroquina para pacientes de covid-19. A questão é científica, apesar de tudo. Os líderes de direita e os fanáticos do negacionismo científico apelaram a tais medicamentos para se contrapor às medidas sanitárias, como uso de máscara, distanciamento social e confinamento, subestimando a pandemia, contrapondo-se às necessidades de vacina e exigindo o funcionamento das atividades econômicas. Bolsonaro, por exemplo, foi o campeão inconteste da campanha pela cloroquina durante toda a pandemia até o início de 2021, com a anuência de bolsonaristas de Conselhos de Medicina.

Uma leitura outra do meu artigo possibilita outra percepção e palavras. Sou a favor de salvar vidas e de todas as medidas e restrições necessárias a conter a proliferação do Coronavirus. Queria poder dizer “que todas elas devem sem empregadas”. Mas os limites de meus conhecimentos impediriam uma tal arrogância. Meu ponto de vista foi procurar ofertar um olhar geral incluindo os mais variados medicamentos e situações em espaços diferenciados do planeta em tempos distintos. Não cabe nenhum negacionismo no meu discurso. Apesar do próprio Souza se referir ao fato de que líderes de direita politizarem o uso do medicamento, fica parecendo que ele também está fazendo o mesmo. Na página onde consta tal observação de Souza, eu afirmo:

Entretanto, as polêmicas em torno da utilização de medicamentos pré-existentes estão condicionadas ao poder de influência, política e econômica, que têm os conglomerados das indústrias farmacêuticas. Existe, desde o começo da pandemia, uma verdadeira corrida com o fim de colocar rapidamente no mercado, uma vacina capaz de dotar o corpo humano de uma reação imunológica adequada, ou uma molécula medicamentosa que aja como antídoto mortífero ao vírus. Isso transforma instituições, centros de pesquisa, veículos científicos e meios de informação, em ferramentas para influenciar positivamente ou negativamente a utilização dos medicamentos. As vidas se tornam reserva de mercado. Evita-se, assim, toda informação livre e franca sobre os prós e contras de métodos de tratamento.

Seria uma novidade que as indústrias de medicamentos querem o lucro com muito pouco interesse pela vida? Toda minha preocupação foi jogada na necessidade de chamar a atenção para a vulnerabilidade da população em geral e daquela com menos poder de adquirir informação fidedigna e de qualidade para a capacidade da indústria de remédios em influenciar e mesmo, em determinar que sua mercadoria seja a mais vendida. Não há recomendação alguma para a utilização de nenhuma medicação. A obsessão do nosso crítico em combater os medicamentos em questão foi tão acentuada politicamente que o impediu de enxergar que é o capitalismo que dita o ritmo do mercado. É o sentido que emprego no parágrafo seguinte:

O caso da cloroquina e do hidroxicloroquina se tornou exemplar. Quatro pesquisadores publicaram artigo na revista The Lancet (considerada a mais prestigiosa revista científica do planeta), baseado em dados manipulados por um dos autores, que os forjou para benefício de seu prestígio e de sua empresa nos EUA. Desmascarada, a questão da falsidade ou verdade das informações na área dos medicamentos adquiriu uma dimensão inusitada. Elas são classificadas em função de interesses econômicos, políticos e de prestígio de laboratórios científicos e universitários, privados e públicos. Objeto de intensa publicidade contrária às suas utilizações, essas informações se baseiam num bordão central constante: não existe eficácia científica comprovada. Todavia, vários profissionais da saúde têm utilizado a cloroquina e o hidroxicloroquina, até preventivamente. Médicos das redes privadas de saúde os utilizam para tratamento em casa ou em hospitais, muito particularmente nas duas primeiras fases da doença, quando ela ainda não se tornou grave. Como esses médicos são tributários, como seus pacientes, das redes de saúde privada, e como essas não querem aumentar despesas com internamento de pacientes, buscam outras saídas que podem funcionar. (Grifo meu)

Quando falamos em medicamentos deve-se lembrar de uma figura emblemática da medicina farmacêutica que é um cálice enrolado por uma serpente, para ilustrar o ponto de vista de que aquele medicamento (todos os medicamentos) que pode salvar vidas, se usado inadequadamente pode também tirar vidas. Na verdade, neste último parágrafo do meu artigo, procuro destacar uma cruel contingência da qual a população ignorante ou inocente, ou o leitor pouco avisado, termina ficando prisioneiro ou muito vulnerável. O mercado, mas antes as empresas que o constituem, determinam também a corrupção de médicos e pesquisadores que, no momento em questão, forjaram dados querendo “provar” a eficácia dos “medicamentos malditos”. Mas este fato histórico e inesquecível para o historiador levou a OMS a mudar de posição por quatro vezes. Ela havia aprovado a hidroxicloroquina, depois, ela condena em função das pressões de laboratórios franceses ligados ao ministério da Saúde do governo Macron. Mas em função dos dados publicados na Revista Lancet considerada a “mais importante do mundo”, ela retrocede. Porém, uma vez constatada a fraude dos autores do artigo da Lancet, a OMS volta a mudar de posição condenando os pesquisadores corruptos que foram denunciados. Ora, simples historiadores e cientistas sociais, ou ainda economistas como o professor Souza, como podemos saber onde se encontra a verdade cristalina, nua e crua que se quer científica de todas essas escaramuças político-administrativas deformadas pelos interesses econômicos? Penso que se trata de uma reivindicação da sociedade civil a mais legítima e absoluta, a de que dados científicos como esses possam ser divulgados e que toda a discussão possa ocorrer sem subterfúgios, implementada com vigor por instituições de pesquisa, pela mídia, pelos pesquisadores. Penso ainda que a população em geral deve ter acesso para se informar e discutir sobre assuntos que lhe dizem respeito diretamente. Trata-se de um direito inalienável. Será que não me cabe ao cientista social a liberdade de poder questionar essas situações? Será que os profissionais da informação teriam que se comportar como o mais comum dos mortais e aceitar o que é vendido sem questionamentos ao senso comum por organismos diversos?

Ainda em sua nota n. 2, Souza insiste:

“Mas isso é fato, não é publicidade, como quer o autor: cloroquina e hidroxicloroquina realmente não são eficazes para tratamento da covid-19. E pode até matar. Fato, mil vezes fato”.

Com toda essa ênfase de quem está militando pela boa causa, Souza parece deter as evidências e os estudos que mostram o que eu poderia acreditar sem rodeios, só que ele não as apresentou. Como historiador, fui formado numa escola na qual o pesquisador só se submete às provas e ao desvelamento dos processos sociais que desembocam em fatos sociais com documentos, embora saiba que as provas podem se constituir por evidências indiretas. Como no nosso domínio não são vidas que se acham sendo julgadas, as deduções podem ser utilizadas com o devido cuidado. Estou, portanto, disposto por princípio, tanto como historiador, como professor, a sempre reaprender. Mas minha posição não me possibilitou até o momento ser detentor de nenhuma randomização dos efeitos da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes de Covid, nem de nenhum outro medicamento existente no mercado usado para seu combate. Portanto, sou assim, tão leigo quanto o meu crítico, criticável nesse ponto.

A paciência que se impõe a quem deseja trilhar sem pressa os caminhos tortuosos do conhecimento científico, seus ziguezagues, acertos pela metade, erros absolutos, de qualquer área que seja, exige me deter em um último parágrafo de Souza. Ele encerra sua nota 2 quase cobrando uma retratação da minha. Diz ele que eu,

“Devia ter dito, que esses profissionais estavam incorrendo em erro médico, mas, ao contrário, o autor diz que para não “aumentar as despesas com internamento de pacientes [médicos da rede privada], buscam outras saídas que podem funcionar”. Funcionar? Cloroquina e hidroxicloroquina? Pelo meu dever de resenhista do livro não posso passar ao largo dos problemas graves aqui expostos. Recomendo que, em nova tiragem do livro, o texto da página 110 até 112 sejam corrigidas, à luz dos resultados de pesquisas e recomendações reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde.”

Aqui, em um momento de fadiga talvez, nosso abnegado colega incorre num erro crasso de método: como posso eu (simples historiador) afirmar que os médicos que utilizam tais fármacos estão errados se não tenho, como eu acredito que ele também não tenha, competência para tal? O máximo que pude fazer foi alertar e mostrar visões discordantes. Somos cientistas sociais e não médicos ou pesquisadores da área da saúde para afirmamos isso com tanta força que suporia um real conhecimento de causa. Mas o pior de tudo é que o respeitável colega entendeu errado o que disse. Quando digo que para não “aumentar as despesas com internamento de pacientes [médicos da rede privada], buscam outras saídas que podem funcionar”, estou querendo demonstrar como agem o sistema privado de saúde e muitas clínicas às quais diversos setores da população mais remediada são obrigada a recorrer. Clínicas e hospitais utilizaram (e ainda utilizam) formas “baratas” de atuar frente à covid cedendo à pressão dos planos de saúde. Os médicos tornaram-se também subordinados aos planos de saúde. Muitos planos, clínicas e hospitais não levam em consideração a ação da OMS, nem de outras instituições. Mas sem mitificar a OMS assinalei que no ano passado ela desautorizou “no início de julho, o fim das pesquisas com o uso da cloroquina no combate à Covid-19”. Portanto, ao contrário do que afirmou o professor Souza, meu artigo está em consonância relativa com o posicionamento em causa da OMS.

Questionar todos os medicamentos e procedimentos

Fez parte de minha análise o fato de que são muitos os medicamentos que o resenhista não citou. É importante lembrar aqui, por exemplo, o uso da dexametasona. Ela estava surtindo efeitos promissores no combate a Covid-19.9 É o caso de outras tantas drogas como o antiviral remdesivir. Os primeiros estudos internacionais dão sinais fortes rumo a um tratamento eficaz da infecção. O antiviral já foi usado em dois outros momentos: no surto de Mers, a síndrome respiratória por coronavírus, identificada na Arábia Saudita, e, depois, como terapia em casos africanos de Ebola, na Guiné, Serra Leoa e Libéria, entre 2013 e 2016. A segunda vida do remdesivir, celebrada agora nos corredores da OMS, veio à luz de forma quase anedótica pelas redes sociais da internet. Em 16 de junho de 2020, um vídeo sobre um estudo da Universidade de Chicago com 125 doentes (113 deles com infecções graves) foi vazado pela Stat News, influente publicação americana do setor de saúde. Nele, Kathleen Mullaneespecialista em doenças infecciosas e líder dos ensaios clínicos, informava que, depois de iniciado o tratamento com o remdesivir, os pacientes tiveram a febre diminuída rapidamente e alguns saíram dos ventiladores no dia seguinte. O interessante é que pouco tempo após a divulgação dos resultados obtidos com remdesivir, as ações da Gilead, a fabricante da droga, subiram até 14% nas bolsas de Chicago e Nova York.Rapidamente a administração de Trump fez um contrato nos bastidores e comprou quase todo o estoque de remdesivir do mundo. Recentemente, a própria Anvisa aprovou o uso do fármaco para o combate a Covid no Brasil. Por que a instituição brasileira demorou tanto para aprová-lo?

Uma das coisas que é preciso que se discuta com total abertura diz respeito ao fato de que em outras regiões do planeta os índices de contaminação são muito pequenos. Por qual razão isto ocorre? Seria porque linhagens virais semelhantes à da covid-19 se achavam já presentes à região? Será que a sabedoria popular acumulada por povos originários da África e da Ásia consegue produzir alguma diferença no tratamento de diversas doenças que poderia servir para nossa cultura médica?

É necessário, por último dizer que, embora seja a favor da vacinação em massa, penso mais uma vez que na posição de “leigos” que querem informar não é permitido transformar as vacinas em remédio absoluto para a Covid-19. É necessário que o homem simples e comum da cidade e do campo se vacine, mas que saiba também das limitações possíveis delas. E isso por diversas razões. Recentemente vimos que vários países europeus, dentre eles a Irlanda, suspenderam sua aplicação da vacina da AstraZeneca devido a uma suposta geração de trombose que levou à morte alguns pacientes. Esse posicionamento foi revisto e a retomada da vacina foi realizada, sob o argumento de que não havia provas suficientes que relacionassem o uso do imunizante aos casos de trombose. Portanto, é necessário não transformar as vacinas em agentes infalíveis. O caso da AstraZeneca, como tantos outros, exige uma abordagem consequente de seu uso. Toda a celeuma em torno da CoronaVac e de que sua capacidade imunizante seria reduzida, exige um olhar interrogante por conta das disputas comerciais e geopolíticas.10 Não seriam esses fatos mais indícios acerca da necessidade de um olhar mais crítico sobre as alegadas inconsistências ou as citadas super eficiências de medicamentos diversos? Recentemente um pequeno artigo de Fernando Reinach sobre o David Ho pesquisador e PHD em biologia celular e molecular pela Cornell University11 obriga-nos a refletir e a buscar outros olhares sobre a pandemia em curso. Para ele, a disseminação em larga escala das novas cepas no Brasil “é uma questão de tempo”. Porém o que é muito preocupante, é que “provavelmente elas vão chegar antes de vacinarmos uma fração significativa da população”. Passados quase dois meses dessa afirmação, a disseminação em curso já promoveu o colapso de praticamente todo o sistema de saúde no Brasil. As novas cepas do SARS-COV-2 que se espalham rapidamente, são difíceis de controlar porque contaminam e matam muito mais, mas sobretudo se dissimulam parcialmente frente ao sistema imune dos que já foram infectados ou vacinados. Na Europa os governos aumentaram drasticamente as medidas restritivas à população, Foi o caso de Portugal que só assim fez voltar a um estado controlável, utilizando também, é claro. as vacinas disponíveis.

É possível dizer assim e praticar, ao mesmo tempo a defesa de métodos e aplicações corretas contra as pandemias sem posições rígidas de conhecedores do assunto em profundidade, com a abertura crítica e necessária para ajudar a formar uma opinião “aberta” sobre todas essas questões, sem deixar de criticar as mais diversas formas que os regimes neoliberais no mundo vêm adotando para administrar a pandemia nas mais diversas regiões.

Por último, mas não menos importante, por dever de ofício somos obrigados a reconhecer que Renildo Souza foi correto quando detectou a incongruência de dados referentes à pandemia antonina, que dizimou boa parte da população do Império Romano em um período de várias décadas ou mais de 100 anos. Felizmente estamos em um domínio no qual o número de mortos não aumenta, mas que é a prova real da importância da crítica e da aplicação da dúvida metodológica. Um deslise na redação de dados importantes produziu um erro que não pode ser atribuído ao historiador inglês Edward Gibbon12. Ele elaborou a referência mais segura sobre a mais importante pandemia da história antiga.

Que tudo isto possa nos servir a todos de ilustração do quanto ainda saberemos e teremos que buscar saber sobre as pandemias e muito particularmente sobre a covid-19. A consciência da limitação do modelo de ciência sob o qual vive-se nas sociedades capitalistas em todo o planeta exige que se observe sem fazer desaparecer outros olhares e outras formas de buscar conhecimento e, no campo da medicina, de buscar tratar as pessoas. É muito comum quando se entra em um consultório médico e se comenta sobre fitoterápicos e os chamados “remédios caseiros” se obter do médico expressões como “não existe registro na literatura médica”. Isto que quer dizer, “não tem fundamento médico”. Mas as epidemias e as pandemias não foram inventadas pelos povos primevos. Foram sim o resultado do sedentarismo no ocidente, do aumento dos excedentes produtivos e do comércio entre as regiões, mas ainda foi a consequência da dominação de alguns povos sobre outros menos armados. Salvo engano, não se tem nos relatos dos nativos pré-colombianos registros de doenças recorrentes dizimadoras de suas coletividades. Elas passaram a surgir em grande medida com a formação do capitalismo como sistema mundial de produção e comércio de mercadorias. As formas como os homens vieram tratando o meio ambiente e o processo de degradação que lhe impuseram explica os desastres que está vivendo a humanidade, como ficou bem explicado e demonstrado no Soou o alarme através de vários artigos. Creio que cabe perfeitamente a pergunta se não teríamos o que aprender com esses povos originários das diversas regiões do planeta como várias correntes alternativas assim estimam?13

Um outro modo de se relacionar com a natureza é necessário e urgente. Como diz a música cantada por Milton Nascimento, “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre…”, e esperança. Nenhum “Big Brother” foi capaz até agora de sufocar a força da vida humana no planeta, nem o pensamento que a defende. Esse não será o caso da indústria farmacêutica. O que é preciso é que os cientistas, professores, jornalistas, comunicadores e formadores de opinião adotem uma postura “aberta” e que as divergências de pontos de vista em relação a essa ou aquela questão possam ser enfrentadas em benefício do progresso humano. Divergências de opinião e de conhecimento e a adoção de medidas diversas sobre os problemas concretos da vida hoje no mundo, não podem se transformar no motor da criação de disputas, quando é preciso, mais que nunca, unir força para que a vida vença a destruição e a morte.

1 Professor e pesquisador em história, é diretor do Departamento de Ciências Humanas do Colégio Mendel. Publicou o livro: Reflexões sobre a história contemporânea. Salvador, Cultura Editorial, 2013.

2 ORWELL, George. 1984. São Paulo, Editora Nacional, 1991.

3 BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Brasília, UNB, 1999.

4 https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-24102008-160756/publico/MarceloCunha.pdf

5 https://www.hypeness.com.br/2016/08/medicamentos-que-curam-nao-sao-rentaveis-e-portanto-nao-sao-desenvolvidos-diz-nobel-de-medicina/

6 Outras Palavras: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/reflexoes-sobre-o-ocaso-capitalismo/

7 FRESSATO, Soleni, NÓVOA, Jorge. SOOU O ALARME. A CRISE DO CAPITALISMO PARA ALÉM DA PANDEMIA. São Paulo, Perspectiva, 2020.

8Bárbara Rubira, OMS interrompe testes com hidroxicloroquina e lopinavir/ritonavir, Estadão, 4 jul. 2020.

Fonte: Outras Palávras