Central dos Sindicatos Brasileiros

A Era Vargas, o suicídio e o petróleo

A Era Vargas, o suicídio e o petróleo

Suicídio de Getúlio, há 60 anos, garantiu a continuidade de suas políticas, eleições e mesmo a permanência da Petrobras nas mãos dos brasileiros

* José Augusto Ribeiro

Este ano de 2014 marca os sessenta anos da maior tragédia da história republicana do Brasil, tragédia que, para seu maior protagonista e vítima, foi também o maior triunfo: o suicídio do presidente Getúlio Vargas, na manhã de 24 de agosto de 1954, adiou até 1964 a implantação de um regime destinado a conter ou mesmo liquidar – o que não conseguiria ou só conseguiria em parte – os avanços daquele período de nossa história conhecido como a Era Vargas.

De fato, a morte de Getúlio realizou o que ele pretendia: resgatou sua honra pessoal, enxovalhada por uma campanha cruel e devastadora de opinião pública; evitou uma guerra civil; garantiu a realização das eleições marcadas para 1954 e 1955 e, nestas, a eleição do presidente Juscelino Kubitschek; e impediu a liquidação das realizações dos dois governos Vargas, desde a legislação trabalhista iniciada já em 1930 até a Petrobras, criada por lei em 53.

Ainda nos anos subsequentes a 54 surgiu a alegação, sustentada por supostos argumentos psiquiátricos e psicanalíticos, de que Getúlio era um homem neuróticamente compelido à ideia do suicídio, ao qual teria recorrido para fugir às próprias responsabilidades e às ameaças implícitas na crise de agosto. Citavam-se, a propósito, dois momentos em que ele teria estado próximo do suicídio: o deflagrar da Revolução de 1930 e os primeiros dias da Revolução Paulista de 1932.

Mas a publicação, em 1995, por sua neta Celina Vargas do Amaral Peixoto, do diário até então secreto deixado por Vargas, mostrou claramente o que de fato acontecia em outubro de 1930. Ele confidenciou a Oswaldo Aranha, seu maior amigo e principal articulador civil da Revolução, que não poderia voltar derrotado ao Rio Grande do Sul. A vingança do governo Washington Luís se abateria sobre o Rio Grande e este pagaria muito caro por uma culpa que era exclusivamente dele. Sua morte permitiria que o Rio Grande e seu povo fossem poupados. Oswaldo Aranha concordou com ele e tomou a mesma decisão – derrotado, não voltaria vivo. E nunca ninguém alegou que Oswaldo Aranha tivesse alguma compulsão neurótica pelo suicídio.

Em 32, não houve registro equivalente no diário de Getúlio. Existe apenas a versão segundo a qual Oswaldo Aranha, dias após o levante rebelde em São Paulo, teve de dormir no Palácio Guanabara, perto de Getúlio, para impedir que ele se suicidasse. De Getúlio houve, já em 1933, uma conversa com Assis Chateaubriand, o jornalista, na qual Getúlio contou “um segredo absoluto”, que Chateaubriand deveria guardar para uma futura biografia dele, Getúlio: que numa das primeiras noites de combate correram boatos de que unidades do Rio se uniriam a São Paulo para depô-lo. Ao mesmo tempo, Getúlio recebeu a informação de que alguns generais queriam vê-lo. Informado também de que pretendiam pedir sua renúncia, preparou-se para resistir. Escreveu uma carta endereçada “à nação brasileira”, armou-se com dois revólveres e avisou que receberia os generais. Estes, porém, não apareceram. “Depois  ironizou Getúlio  até promovi alguns deles.” Como logo se verificou, não havia unidades rebeladas no Rio, o governo estava firme e em pouco tempo derrotaria os rebeldes.

A partir desses dois momentos é que se montou a teoria da compulsão de Getúlio ao suicídio, teoria que procurava minimizar e desconstruir o significado verdadeiro do suicídio e suas consequências no futuro do País.

Covardia e dever

Antes mesmo da Revolução de 30, Getúlio já tinha manifestado ao filho Lutero o que pensava do suicídio. Lutero, normalmente um jovem alegre e expansivo, andava triste e calado. O pai, preocupado, interpelou-o. O filho respondeu que não estava mais vendo sentido na vida. A vida – disse – não pode ser só cuidar de vacas durante o dia e de mulheres à noite.

Ouvi isso do próprio Lutero, em 1979, e ele, ao contar, desculpava-se por essa ideia tão grosseira e machista. Mas era jovem e imaturo na época e agora que me contava queria reproduzir com fidelidade a conversa.

Getúlio, ao ouvir essas palavras, respondeu a Lutero que a sensação de perda do sentido da vida revelava um estado de depressão que poderia ser perigoso caso se prolongasse e aprofundasse. Quando não enfrentada e vencida a tempo, acrescentou Getúlio, a depressão pode levar ao suicídio.

E o suicídio – prosseguiu Getúlio – é quase sempre um ato de fuga e covardia. Num caso, porém, o suicídio não é covardia. E quando um líder político sacrifica a própria vida para salvar a de compatriotas.

Nessa conversa, Getúlio contou a Lutero a história de José Manuel Balmaceda, presidente do Chile. No fim do século 19, Balmaceda foi um presidente decidido a defender os interesses de seu país contra os interesses estrangeiros que o ameaçavam, exploravam e roubavam. A maior riqueza natural do Chile era o cobre, explorado por capitais ingleses, que levavam-no embora, exauriam suas minas e quase nada deixavam em troca. Balmaceda opôs-se a isso. A Inglaterra era rica, forte e implacável, conhecida na época como a “pérfida Albion”, mandava e desmandava no mundo inteiro, não gostava de ser contrariada e reagia com os canhões de sua marinha.

Balmaceda tentou até atrair capitais norte-americanos, para concorrerem com os ingleses. Não adiantou. Uma guerra civil, apoiada e financiada pelos ingleses, derrubou-o e amigos o levaram para a embaixada da Argentina, que lhe concedeu asilo. Mas para o novo regime, dócil aos ingleses, seria um perigo Balmaceda asilado na Argentina. Jovens partidários de Balmaceda começaram a armar-se, para reiniciar a guerra civil, uma guerra impossível. Balmaceda percebia isso e não queria que milhares perdessem a vida. Escreveu seu testamento político, chamou alguns amigos e entregou-lhes a carta. Em seus aposentos na embaixada, pouco depois, matou-se com um tiro.

No caso de Balmaceda – disse Getúlio a Lutero – o suicídio não foi um ato de covardia. Era até um dever, o dever de preservar a vida de milhares de chilenos decididos a recomeçar a guerra civil.

Era essa a visão de Getúlio, não aquela compulsão neurótica à autodestruição. Foi essa a visão que o levou, em 1954, a sacrificar a própria vida para salvar a de outros brasileiros. Ele chegou, naquela crise, a dizer que não permitiria o sacrifício de um só brasileiro. Na própria madrugada de 24 de agosto, quando Lutero foi comunicar-lhe que estavam, ele e os amigos, prontos para resistir ao golpe, Getúlio respondeu:

Não, meu filho. Se hoje correr sangue, vai ser exclusivamente o de um homem que já comeu muita carne… (uma antiga expressão gaúcha que significava “um homem muito velho”.)

Século do Petróleo

O suicídio salvou muitas vidas, com o acréscimo de que, ao salvá-las, Getúlio realizou outros propósitos, um imediato, resgatar a própria honra, outros a longo prazo, como a preservação de suas maiores realizações: entre elas, a criação da Petrobras.

Não temos dado, nos dias atuais, a devida importância à criação da Petrobras, nem aos enormes esforços de muitos estrangeiros – empresas, governos e pessoas – para liquidá-la e abrir o petróleo brasileiro, que hoje sabemos existir em abundância, a capitais estrangeiros em nada diferentes daqueles que, no tempo de Balmaceda, exploravam o cobre do Chile.

Já se disse e repetiu muitas vezes que a história do século 20 foi a história do petróleo. Clemenceau, o primeiro-ministro que liderou a França nos dias da Primeira Guerra Mundial, dizia que os países aliados tinham derrotado a Alemanha em 1918 navegando no oceano de petróleo fornecido pelos Estados Unidos. Na Segunda Guerra, Hitler não se contentou com o domínio de quase toda a Europa, inclusive a França, e também dos campos petrolíferos dos Balcãs. Voltou-se, em 1941, contra a então União Soviética em busca não apenas de espaço vital, mas sobretudo de petróleo. Isso foi, para ele, o começo do fim, decretado em sua derro¬ta na batalha de Stalingrado.

No continente americano, o petróleo, antes mesmo da Primeira Guerra, estava por trás das invasões do México pelos Estados Unidos a pretexto da revolução mexicana de 1910. Daí o velho ditador Porfírio Dias, tão protetor dos interesses norte-americanos no México, queixar-se do destino: “Pobre México, tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidos.”

Na América do Sul, o petróleo provocou, entre as duas guerras mundiais, a terrível Guerra do Chaco, oficialmente entre a Bolívia e o Paraguai, mas na verdade entre a Shell e a Standard Oil (Exxon). Mas levou também à criação de estatais hoje liquidadas ou moribundas, como a Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), argentina, e à legislação petrolífera nacionalista do primeiro governo Vargas, em 1938, com a criação do Conselho Nacional do Petróleo.

Já em 1906, jovem de 24 anos, Getúlio denunciava o que chamou a coação da história sobre países como o Brasil, condenados a importar produtos industriais elaborados a partir de suas riquezas naturais. Foi em discurso de saudação, em nome dos estudantes, ao presidente eleito Afonso Pena, que visitava o Rio Grande antes de tomar posse. O Brasil dispunha de minério de ferro, mas ainda não tinha uma indústria siderúrgica. Tudo era importado, a preço muito maior que o do minério bruto exportado. O Brasil tinha fundições primitivas, mas talvez importasse até enxadas para o plantio de suas roças. Muitas dessas fundições foram fechadas em virtude de uma política tarifária que na verdade, e em nome da liberdade de comércio, protegia o produto estrangeiro contra o produto nacional. Naquela época o Brasil era o paraíso dos representantes comerciais estrangeiros, porque importava até o que poderia produzir aqui: alimentos como a manteiga e mesmo a louça sanitária. Isso para não falar nos derivados de petróleo, já que ainda não tínhamos produção petrolífera.

Revolução de 30

A questão do petróleo só começou a ser objeto de medidas de fundo do governo brasileiro com a Revolução de 30, no início da era Vargas.

A preocupação mais imediata do governo provisório era, no plano econômico, o café brasileiro, que enfrentava desesperadamente duas crises mortais: a crise mundial recente desencadeada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929 e a crise mais antiga da superprodução brasileira, que aviltava, junto com manobras especulativas, os preços internacionais.

A longo prazo, porém, as prioridades econômicas de Getúlio eram a siderurgia e o petróleo. Essa reflexão tinha como ponto de partida o discurso de 1906.

Isso que Getúlio vê em 1906, pelos sintomas ou pelos efeitos, é o quadro econômico contra o qual ele vai lutar nos 48 anos que ainda viverá. Como tantos outros países periféricos, o Brasil era exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. Há um momento em que o minério de ferro do Brasil impressiona os técnicos das indústrias siderúrgicas da Europa e Estados Unidos, mas o Brasil importa até as grades de ferro que cercarão as árvores da recém aberta Avenida Central, no Rio.

Nessas poucas palavras, sobre a coação da história a estrangular o futuro de países como o Brasil, encerra-se toda a política econômica da Revolução de 30, do presidente que ela levou ao poder e de toda a Era Vargas: fazer do Brasil um país que transforme em aço o ferro de seu subsolo, que explore seu petróleo e suas fontes de energia elétrica, que produza tratores, caminhões, automóveis e até aviões, um país não mais vítima, mas protagonista e criador de seu futuro.

Quando da crise de agosto de 54, o Brasil já tinha siderurgia (Volta Redonda) e a Petrobras. Um auxiliar direto de Getúlio, o general Mozart Dornelles, subchefe do Gabinete Militar, era, fazia anos, amigo de Assis Chateaubriand, o mais poderoso empresário da indústria da comunicação no Brasil. Era por suas televisões em São Paulo e Rio que o jornalista Carlos Lacerda liderava a campanha para a deposição de Getúlio. O general Mozart sentiu-se na obrigação de procurar Chateaubriand, a quem perguntou por que a virulência, o ódio daquela campanha. Chateaubriand explicou: “Mozart, eu adoro o presidente Getúlio. E só ele desistir da Petrobras que eu tiro a televisão do Carlos Lacerda e entrego a quem o presidente quiser, para defender seu governo.” O general, de volta ao Palácio do Catete, foi falar com o ministro da Justiça Tancredo Neves, e saber se deveria contar a Getúlio a conversa. Tancredo respondeu: “Acho que você deve contar. Mas esteja certo de uma coisa. O presidente morre mas não desiste da Petrobras.”

*José Augusto Ribeiro é jornalista e autor da trilogia “A Era Vargas”.

Fonte: Edição de agosto da Revista Caros Amigos