Há um mês escrevi neste jornal sobre a explosão da mídia com os desabamentos da Rua 13 de Maio, no centro do Rio, em contraste com o quase silêncio em relação às mortes de trânsito urbano e de tráfego interurbano. No último dia 22, no único porta-aviões da Marinha brasileira, houve um incêndio que matou um tripulante e feriu gravemente dois. No dia 24, na Estação Antártica Comandante Ferraz, começou um incêndio que matou dois militares, feriu um e destruiu quase todos os equipamentos de uma instalação de 3.200 m2.
Há um denominador comum entre os dois episódios recentes da Marinha e as mortes de mais de 50 mil pessoas e 300 mil feridos internados na rede hospitalar por acidentes em rodovias e malhas urbanas: trata-se da subdisponibilização de recursos fiscais, quer na manutenção das estradas e da circulação motorizada urbana, quer na preservação de nossa capacidade de defesa e pesquisa. Como ex-reitor da UFRJ, posso falar da perda de laboratórios e bibliotecas universitárias por falta de recursos mínimos para sua manutenção.
O gasto em defesa exige, além dos equipamentos em materiais, exercícios e permanente sistema de pesquisa e educação. Os brasileiros especialistas em defender nosso território e nossa soberania precisam de recursos para o treinamento, desde o físico-motor até o intelectual, e atualização científica. É sabido que a defesa precisa de profissionais ultra-treinados e equipamentos preservados para ter a máxima eficiência possível. A submanutenção das Forças Armadas reduz horas de voo, dias de mar e tempo de exercícios terrestres.
A razão do Vietnã tupiniquim com acidentes viários, da degradação em instalações universitárias, da erosão da capacidade de atuação de nossas Forças Armadas e de tantas outras misérias é a opção preferencial pelo combate à inflação, lançando-se mão de juros reais elevados, cortes fiscais, que se justificam para a construção de um superávit primário fiscal incapaz de reverter o endividamento público, e confiança na âncora cambial em busca de estabilidade e valorização da moeda nacional.
A sangria dos juros alimenta a riqueza financeira e a perda de dinamismo da economia brasileira. Quero debitar aos juros, pelo menos, a metade das mortes, a pressão sobre a rede hospitalar e a metade dos inválidos permanentes que são produzidos todos os anos pela falta de recursos para a conservação e o aperfeiçoamento dos sistema viário intra e interurbano no Brasil. A degradação dos padrões educacionais em todos os seus níveis projeta limitações trágicas para o futuro; a erosão das Forças Armadas degrada a soberania nacional indispensável para preservarmos, para o futuro, as “Amazônias” Verde e Azul. A redução para letras minúsculas da soberania nacional ameaça o futuro da soberania, de forma sistêmica e com resultantes imprevisíveis.
É uma elementar banalidade dizer que, na inflação, preços se movem à frente dos salários, o que implica numa sistemática transferência de renda dos assalariados para as empresas. No Brasil, uma inflação de décadas terminou pela construção de formas de indexação dos ativos financeiros, até mesmo do caixa das empresas. Cancelou-se, no Brasil, o medo dos proprietários da riqueza de verem seus patrimônios corridos pela inflação. Nesse clima institucional, a inflação brasileira se converteu em hiperinflação. A partir do Consenso de Washington e do enfraquecimento do balanço de pagamentos brasileiro, houve a adesão, nos anos 80, no Brasil, à consigna da “integração competitiva” e ao neoliberalismo periférico atrofiante do sonho do projeto nacional. O embarque progressivo e sem restrições ou manutenção de salvaguardas levou o Brasil à mediocridade de desempenho da década perdida, da década dos Fernandos e da primeira década do novo milênio.
O lugar da inflação foi substituído pela hipertrofia dos juros, dos ganhos especulativos mercantis-financeiros, do endividamento maciço das famílias brasileiras. Temos orgulho do nosso pentacampeonato mundial de futebol, porém já ocupamos, há mais tempo, o repugnante pódio de “país-campeão dos juros altos”. Enquanto a China manteve o yuan atrelado ao dólar, o Brasil neoliberal valorizou, de forma irresponsável, o real. Os donos do patrimônio, no Brasil, tornaram-se, pelo liberalismo tupiniquim, potencialmente cada vez mais ricos em dólar.
A pessoa comum percebe o juro quando paga a prestação ou “acerta contas” de cartão no banco ou “se explica” com o agiota. A empresa só realiza atividades produtivas e mercantis se tiver um ganho, pelo menos, superior ao juro primário da economia. Isso a pessoa comum não percebe; o juro que paga na prestação é visível, porém, por trás da mercadoria que ele comprou, há toda uma cadeia de ganhos de uma sucessão de empresas que regulam seu lucros por cima da taxa de juros.
A re-primarização das exportações brasileiras, a desindustrialização de cadeias industriais, o sonho empresarial de crescer a receita não operacional mediante aplicações e jogos financeiros, a espetacular lucratividade dos grandes bancos brasileiros, a reduzida criação de empregos de qualidade são desdobramentos diretamente associados ao brutal jogo financeiro.
Sem falar de juros, mas apenas dos R$ 25 bilhões pagos em IPVA no último ano, a hiper-legítima prioridade de reduzir as mortes nos acidentes viários exigiria apenas uma fração deste montante. Mas, ao invés disso, prevalece a diretiva de redução de gastos públicos pelas concessões privadas de pedágios. O valor pago pelas pessoas físicas ao Imposto de Renda mais que dobrou, entre 2002 e 2011. Apenas uma fração disso permitiria preservar padrões educacionais, mas, ao invés disso, se privatiza o ensino superior, gerando registro em bolsa de capital acionário aplicado por empresas de ensino, que hoje estão sendo desnacionalizadas como objeto de desejo de participar do banquete do Brasil. Vejo, com preocupação, a vinda de capital imobiliário estrangeiro (no Valor de 28/2 há notícia de um grupo estrangeiro que disponibiliza US$ 1 bilhão para nuclear tupiniquins em torno de valorização imobiliária). Essas questões deveriam construir uma pauta para os brasileiros.
Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES; escreve mensalmente às quartas-feiras. [email protected]
Fonte: Valor