A cada cinco resgatados em trabalho escravo no Brasil, quatro são negros

Uma família de homens e mulheres negras. Nenhum dos quatro filhos conseguiu terminar o ensino médio. Cresceram na roça e começaram a trabalhar ainda crianças. João (nome fictício), de 26 anos, deixou a escola na sexta série, por volta dos 12 anos. Desde então, trabalha cortando cana ou colhendo café. Em agosto de 2018, foi um dos 18 trabalhadores resgatados em situação análoga à de escravo em uma fazenda de Minas Gerais.

João é parte dos números que, para especialistas, comprovam a marginalização das populações negras. A cada cinco trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão entre 2016 e 2018, quatro são negros. Pretos e pardos representam 82% dos 2.400 trabalhadores que receberam seguro-desemprego após resgate.

Entre os negros resgatados estão principalmente homens (91%), jovens de 15 a 29 anos (40%) e nascidos em estados do Nordeste (46%). O levantamento foi feito pela Repórter Brasil, com base em dados obtidos da Secretaria do Trabalho, por meio da Lei de Acesso à Informação.

2.000 trabalhadores negros resgatados

O chamado seguro-desemprego trabalhador resgatado é um auxílio temporário destinado às vítimas de trabalho escravo.

Entre 2016 e 2018, de 2.570 trabalhadores resgatados, 2.481 receberam auxílio (96%), sendo que 343 se autodeclararam brancos e 2.043 negros (soma de pretos e pardos). Os demais se autodeclararam amarelos (18), indígenas (66) ou não fizeram declaração de raça.

“Ser negro é igual a estar sujeito a situações diversas em que sua vida é desvalorizada, você é um ser desqualificado socialmente e sua cultura é deslegitimada”, afirma Sérgio Luiz de Souza, professor da Universidade Federal de Rondônia e pesquisador de História Afro-brasileira e Africana, mostrando como os números são sintomas da realidade vivida pelos negros ainda hoje.

“As populações negras, que são metade da população brasileira, não têm acesso ao ensino superior, ao Parlamento, têm menos acesso à saúde, à educação, são os mais pobres, vivem menos.”

Baixo acesso a educação

Os dados também revelam que a maioria dos resgatados, assim como João, não concluíram o ensino fundamental: 56%. Entre o total havia ainda 14% de analfabetos.

“Sinal gritante da desigualdade”, na avaliação de Gildásio Silva Meireles, agente do Centro de Defesa da Vida de Açailândia, no Maranhão, onde auxilia trabalhadores explorados, após ser resgatado 12 anos atrás. “É uma questão de sobrevivência. A maioria de nós [negros] não tem estudo e se sujeita a qualquer situação para tirar o sustento da família”, afirma.

Do total de negros resgatados, 62% eram trabalhadores rurais, florestais e da pesca; 29% atuavam na indústria.

O estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado no último dia 12, mostrou que a população negra representa 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados, além de ganhar menos do que os brancos.

“O dinheiro que sobra é só para comer. Queria estudar melhor para não ficar passando por isso. Mas não tive oportunidade”, diz João.

Mas educação é a solução?

Para Jorge Ferreira dos Santos, coordenador da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG), não nos moldes atuais.

“Qual modelo de educação ajuda a libertar nosso povo? Esse modelo que está aí nos prepara para sermos escravos do sistema. As oportunidades que temos hoje são o trabalho doméstico, a roça, a construção civil”, afirma Santos. “Continuamos acorrentados, senão pela corrente física, pela lei que mais exclui do que inclui.”

Desigualdade naturalizada

João continuou trabalhando na colheita do café, mesmo depois do resgate feito pelos auditores fiscais do então Ministério do Trabalho, atual Ministério da Economia. Diz que a situação em que foi resgatado em Minas foi a pior pela qual já passou. A casa onde dormia estava cheia de ratos; a caixa d´água, infestada de morcegos; o pagamento não era adequado. “Mas é sempre sofrido.”

A fazenda de onde ele foi resgatado exibia certificações internacionais renomadas, entre elas a C.A.F.E. Practices, selo da Starbucks em parceria com SCS Global Services, e a certificação da UTZ, a maior da indústria cafeeira.

Para o professor Souza, há uma naturalização da desigualdade. “Escravizar um negro, tomar a terra de um indígena ou de um quilombola, matar uma negra, é irrelevante e socialmente aceitável. São seres invisibilizados.”

Em 2007, quando foi resgatado, Meireles conheceu o Centro de Defesa da Vida de Açailândia (MA). Passara cinco meses e meio trabalhando em uma fazenda, na roçada de pastos, sem receber um real. Fazia parte de um grupo de 18 trabalhadores que contraía dívidas ao chegar na propriedade, passava o dia vigiado e vivia em condições insalubres: sem água potável, sem banheiro, dormindo com os animais da propriedade.

Meireles conseguiu fugir, buscou ajuda e voltou para resgatar os demais. Após cinco meses sem notícias suas, a esposa quis o divórcio. Sem ter para onde voltar após o resgate, ficou em Açailândia e decidiu trabalhar na causa. Hoje, atua em Monção, também no Maranhão. “Os casos existem, mas são mais camuflados do que antigamente.”

O caminho para um país com equidade e voltado para a diversidade social, étnica, racial e de gênero passa, segundo o professor Souza, por ações do Estado e da sociedade.

Para ele, o governo deve implementar políticas como ampliação de universidades e instituições de pesquisas, cotas e leis pró-diversidade, mas a sociedade civil e grupos que conseguem chegar ao governo também precisam agir. “Não existe a implementação de políticas públicas e de instrumentos do Estado sem luta social. A sociedade é dinâmica”, afirma.

Fonte: UOL
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