Como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência

Aos 49 anos, Ricardo Masironi desistiu de empreender. Desde novembro, o ex-dono de hamburgueria se tornou cozinheiro de uma cervejaria artesanal em Moema, zona sul de São Paulo.

Masironi havia criado a Montanha Burger em 2016 e viu a chance de prosperar a partir do serviço de entrega de comida iFood, que estava expandindo as suas operações na mesma época.

Foi uma decisão acertada: com “propaganda” garantida por parte do parceiro de delivery, a Montanha Burger, que tinha um pequeno salão próximo ao metrô São Judas, também na zona sul da capital, chegou a despachar 90 entregas por dia, metade da sua demanda diária, com uma média de R$ 55 por pedido. Nada mau para um negócio de pequeno porte.

Mas, no começo de 2019, algo começou a dar errado: os pedidos deixaram de aparecer de uma hora para outra. Não foi uma redução gradual, fruto de um possível aumento de competição. Nem uma mudança de cardápio ou receita, que permaneceram exatamente os mesmos.

Masironi sequer teve a chance de sondar a clientela para saber o que estava acontecendo: no final de 2018, o iFood já havia deixado de fornecer o contato dos clientes aos restaurantes. A partir de então, o consumidor passou a ser do serviço de entrega — não importa quem faça a comida.

“Com o tempo, o iFood mudou radicalmente o atendimento aos restaurantes”, diz Masironi, que acabou fechando o salão em agosto do ano passado. Manteve apenas o delivery e enveredou pelos lanches mais baratos, vendidos a R$ 9,50.

Mas seus produtos não eram exibidos na seção de comida barata do iFood, de até R$ 10. Questionou o aplicativo, mas não obteve resposta conclusiva. Sem pedidos, Masironi não suportou os custos e encerrou definitivamente a operação em novembro.

O caso da Montanha Burger não é isolado. A reportagem conversou com outros oito donos de restaurantes, cafés, bares e lanchonetes que colecionam mais dissabores que vantagens após contratar os serviços do iFood.

As principais queixas se referem às “promoções malucas” propostas pelo aplicativo, do tipo “compre um lanche e ganhe outro”, ou a oferta sistemática de cupons de desconto de R$ 10, que acaba com as margens de lucro dos estabelecimentos.

“A minha porção de calabresa custa R$ 14. Eu tenho que pagar 27% sobre o preço do pedido para o iFood. Como é que eu vou dar um desconto de R$ 10? Vai me sobrar o quê?”, questiona Jane Bassoli, sócia do marido Alexandre Bassoli no Bassa Bar e Restaurante, na zona oeste de São Paulo.

Questionado pela reportagem, o iFood não respondeu se, ao formular as suas promoções, que são as que mais chamam a atenção dos consumidores, leva em conta o percentual de lucro dos restaurantes.

Refeição a R$ 4,99

Na percepção dos estabelecimentos, a relação com o iFood começou a piorar na segunda metade do ano passado, quando o aplicativo investiu no Loop, o seu próprio “restaurante”. Por meio do Loop, o cliente programa a compra do almoço na véspera ou até as 11h do mesmo dia.

A primeira refeição é vendida a R$ 4,99, sem taxa de entrega. A partir da segunda refeição, o preço é R$ 9,99, também com entrega grátis. “Cinco reais é o preço de um salgado. Como a gente vai competir com isso? Como ter lucro e servir uma refeição decente a R$ 10, sem taxa de entrega?”, pergunta Alexandre Bassoli.

A reportagem apurou que, no caso do Loop, o iFood faz acordos com restaurantes que vendem comida por quilo. O cardápio do dia é definido previamente e, na véspera, o iFood encomenda ao restaurante a quantidade que será entregue, com base na demanda já agendada. Na prática, o aplicativo compra o aumento da capacidade do restaurante, a quem paga antecipado.

Na visão da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a prática indica dumping — quando um fornecedor põe à venda um produto a um preço muito inferior ao do mercado. “O delivery é um ponto chave para a competitividade dos restaurantes, cada vez mais os clientes buscam conveniência”, diz Célio Salles, membro do conselho de administração nacional da Abrasel. “Mas o aplicativo não pode praticar subsídio na venda dos produtos, o que acaba deturpando o equilíbrio do mercado”, afirma.

A empresa se defende. “O iFood esclarece que age de acordo com a legislação aplicável na operação do Loop e em suas demais atividades e que não compactua com qualquer tipo de prática ilegal. O modelo de negócio desse serviço tem como base a utilização da capacidade produtiva ociosa de restaurantes e o agendamento de pedidos combinado à logística de entrega eficiente, o que resulta em refeições a preços mais acessíveis.”

A prática não envolve apenas os pequenos restaurantes. O franqueado de uma grande rede de fast-food, que não quis se identificar, afirmou que o aplicativo faz promoções em que oferece desconto de 50% sobre o preço do milk shake, por exemplo. “O aplicativo me paga o preço cheio do produto, mas vende pela metade”, diz o franqueado. Neste caso, porém, o restaurante não tem prejuízo — embora a venda na sua loja física seja canibalizada, já que o cliente vai optar pelo aplicativo.

“É muito positivo atender aos anseios dos consumidores, assim como gerar novas oportunidades de negócios e fomentar a economia. Mas isso deve ser feito dentro de um modelo sustentável, em que as regras estejam claras e sejam iguais para todos, com transparência”, diz a advogada Patrícia Peck, do escritório PG Advogados, uma das pioneiras no estudo do direito digital no Brasil.

Ela lembra que a competição costuma ser acirrada em novos mercados, o que acaba gerando benefício de descontos à clientela no começo, devido à guerra de preços. “Mas se a situação perdurar, gera um canibalismo do sistema, que logo alcança um desvio perigoso”, diz Peck, que preside o Instituto iStart de Ética Digital.

Vende quem aparece primeiro

Além dos preços agressivos, uma das maiores queixas dos restaurantes se refere à transparência na exposição do seu negócio na plataforma. Quem aparece primeiro na pesquisa por categoria — lanches, padaria, comida brasileira etc. — tem mais chances de ser escolhido pelo consumidor.

“Na região do metrô São Judas, são cerca de 200 lanchonetes no iFood. Como é feito este ranqueamento? Eles dizem que a exposição depende da nota do restaurante, com base na pontualidade e na avaliação do cliente. Mas eu nunca vi essas informações. Minha lanchonete desabou das cinco primeiras posições para uma das 30 primeiras de uma hora para outra, sem ter recebido reclamação”, diz Masironi, ex-Montanha Burger.

Outro restaurante que ficou sem resposta foi o Buffet Lé com Cré, na Lapa, zona oeste de São Paulo. “Para ser mais competitivo, queria me tornar um restaurante com frete grátis, como vários que aparecem na plataforma, porque o iFood cobrava R$ 6,90 do meu cliente pela entrega. Eu perguntei o que teria que fazer, mas eles nunca me responderam”, diz Ruy da Silva Elentério, sócio do Lé com Cré.

Para aproveitar a ociosidade do buffet durante a semana, ele passou a servir almoço por quilo no restaurante, que tem capacidade para 80 pessoas. Mas, no último ano, empresas do entorno fecharam as portas e Elentério decidiu partir para o delivery, na tentativa de aquecer as vendas. Preparou fotos, cardápio e treinou pessoal. “Fiquei três meses no iFood e não vendi nada”, diz.

“A gente foi atrás por causa da superpropaganda da marca, já que eles aparecem até na novela da Globo. Achamos que o negócio iria bombar, era nossa chance de atender além dos 500 metros, que é a distância média que alguém caminha para almoçar. Mas foi só ilusão”, diz Elentério, que fechou o restaurante por quilo no fim de dezembro, para se concentrar apenas no buffet infantil. Demitiu três funcionários.

Na opinião do especialista em direito digital Renato Opice Blum, do Opice Blum, Bruno, Abrusio & Vainzof Advogados, a prática do iFood pode configurar abuso de poder econômico, caso seja comprovado que o aplicativo vem prejudicando a operação dos restaurantes. “Quando o propósito do investimento é eliminar pequenos parceiros, há concorrência desleal e dumping”, diz o advogado, professor do Insper, onde coordena os cursos de proteção de dados e direito digital.

A questão de como se dá o ranqueamento dentro da plataforma, crucial para as vendas, foi levantada junto a iFood, Rappi e Uber Eats. Todos disseram que a ordem é determinada pela “inteligência artificial” (veja mais abaixo).

Em resposta à reportagem, o iFood afirmou que os parceiros costumam apresentar 50% de crescimento nos primeiros seis meses cadastrados da plataforma. O iFood diz que “está sempre disposto a ouvir os seus parceiros e fazer melhorias em seus processos para atendê-los com mais eficiência”. Segundo o iFood, os restaurantes contam com “ferramentas de inteligência de negócio” para melhorar as vendas, um time que oferece as primeiras orientações e uma equipe de pós-venda.

Cozinhas que ninguém vê

Fundado em 2011, o iFood faz parte do seleto grupo de “unicórnios” do país — como são chamadas as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão. No final de 2018, o aplicativo recebeu um aporte de US$ 500 milhões, a maior rodada de investimentos já obtida por uma empresa na América Latina. A previsão era aplicar o montante, cerca de R$ 2 bilhões, até o fim de 2019.

Brasileiro, com operações no México e na Colômbia, o iFood é líder no mercado de entrega de comida no país, à frente dos rivais Rappi, Uber Eats e da novata 99 Food. Entre janeiro e setembro de 2019, realizou 159,3 milhões de entregas, uma média de 18 milhões de pedidos por mês, o que representa um crescimento de quase 50% sobre 2018. No período, 86 mil entregadores atenderam a 886 cidades no Brasil e na América Latina.

Todo esse poder de fogo abriu o apetite para novas empreitadas: a criação de “dark kitchens”, ou restaurantes virtuais, voltados apenas para o delivery. A aposta não é exclusividade do iFood: Rappi e Uber Eats também enveredaram por esse caminho, como uma maneira de explorar o enorme “big data” à sua disposição.

Funciona assim: a partir da sua base de dados, os serviços de entrega de comida detectam onde existe uma grande demanda por determinado tipo de produto. Elegem parceiros para abrir um restaurante naquela região, em regime de exclusividade — normalmente, os restaurantes que mais vendem na plataforma.

O aplicativo indica o melhor local para montar a “cozinha virtual” — o mesmo espaço, inclusive, pode reunir várias cozinhas diferentes (massa, pizza, sushi, hambúrguer etc), uma espécie de coworking das cozinhas, atendendo a um só aplicativo.

O empresário entra com o investimento para equipar o espaço, enquanto o aplicativo se encarrega de fazer toda a propaganda, muitas vezes criando uma marca específica, que o cliente só vai encontrar na sua plataforma.

Essa marca tem visibilidade privilegiada e costuma estar à frente dos outros restaurantes. Ao dar as ordens na cozinha, os aplicativos conseguem ter o controle sobre todo o processo e negociar melhor as margens de cada etapa.

“Para mim, o fato de eu não aderir às promoções malucas do iFood fez as minhas vendas caírem de uma hora para outra no delivery”, diz Masironi, ex-Montanha Burger. “Quem não entra no esquema deles, fica de escanteio. Eles privilegiam as dark kitchens que ajudam a montar”.

Sobre o Loop, o iFood afirma ter iniciado testes em novembro de 2018, “e o serviço foi desenvolvido com o suporte de nutricionistas e chefs consultores para oferecer um cardápio balanceado, variado e de qualidade a preços acessíveis”. “O modelo de operação do Loop traz rentabilidade aos restaurantes parceiros, que aproveitam melhor seus recursos, e também para as demais pontas do ecossistema”.

O aplicativo diz que as refeições são entregues lacradas e com as informações do restaurante. Mas não informa quais os critérios para a escolha do parceiro.

Alexandre Sampaio Padovani, dono do restaurante Hollyfood no Itaim Bibi, zona sudoeste de São Paulo, desistiu de participar das promoções semanais propostas pelo iFood. “Quando eu entrava na promoção, a média de pedidos passava de seis para 20 no dia, mas eu não tinha lucro”, diz.

Se em um primeiro momento ele encarou o custo como marketing, acabou deixando de fazê-lo. Apesar de mais do que triplicar o número de pedidos no dia, a promoção não agregava novos clientes, uma vez que a sua média diária de vendas permanecia a mesma.

“No iFood, o que compensa para mim é o cliente do salão que paga com o QR Code do aplicativo”, afirma Padovani. O cliente do iFood que usa o QR Code para pagar seus pedidos acumula pontos, que podem ser usados como desconto tanto nos restaurantes físicos conveniados quanto no próprio aplicativo, com exceção do Loop.

“O valor da compra pelo QR Code entra para mim em dois dias, muito mais rápido do que no voucher ou nos cartões de débito e crédito, que demoram 30 dias para me pagar”, diz.

Restaurante fora de área

Outra reclamação comum à maioria dos restaurantes ouvidos pela reportagem é o seu status dentro da plataforma: muitos aparecem para o consumidor como “fechados” ou com “área de atendimento reduzida”, mas estão operando normalmente. “Se a área está bombando e não tem motoqueiro suficiente para fazer as entregas, o iFood tira o restaurante da área ou reduz a sua atuação”, diz Masironi.

Alexandre Bassoli, do Bassa Bar e Restaurante, achou estranho quando consultou a visibilidade do seu estabelecimento no iFood em novembro. Em um dia de semana, pouco depois do meio-dia, o Bassa apareceu como “aberto — com área de entrega reduzida”. O estabelecimento, porém, operava normalmente. A restrição se manteve ao longo da semana.

Quando questionou o aplicativo, recebeu a seguinte resposta, dentro da plataforma: “A logística iFood, quando verifica uma alta demanda na região, como prevenção para o próprio estabelecimento, reduz o raio de atendimento ou até mesmo pode indisponibilizá-lo momentaneamente ou por um curto período a fim de o restaurante não sofrer avaliações ou receber notas baixas decorrentes de possíveis atrasos. Esta operação logística é automática do sistema”.

“Não tem cabimento essa resposta, sondei o meu principal concorrente na região e ele também estava vendendo pouco no delivery”, diz Bassoli, que afirma que o problema se repete sistematicamente com o Bassa. “No iFood, leva vantagem na exposição quem vende comida de graça. Eles subsidiam os pratos, se tornaram nossos concorrentes.”

Jane Bassoli reclama do ritmo ditado ao restaurante. “Eles determinam o tempo entre o pedido e a entrega. Mas como produzir e levar uma feijoada ou um bife à parmegiana em 25 minutos?”, diz ela, que também aponta a difícil comunicação com o aplicativo, restrita a mensagens dentro da plataforma, e o sistema de pontuação. “Eu não tenho o contato do cliente, não sei se as avaliações que recebo são de gente que realmente consumiu o meu produto.”

Encomendas que nunca chegam ao destino

Para Michel Khodair, até os entregadores do iFood complicam o relacionamento da plataforma com os restaurantes. “Um minuto depois que entra o pedido na plataforma, o motoboy chega. Estamos preparando os pratos, em um prazo super apertado para o nosso modelo de negócio, e os entregadores ficam enviando mensagem ao aplicativo, dizendo que estamos atrasados”, diz o empresário, dono do Marilyn Restaurante, no Tatuapé, zona leste de São Paulo. “Isso prejudica a nossa nota no aplicativo e a exposição do restaurante cai.”

Com pratos à la carte, o Marilyn é obrigado a vender mais caro na plataforma do que no salão, para compensar todos os gastos extras com o delivery — embalagem, lacre, sacolas, fora os 27% que vão para o iFood. “Alguns clientes falam que é mais barato pegar um Uber e vir comer no salão do que pedir minha comida pelo iFood”.

Khodair decidiu sair da plataforma no começo deste ano e contratou um serviço particular de entregas. “Estou voltando à moda antiga”, diz ele, que nem quis testar o serviço dos concorrentes Rappi e Uber Eats.

Todos os empresários ouvidos pela reportagem já contrataram motoboys particulares para o delivery, mas na maioria das vezes se queixaram de falta de profissionalismo e pontualidade — daí resolveram aderir ao iFood. E encontraram novos problemas envolvendo os entregadores. “Já tive que pegar um táxi para entregar um pedido feito pelo iFood por um cliente da pizzaria, que acabou entrado em contato comigo por estranhar a demora”, diz Rose Halphen, dona da Pedaço da Itália Pizzaria, na Lapa, zona oeste de São Paulo. A pizza encomendada pelo iFood nunca chegou ao destino.

Problemas com entregadores não são exclusivos do iFood — mesmo porque um mesmo prestador de serviço pode trabalhar para dois ou três aplicativos ao mesmo tempo.

Christiane Chaves, dona da loja de doces Sweeter, na zona sul da capital, foi protagonista de um caso esdrúxulo: uma encomenda de bolo e doces foi sequestrada por um motoboy do Rappi. “O cliente me conhecia e ligou perguntando sobre a demora na entrega. A festa já iria começar e nada do bolo e dos doces”, lembra Christiane. “Pouco depois, o motoboy me ligou e disse que só faria a entrega se eu depositasse uns R$ 20 reais de gorjeta para ele na plataforma. Não tive opção, fiz o que ele queria”.

Já com um entregador do iFood, um bolo da Sweeter também sumiu no meio do caminho. “O surreal neste caso foi que o iFood me reembolsou o valor do bolo, que nunca chegou para o cliente, mas me cobrou a taxa de entrega, que não foi feita”, diz ela, que também viu sua demanda na plataforma desabar ao longo do último ano.

“Antes, eu entregava quatro ou cinco bolos por dia pelo iFood. Depois passei a vender dois por semana”, afirma. A empresária desistiu do aplicativo e também do Rappi e Uber Eats, cujas taxas considera ainda mais caras que as do concorrente. “Fechei contrato com um motoboy, pago por quilômetro de distância. E repasso a taxa para o cliente”, diz.

Para Alexandre Lescovar, da Oh Café, que vende marmitas congeladas via delivery em Perdizes, zona oeste da capital paulista, a saída foi contratar um sistema de entregas sem comissionamento. Por meio do Apetite, ele paga R$ 11 por pedido e a taxa é repassada ao cliente. “Eu tive uma experiência muito ruim com o iFood”, diz. “Eu nunca tinha feito delivery e eles não deram qualquer apoio ou orientação, os primeiros pedidos chegaram revirados para os clientes, eu não sabia qual a embalagem adequada”, diz.

Ótimo para o cliente, péssimo para o restaurante

Enquanto dava entrevista por telefone à reportagem, Christiane Chaves, dona da loja de doces Sweeter, esperava a entrega do seu lanche, encomendado pelo iFood. Ela desistiu de contratar o serviço para entregar seus bolos, mas continua com o aplicativo instalado no seu celular. “Quero comer um hambúrguer e vêm 800 opções na minha tela. Pego a primeira que aparece. O iFood é ótimo para o cliente, mas acaba com o empresário”, diz ela. “Se eu quisesse ter uma margem de lucro, pagando a entrega e os gastos com o delivery, teria que cobrar R$ 60 por um bolo de laranja. Nada justifica esse preço.”

Christiane se incomodava especialmente com a falta de contato com o cliente — o consumidor sabe de quem está comprando, mas o restaurante nunca sabe para quem está vendendo. A identificação do comprador só fica visível para o restaurante durante o período da entrega.

Em um ramo em que a fidelidade à marca depende principalmente do bom atendimento, a falta de contato com a clientela prejudica a operação. “Já tiramos do ar determinados pratos no dia, mas a plataforma os manteve disponíveis. Os pedidos foram feitos e virou uma bagunça”, diz Michel Khodair, do Marylin Restaurante.

“Não conseguimos falar diretamente com o cliente, tem que ser via atendente do iFood, que entra em contato com o consumidor, e depois retorna para nós, para informar se vamos seguir ou não com o pedido”, afirma. “Nesse ínterim, chega o motoboy para controlar o tempo, dizendo que estamos atrasados, o que vai diminuir nossa pontuação no aplicativo. Tudo isso em meio à correria do serviço no salão. É tudo muito desgastante.”

De quem é o cliente?

Segundo o advogado especializado em direito digital Renato Opice Blum, o aplicativo poderia pedir o aval do cliente para compartilhar as suas informações com o restaurante, seguindo a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que vai entrar em vigor em agosto deste ano. “A lei não veda o compartilhamento dessas informações, que devem ser uma escolha do cliente”, diz.

Para a também especialista em direito digital Patrícia Peck, o advento dos aplicativos e plataformas digitais permitiu aumentar a inteligência de dados e conhecer mais o cliente. “Mas a questão que fica é: de quem são estes dados?”, diz ela. “Para fins jurídicos, a relação de clientela sempre foi considerada um ativo empresarial, aquilo que pode inclusive compor com o ponto comercial e a marca o valor do negócio.”

Segundo ela, com a nova LGPD, os dados pessoais são do próprio titular. Na relação com o restaurante, o consumidor pode consentir que suas informações sejam tratadas pelo estabelecimento. “Mas, a partir do momento em que a relação passou a ter um intermediário, no caso, o aplicativo, há a possibilidade legítima de tanto a plataforma ter a informação do cliente, pela relação direta com este, como o restaurante, se isso ficar estabelecido em contrato e o consumidor for avisado sobre o compartilhamento, sempre resguardando a sua privacidade”, diz Patrícia Peck. Isso significa tratar os dados de maneira estatística, anônima, não individualizada.

É por meio desse tratamento de dados que os aplicativos chegaram à instalação das cozinhas virtuais, as “dark kitchens”, criadas em parceria com alguns estabelecimentos. Neste ponto, mais uma vez, é fundamental a transparência, diz Peck.

“Quando as informações da base de dados da plataforma identificam quais os perfis de demanda não atendidos por bairros, isso deve estar disponível para todos os parceiros do aplicativo, gerando oportunidades para quem quiser explorar, o que estimula a livre concorrência”, afirma a advogada. “No entanto, se essas informações forem repassadas apenas a um pequeno grupo privilegiado, isso pode ser enquadrado como uma prática de favoritismo e ser entendido como concorrência desleal.”

Sem almoço grátis

A Abrasel, associação do setor de bares e restaurantes, já solicitou formalmente aos três principais aplicativos — iFood, Rappi e Uber Eats — o compartilhamento dos dados dos clientes. “Disseram que estão analisando”, afirma Célio Salles. Ele avalia que os grandes serviços de delivery geram impacto direto sobre o setor, ao afetarem sistema de pagamentos, tecnologia e hábitos do consumidor.

“O iFood já declarou que seu objetivo é fornecer comida a um preço mais acessível. É uma meta muito nobre, mas vai ser atingida às custas de quem?”, questiona Salles.

Ao espremer ou até aniquilar a margem de lucro dos restaurantes parceiros, investir em dark kitchens que ninguém sabe onde estão, aceitar na plataforma qualquer fornecedor com CNPJ, sem exigir as licenças da Vigilância Sanitária, a competição não está sendo fomentada em bases iguais, diz o conselheiro da Abrasel. “Quem se responsabiliza pelo que é entregue ao consumidor? Os aplicativos deveriam ser corresponsáveis pelo que vendem. Mas na maioria das vezes o cliente não recebe nem sequer a nota fiscal do que comprou”, afirma.

Na opinião de Peck, as parcerias entre as plataformas e os negócios tradicionais podem trazer grandes resultados para todos os envolvidos, incluindo os consumidores, mas é preciso cuidado para evitar abusos. “Uma coisa é fomentar o surgimento de cozinhas voltadas para entregas, outra coisa é estimular um modelo de cozinha clandestina que não esteja cumprindo a legislação de vigilância sanitária, nem pagando impostos.”

A especialista ressalta que a sociedade vive um momento de inovação em várias frentes e algumas das novas tecnologias são disruptivas. O modelo de negócios dos aplicativos de entrega de comida deve respeitar o previsto na lei 12.529/2011, de Defesa da Concorrência, especialmente o artigo 36, que define crimes contra a ordem econômica, como prática de preço predatório, venda casada, abuso de posição dominante e criação de dificuldades ao concorrente.

“Para ser um modelo sustentável, saudável, duradouro, precisa ser bom para todos, consumidores e a livre concorrência”, diz Peck. “Com o aumento potencial do lucro, sempre vem a reboque o aumento da responsabilidade.”

Com a palavra, os aplicativos

Os principais aplicativos de entrega de comida no país — iFood, Rappi e Uber Eats — foram questionados pela reportagem acerca das queixas dos restaurantes.

A reportagem testou o serviço dos três aplicativos. Nenhuma das entregas veio com cupom fiscal. Quando questionados a respeito, as empresas foram rápidas em responder ao cliente, via telefone ou e-mail. Em qualquer um dos casos, disseram que isso é uma responsabilidade do restaurante.

O iFood diz exigir, em contrato, que “os estabelecimentos cumpram todos os requisitos legais necessários estabelecidos pelo poder público, responsável pela fiscalização”. Mas, no aplicativo, basta informar um CNPJ para fazer o cadastro.

A empresa diz que, ao personalizar a experiência do consumidor por meio da inteligência artificial, há variação no ranqueamento dos restaurantes na plataforma. Caso o restaurante não consiga atender o tempo de preparo que ele mesmo determinou, pode interromper a venda. “O último recurso é [o iFood] ajudar, fechando o estabelecimento momentaneamente, para evitar que isso impacte a própria operação e avaliação do restaurante, bem como a experiência dos clientes.”

Segundo o aplicativo, cerca de 30% dos restaurantes utilizam o modelo em que a plataforma conecta os entregadores que fazem as entregas. “Nesse caso, os entregadores podem informar o iFood sobre possíveis atrasos do restaurante pelo chat no próprio aplicativo, ou entrar em contato com o cliente e/ou restaurante por meio do app”.

A Rappi, por sua vez, não informa quais os critérios para a exposição dos restaurantes dentro da plataforma e como se dá o ranqueamento dentro da categoria. “Por questões estratégicas de negócio, a Rappi não divulga essa informação”, diz. A empresa respondeu o mesmo sobre o que um restaurante precisa fazer para obter a entrega grátis. A respeito do percentual cobrado sobre os pedidos, diz que o “valor varia de acordo com a negociação com cada estabelecimento”.

Sobre os critérios para escolha de um parceiro em uma dark kitchen, a Rappi diz que se baseia em três modelos: os restaurantes que estão com um bom desempenho, mas cujas cozinhas já não suportam tanto a demanda; os que estão bem estabelecidos em um bairro, mas ainda não conseguem chegar a outras regiões; e novos estabelecimentos com alto potencial de crescimento, que ainda não possuem condições financeiras para investir em uma ampliação.

A empresa afirma não solicitar a confirmação de regularização do restaurante junto à Vigilância Sanitária por entender que “essa é uma obrigação e uma prerrogativa dos estabelecimentos comerciais para operar”. Segundo a Rappi, o endereço das dark kitchens é divulgado. “Elas aparecem no aplicativo na categoria ‘cozinhas exclusivas’, dentro do botão ‘Restaurantes’ e, quando o cliente faz o pedido, consegue ver o endereço da DK no mapa de entrega.” A reportagem, porém, não conseguiu visualizar essa informação.

De acordo com o Uber Eats, as pequenas e médias empresas são 70% da sua base. Segundo a empresa, as taxas sobre os pedidos são negociadas caso a caso, e “nelas já estão inclusas a taxa de cartão de crédito, a logística através dos nossos restaurantes parceiros e toda tecnologia do algoritmo e inteligência artificial da Uber Eats”.

O aplicativo diz oferecer aos restaurantes insights baseados nos dados que coletou, como “oportunidade de incremento ou variação de seus cardápios e de suas cozinhas”.

“Por meio da inteligência artificial, a empresa identifica oportunidades como as culinárias mais procuradas em cada região e propõe diálogos com empreendedores parceiros”, diz a empresa a respeito da instalação das dark kitchens, sem informar quais são os critérios para a seleção desses restaurantes. “Temos analisado cuidadosamente as oportunidades do setor e trabalhado junto com nossos parceiros para ampliar esse modelo”, afirma.

No que se refere às normas da Vigilância Sanitária, a Uber Eats diz que, “ao se inscrever na plataforma, o restaurante atesta estar de acordo com essas exigências e é responsável pela manutenção de todas as permissões”.

Fonte: BBC
Link: Apps estão falindo restaurantes

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