Ministro Paulo Guedes e presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, são donos de offshore
Os dois integrantes do Governo Bolsonaro mantêm contas no exterior apesar da importância de seus cargos, o que pode configurar conflito de interesses.
Os dois homens mais poderosos do universo econômico brasileiro, Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, respectivamente ministro da Economia e presidente do Banco Central, aparecem no Pandora Papers. Ambos, segundo a investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em sua sigla em inglês), do qual o EL PAÍS participa, criaram empresas em paraísos fiscais e nunca informaram sobre isso à opinião pública, apesar da relevância de seus cargos.
Guedes, de 72 anos, aparece como acionista da empresa Dreadnoughts International Group, registrada nas Ilhas Virgens Britânicas. Trata-se de uma shelf company, como são conhecidas no jargão financeiro: empresas fundadas em paraísos fiscais, mas que podem permanecer anos sem atividade à espera de que alguém lhes dê uma função. Os documentos mostram que o ministro possuía em 2014 pelo menos oito milhões de dólares (43,3 milhões de reais, pelo câmbio atual) investidos na companhia, registrada em seu nome e nos de sua esposa, Maria Cristina Bolívar Drumond Guedes, e filha, Paula Drumond Guedes. Esse número subiu para 9,5 milhões no ano seguinte, segundo os documentos obtidos pela investigação, liderada pela revista Piauí.
Quem intermediou a compra da offshore foi a Trident Trust, uma empresa suíça que mantém filiais em vários paraísos fiscais e oferece soluções discretas para pessoas ou organizações que desejem manter suas atividades ocultas, segundo fontes do mercado financeiro. É um serviço semelhante ao prestado pela Mossack Fonseca, o escritório de advocacia panamenho que ficou famoso depois que o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos revelou seus documentos, em 2016.
No Brasil, é habitual que os sócios e altos executivos de bancos e instituições financeiras recebam bônus e dividendos em paraísos fiscais, lugares que gozam de privilégios – como impostos reduzidos ou inclusive isenção – e nenhuma transparência. Guedes foi sócio do Banco Pactual entre 1983 e 2006. A partir dessa data, teve participações em várias sociedades de investimento, até que assumiu o cargo de ministro em 2019.
O presidente do Banco Central, por sua vez, é dono de quatro empresas. Duas delas, Cor Assets e ROCN Limited, são registradas no Panamá em sociedade com sua esposa, a advogada Adriana Buccolo de Oliveira Campos. O objetivo declarado das empresas é investir nos ativos financeiros do Santander Private Bank, cujo conselho executivo Campos Neto integrou no passado. As outras offshores são Peacock Asset Ltda, gerida pelo banco Goldman Sachs, e que foi descoberta na investigação do Bahamas Leaks, de 2016. A quarta empresa é a Darling Group, que segundo informou o Banco Central, é uma empresa de “gestão de bens imóveis”.
A possível polêmica não reside tanto em possuir uma empresa no exterior, algo que não é ilegal – desde que declarado à Receita Federal brasileira –, e sim no conflito de interesses. Guedes, assim como Campos Neto, já participaram da tomada de decisões que, de alguma forma, influenciaram nos seus próprios investimentos fora do Brasil.
O ministro da Economia foi o responsável por enviar ao Congresso um projeto da reforma fiscal que, em sua versão atual (o texto saiu da Câmara para o Senado), beneficia quem mantém dinheiro em paraísos fiscais. E Campos Neto assinou uma resolução que dispensa os contribuintes de declararem ao Banco Central os seus ativos no exterior em valores inferiores a um milhão de dólares. Isso deixou fora do radar quase 40.000 pessoas das estatísticas do banco. Em nota, o BC diz que as pessoas e empresas com negócios no exterior continuam obrigados a declarar suas contas à Receita, mas a medida passa a ocultar da sociedade um dado que antes era público.
Atualmente, um seleto grupo de 20.554 pessoas possui 204,2 bilhões de dólares (pouco mais de um trilhão de reais) em contas declaradas no exterior, segundo o Banco Central. Mas os especialistas calculam que a cifra em dinheiro ilegal é muito superior e rondaria um trilhão de dólares.
A falta de transparência de Guedes e Campos Neto com a opinião pública também se choca com o Código de Conduta da Alta Administração Federal, que proíbe “investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por uma decisão ou política governamental”, que eles mesmos teriam tomado. A proibição se refere àquelas sobre as quais “a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função.”
Guedes afirma que declarou suas empresas offshore. Na mesma linha, o Ministério da Economia, que ele dirige, informou que a atuação privada anterior à sua posse em 2019 “foi devidamente declarada à Receita Federal e aos demais órgãos competentes, o que inclui sua participação societária na empresa Dreadnoughts International Group”. “Sua atuação sempre respeitou a legislação aplicável e se pautou pela ética e pela responsabilidade”, afirmou em nota enviada à revista Piauí. O ministério informa ainda que, desde que assumiu o cargo, Guedes se desvinculou de todas suas atividades no mercado privado, conforme exige a Comissão de Ética Pública. “Cumpre destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal já atestou a idoneidade e capacidade de Paulo Guedes [para] exercer o cargo, no julgamento de ação proposta pelo PDT contra o ministro da Economia”, acrescentou o texto.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também garante que declarou todo o seu dinheiro no exterior à Comissão de Ética da Presidência da República, bem como à Receita Federal e ao próprio Banco Central. Em nota, a assessoria do Banco Central relata que ele tem construído seu “patrimônio com as receitas obtidas em 22 anos de atuação no mercado financeiro” e que desde que assumiu a presidência do Banco Central “não houve nenhuma remessa de recursos às empresas”. Ele ainda lembra que relatou toda a sua situação fiscal quando se apresentou ao Senado para assumir a presidência do Banco Central.
Campos Neto abriu sua primeira empresa no exterior, a Cor Assets, uma sociedade anônima, em 6 de abril de 2004, através do escritório Mossack Fonseca. Em abril de 2018, depois do escândalo dos Panama Papers, ele transferiu a offshore para outro gestor, a Overseas Management Company (OMC). Naquela época, ele tinha um capital de um milhão de dólares.
A empresa ROCN Limited, por sua vez, remonta a 8 de janeiro de 2007, data em que a Trident Trust a abriu. Foi catalogada como inativa em novembro de 2016, o que significa que manteve seu status legal, mas não podia operar com seus ativos. Em sua nota, Campos Neto afirma declarar a totalidade desse patrimônio, pagar “toda a tributação devida” e cumprir “todas as regras legais e comandos éticos aplicáveis aos agentes públicos”.
O dilema das empresas offshore
O problema das offshores é que, apesar de legais, acabam esvaziando a arrecadação fiscal nacional, já que muitos contribuintes com rendas altas as usam para evitar os tributos. Tanto é que as empresas offshore, em seus anúncios, oferecem a seus potenciais clientes “evitar o pagamento de impostos”. Para isso, atuam como uma estrutura intermediária entre os investimentos do cliente e os rendimentos que ele receberá, seja pelos dividendos das ações ou pelo aluguel de propriedades, por exemplo. Esses lucros não são depositados na conta do proprietário da empresa, e sim na offshore, e por isso ficam à margem do fisco brasileiro.
O advogado tributarista Márcio Calvet Neves explica que, desde meados da década de 1990, paga-se no Brasil um imposto de renda de até 34% sobre os lucros das empresas no exterior quando o sócio ou acionista é uma pessoa jurídica. Se o proprietário da empresa é uma pessoa física, a alíquota chega apenas a 27,5%, desde que esse lucro venha parar no Brasil. Mas aqui, explica, há uma lacuna jurídica, pois é a pessoa física quem decide se comunica ou não essa renda à Receita. Em outras palavras, o dinheiro pode permanecer durante anos em uma empresa no exterior, sem que seu proprietário pague nenhum imposto por ele. “O Brasil tem uma legislação muito completa para tributar os benefícios das companhias no exterior. Mas não ocorre o mesmo com as pessoas físicas. Basta possuírem uma empresa no exterior e assegurarem que essa empresa não distribui dividendos para o Brasil para que nunca sejam tributados”, diz Neves.
Por esse caminho, os mais ricos mantêm seu dinheiro blindado no exterior. Podem, inclusive usufruir dele lá fora, mesmo que o recurso tenha sido ganho em atividades ou negócios no Brasil. Se não fosse pelos Papéis da Pandora, não seria possível saber que o ministro da Economia e o presidente do Banco Central possuem empresas em paraísos fiscais. A agência tributária brasileira considera paraísos fiscais as jurisdições com uma alíquota tributária inferior a 20%, ou cuja legislação proteja o sigilo da composição societária das empresas. Mais de 60 países e territórios compõem essa lista, entre eles o Panamá, Hong Kong, as Ilhas Virgens e Chipre.
A reforma tributária
No caso de Guedes, há uma grande controvérsia: a reforma fiscal que ele lidera não resolve o problema dos rendimentos de pessoas físicas depositados em empresas e fundos offshore em paraísos fiscais.
O projeto inicial da reforma, preparado pela Receita Federal e apresentado pelo Ministério da Economia ao Congresso, pretendia acabar com a distinção entre pessoa física e jurídica. O texto previa taxar tanto os “lucros decorrentes das participações em filiais residentes ou domiciliadas no exterior”, mesmo que o dinheiro não viesse a ser trazido para o Brasil. E fechava as portas à evasão de impostos ao criar a tributação automática dos lucros das empresas nos paraísos fiscais que fossem de propriedade de pessoas físicas brasileiras. É uma medida que a OCDE recomenda e que já foi adotada por vários países, como Estados Unidos, Japão, China, Argentina e México.
Mas a Câmara dos Deputados excluiu o parágrafo que eliminava esta diferenciação, em uma decisão negociada também com Paulo Guedes. Em lugar de melhorar o instrumento de arrecadação, o texto aprovado traz uma nova medida, que determina que as pessoas físicas residentes no Brasil possam optar por coletar, com uma alíquota de apenas 6%, todos os lucros, rendimentos e ativos de origem lícita que estejam no exterior. “Ou seja, passamos de uma tributação obrigatória de 27,5% a uma optativa de 6% durante o processo de lobby e emendas”, diz Calvet. E acrescenta que, embora o texto exija uma “origem lícita” para o dinheiro, “existe um alto risco de que muita gente aproveite para lavar o que também tem uma origem ilícita, pagando pouquíssimo imposto”.
No Brasil, a revista Piauí, Agência Pública, Metrópoles e Poder360 publicam outras reportagens com novos personagens desta investigação internacional. Na apuração brasileira participaram: Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles); José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia e Allan de Abreu (Piauí) e Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360), Marina Rossi, Regiane Oliveira (EL PAÍS).
Fonte: El País