Jornadas exaustivas, remuneração abaixo do salário mínimo e punições arbitrárias repetem-se dos dois lados do Atlântico… Mas no país europeu, decisão judicial recente reconheceu vínculo de emprego que garantia direitos. Chegaremos lá?
Navegando de bicicleta por uma rua do Rio de Janeiro inundado, Rudi é abordado por uma repórter de TV, que questiona se ele não pararia de trabalhar no meio daquele dilúvio: “se parar, eles bloqueiam a gente (…), mandei foto e tudo, mas eles falaram, não posso fazer nada, tem que ir”. Patentemente temeroso, o entregador hesita antes de revelar o seu nome, seguindo a sua travessia1. Na mesma semana, só que em Madri, outro entregador também foi entrevistado. Nada temeroso, Isaac falou como primeiro entregador a ser parte em uma decisão do Tribunal Supremo da Espanha, relatando detalhes do seu trabalho, como a preocupação da empresa com o hamburguer no momento em que ele sofreu um acidente, e das dificuldades por que passou depois do infortúnio2.
Apesar das semelhanças, Rudi e Isaac tendem a ter desfechos diferentes para as suas histórias como entregadores. Os aplicativos de entrega adotam um modelo de organização do trabalho muito similar no Brasil e na Espanha. Sua característica mais destacada, associada aos instrumentos digitais de gestão, é identificar os entregadores como autônomos3. É desse ponto que surgem as polêmicas e as disputas cujos desfechos jurídicos se distanciam entre os dois países, apesar de as condições vividas pelos trabalhadores nos dois continentes serem muito parecidas.
Essas semelhanças aparecem em nova fase da pesquisa realizada em parceria entre a Universidade Federal da Bahia (UFBA, Projeto Caminhos do Trabalho) e a Universidade Complutense de Madrid (UCM), como parte do programa CAPES-Print. Após acompanhar entregadores no Brasil no início de agosto4, foram entrevistados, na Espanha, 25 entregadores vinculados a 7 empresas, e distribuídos por 11 cidades e 7 comunidades autônomas (o equivalente aos estados no Brasil) do país europeu.
A grande maioria dos respondentes é espanhol, usa moto ou carro próprio, tem mais de 25 anos, trabalha há mais de 12 meses exclusivamente para os aplicativos, e tem inscrição como autônomo no INSS. Desse modo, a amostra apresenta uma espécie de elite dos entregadores, já que na Espanha grande parte deles é imigrante, muito jovem, guiando bicicletas e pagando “aluguel” da conta – sem documentos, trabalhadores pagam para usar o perfil de outras pessoas nos “aplicativos”, o que provavelmente intimida a participação em pesquisas. Portanto, os resultados a seguir subestimam as condições precárias que a média dos entregadores no país europeu vivem.
Dos entrevistados, 69,6% afirmaram trabalhar 6 ou 7 dias na semana (34,8% laboram todos os dias), indicando que trabalhar 340 dias por ano, como apurado em recente processo judicial5, parece ser comum. Na Espanha, algumas empresas impõem e restringem os dias e horários em que os entregadores podem ficar on-line. Com isso, é comum que os trabalhadores tenham menos tempo on-line do que gostariam para sobreviver, o que se agravou após a pandemia (cerca de 70% tiveram menos trabalho no período). Mesmo assim, no mínimo 56,6% e até 69,5% trabalham acima da jornada normal semanal (40 horas na Espanha), e entre os trabalhadores que forneceram horários precisos, a média é de 55,3 horas.
A renda média líquida caiu 24,4% com a pandemia, chegando a 798,5 Euros, e 59% dos entrevistados têm rendimento substancialmente menor do que o salário mínimo líquido mensal (1037 Euros, considerando os 14 pagamentos anuais). Vale ressaltar que o salário bruto de um entregador, para uma jornada normal, deveria ser de 1570 Euros, conforme decisões judiciais6. Considerando que os entregadores trabalham em média jornadas acima do máximo legal, o pagamento recebido por hora é mais adequado para calcular a magnitude dos seus ganhos. Nesses termos, após a pandemia, 88,3% passaram a receber menos do que o salário mínimo líquido.
Mais de um terço dos entregadores já sofreram acidente trabalhando para os aplicativos. Somados aos que conhecem alguém que tenha sofrido, são 4 de cada 5 respondentes. Segundo os entrevistados, em 62,5% desses infortúnios a empresa não deu qualquer suporte ao trabalhador acidentado, havendo relatos de insistência para a realização da entrega (assim como ocorreu com Issac).
O cenário espanhol parece muito com o brasileiro, como têm mostrado as evidências7, inclusive do projeto UFBA-UCM8, que apurou entre os entregadores uma jornada média de 10 horas e 24 minutos por dia, 64,5 horas por semana, 70,9% trabalhando 6 ou 7 dias na semana (um terço todos os dias). Ademais, após a pandemia seus rendimentos líquidos caíram 18,6% (a maioria recebendo abaixo do salário mínimo). Dos entrevistados, 70% sofreram acidente ou conhecem alguém que tenha sofrido. Dos acidentados, 83% relataram falta de apoio da empresa ou bloqueio após o infortúnio.
Essas condições precárias (e cada vez piores) e abaixo dos mínimos legais têm promovido, no Brasil e na Espanha, muita reclamação e diferentes reações dos entregadores, com disputas e alternativas mais desenvolvidas no país europeu.
Uma das reações, que busca superar a própria subordinação, é a formação de cooperativas de entrega. Os desafios são grandes, pois além dos tradicionais obstáculos desse tipo de empreendimento, como possível hierarquização interna, estamos tratando de um mercado dominado por megaempresas com as quais elas têm que competir. Não bastasse, como as cooperativas entregam mercadorias produzidas por outros, elas ficam imprensadas entre empresas e consumidores, podendo perder o controle da organização do trabalho e retornando à subordinação, desta vez imposta pelos restaurantes (lembrar que “cooperativas” de motoboys já viveram isso no Brasil).
Outros, a partir da subordinação e a condição assalariada a que estão submetidos, têm lutado por seus direitos, com diferentes estratégias, seja mobilizando diretamente os trabalhadores, seja pressionando o Estado a cumprir a legislação trabalhista, que, mesmo precarizada após as inúmeras reformas trabalhistas, impõe limites ao arbítrio empresarial.
Por fim, uma parte dos entregadores defende o atual modelo contratual. No caso dos contratados como autônomos entrevistados pela pesquisa UFBA-UCM na Espanha, a maioria (60,9%) prefere seguir com o mesmo arranjo, resultado semelhante ao encontrado no Brasil (54,4%). As justificativas dos respondentes, em ambos os casos, foram quase sempre ter mais flexibilidade, autonomia e rendimentos. Alguns entregadores, em ambos os países, responderam textualmente preferir o atual arranjo porque: “não quero ter chefe”.
Contudo, a imensa maioria desses mesmos entregadores já foi bloqueada, desligada, ou conhece alguém que já tenha sido bloqueado ou desligado pelos “aplicativos” (na Espanha 82,6% e no Brasil 80%). Dentre eles, quase metade sequer sabe o motivo do bloqueio ou desconexão (44% na Espanha e 45% no Brasil), mesmo que alguns tenham insistido com a empresa para saber o que aconteceu. Assim, apesar de “não ter chefe” ser alegadamente a característica básica do trabalho com “aplicativos”, as condições e a própria relação de trabalho, além de unilateralmente determinadas pelas empresas, são feitas de modo amplamente arbitrário.
Portanto, há uma situação contraditória na defesa do contrato de “autônomo” com base nas justificativas apuradas, pois esses trabalhadores reportam condições mais rígidas, arbitrárias e piores rendimentos do que aqueles formalmente empregados.
Os dados sugerem uma grande ironia no mantra da “autonomia” e “liberdade” que as empresas repetem o tempo todo para convencer trabalhadores e o resto da sociedade. A relação que as empresas mantêm com os entregadores, sob o rótulo de trabalho “autônomo”, é completamente despótica, todavia, elas aludem à “democracia” para tentar fugir da legislação trabalhista. A “liberdade de trabalho”, tão evocada por empresários do século XIX para resistir à limitação das jornadas e do trabalho infantil, está de volta.
Nesses tempos em que é preciso defender o óbvio, lembremos que o direito do trabalho reduz a arbitrariedade do trabalho assalariado (despotismo patronal garantido pelo Estado). Ao invés de relações de trabalho organizadas por decisão unilateral da empresa (que os trabalhadores isolados “aceitam para sobreviver”), como no caso dos aplicativos, o direito do trabalho incorpora outros agentes ao processo decisório, seja via sindicatos ou legislação. Portanto, o direito do trabalho não democratiza as empresas (que continuam a ter donos), mas sem ele a democracia certamente está muito mais distante das relações de trabalho.
Por que, então, parte dos entregadores rejeita o contrato de emprego? Dentre outras hipóteses, isso pode envolver a rejeição às condições cada vez mais precárias que o emprego formal oferece, como também alguma espécie de resistência à própria subordinação. Contudo, fora do emprego formal a situação é ainda pior, pois não há limite à exploração. Ademais, aqueles que efetivamente não “querem ter chefe” buscam cooperativas ou outros modelos em que não recebam ordens unilaterais, como eles mesmos admitem acontecer nos aplicativos. Assim, a contradição flagrante entre objetivos (autonomia, etc.) e defesa de meios que os inviabilizam indica que o discurso empresarial parece encontrar forte eco em boa parte dos entregadores. Empresas e grande mídia martelam reiteradamente que Rudi e Isaac estão entre os neoempreendedores9 do Brasil e da Espanha, e muitos realmente parecem acreditar nisso.
Ressalte-se que, como empregado formal e com representação coletiva, o trabalhador pode ter (e é mais provável que consiga) efetiva flexibilidade no contrato. Dentre os precedentes, vale citar as trocas de turno, pelos próprios trabalhadores, previstas em convenção coletiva. No caso dos entregadores, uma solução simples seria, via acordo coletivo, assegurar horas mínimas (e pagamento pelo tempo à disposição) para que o trabalhador optasse por exercê-las ou não. Assim, por exemplo, o entregador teria 40 horas semanais garantidas, com valor mínimo de 20 reais por hora, e caberia a ele, agora com segurança de trabalho e renda mínimos, decidir quantas horas gostaria de trabalhar.
É também preciso entender que a modalidade de contratação dos entregadores, bem como de qualquer profissão, não é um problema apenas setorial, mas de toda a sociedade, pois se um modelo com menos (ou nenhum) direitos trabalhistas se legitima, ele tende a se espalhar pelo mercado de trabalho, afetando toda a população.
No Brasil, a ironia da “autonomia” cada vez mais se fortalece na regulação do trabalho para os aplicativos. A despeito das divergências nas instâncias inferiores, há poucos dias, outra decisão do TST sobre o Uber aceitou a alegação empresarial de que os motoristas seriam autônomos, fundamentalmente por supostamente não ter exigência de horário e outras metas10 (outra ironia, pois é justamente isso que caracteriza o contrato intermitente, tão defendido pelas empresas na chamada reformas trabalhista de 2017). Apesar das decisões proferidas, ainda não há um entendimento uniformizado dessa corte sobre o tema.
Na Espanha a situação é inversa. Após disputas na primeira instância, quatro cortes superiores que se pronunciaram sobre o trabalhado dos entregadores reconheceram seus vínculos de emprego. E na última semana, o Tribunal Supremo reconheceu a natureza empregatícia da relação entre aplicativo e Isaac, com base no fundamento de que a empresa: “no es una mera intermediaria en la contratación de servicios entre comercios y repartidores. Es una empresa que presta servicios de recadería y mensajería fijando las condiciones esenciales para la prestación de dicho servicio. Y es titular de los activos esenciales para la realización de la actividad. Para ello se sirve de repartidores que no disponen de una organización empresarial propia y autónoma, los cuales prestan su servicio insertados en la organización de trabajo del empleador.”11
O reconhecimento do vínculo de emprego entre trabalhadores e “aplicativos” é também verificado em países como França, EUA, Suíça e Reino Unido, engendrando um alento civilizatório para as relações de trabalho no mundo. Quiçá as coisas mudem no Brasil, e o destino de Roni, após o dilúvio, seja ter seus direitos reconhecidos, como Isaac.
Fonte: Outras Palavras