Por Fabrizio Pieroni, procurador do Estado de São Paulo
Recentemente, o Senado Federal aprovou a PEC nº 66/2023, inicialmente apresentada como uma medida para permitir que os municípios renegociassem suas dívidas previdenciárias e estabelecessem limites no pagamento de precatórios. Contudo, uma manobra legislativa durante a votação em Plenário alterou significativamente o teor da proposta, inserindo um “jabuti” que impõe aos servidores estaduais e municipais as mesmas regras previdenciárias aplicadas aos servidores federais, previstas na Emenda Constitucional nº 103/2019. Essa mudança representa uma afronta direta à autonomia de Estados e municípios, configurando-se como uma imposição centralizadora, sem qualquer diálogo prévio com a sociedade.
O termo “jabuti”, no jargão político, refere-se à inclusão de matéria alheia ao objeto original de um projeto ou proposta. No caso da PEC 66, o “jabuti” surgiu com a inclusão do artigo 40-A, que impõe a uniformização das regras previdenciárias dos regimes próprios dos Estados, Distrito Federal e municípios, obrigando-os a seguir os mesmos critérios definidos pela União. Tal interferência ignora as particularidades de cada ente federativo, prejudicando, especialmente, aqueles que optaram por manter regimes mais favoráveis aos servidores.
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A inclusão desse dispositivo, diretamente no Plenário do Senado, impõe uma série de mudanças drásticas, como o aumento da idade mínima para aposentadoria (65 anos para homens e 62 para mulheres), o cálculo dos benefícios com base em 100% das contribuições ao longo da carreira, além da implementação de alíquotas progressivas (de 7,5% a 22%, dependendo da faixa salarial), novas regras para pensões e a possibilidade de instituição de contribuição extraordinária por até 20 anos para cobrir déficit atuarial. Essas mudanças, já amplamente criticadas no âmbito federal e objeto de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade no STF, agora são impostas de forma autoritária aos entes subnacionais, sem respeitar as peculiaridades locais.
Estados como Amazonas, Roraima, Amapá, Maranhão e Pernambuco, além do Distrito Federal, que optaram por manter regimes mais vantajosos para seus servidores, serão severamente atingidos, mas os servidores de todos os entes serão prejudicados de alguma maneira. Em São Paulo, por exemplo, que instituiu regras duras para a previdência de seus servidores, as alíquotas deverão ser majoradas para adequar ao cobrado na União.
Praticamente todos os municípios com regime próprio de previdência sofrerão impactos. Segundo informações publicadas recentemente, apenas 1/3 deles realizaram profundas reformas na previdência de seus servidores, sendo apenas nove das 26 capitais.
A proposta ignora completamente a autonomia política conquistada pelos entes federados, violando o pacto federativo previsto na Constituição. Ao impor essas regras, a PEC 66 desconsidera o direito dos Estados e municípios de organizarem seus próprios regimes previdenciários de acordo com suas realidades financeiras e sociais. A inconstitucionalidade é flagrante.
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É manifesto o declínio da ordem federativa, instituída em 1988. O slogan “menos Brasília, mais Brasil” nunca passou de uma quimera. O poder e os recursos continuam concentrados na União e as promessas de maior autonomia para entes subnacionais não foram cumpridas. Essa PEC põe uma pá de cal no federalismo ao retirar dos Estados e municípios até mesmo a autonomia para disciplinar o regime previdenciário de seus próprios servidores.
É importante destacar que, durante a tramitação da última reforma previdenciária (PEC 6/2019, que deu origem à EC 103/2019), o Congresso Nacional discutiu e optou por não incluir no texto Estados e municípios na proposta, justamente em respeito à autonomia federativa.
No entanto, a PEC 66/2023 vai na direção contrária, promovendo uma verdadeira “reforma previdenciária forçada”, que desconsidera o processo legislativo anterior e impõe uma centralização inaceitável. A adoção automática das regras federais, caso os entes não se adequem em 18 meses, reforça ainda mais a coerção, violando a autonomia administrativa e financeira dos Estados e municípios.
A aprovação dessa PEC sem o devido debate público é alarmante e irá gerar insegurança jurídica e expressiva judicialização. Os servidores estaduais e municipais devem se mobilizar para barrar essa tentativa de dilapidar seus direitos, uma vez que a proposta está em vias de ser discutida na Câmara dos Deputados. Há, inclusive, uma possibilidade aventada de apensar à proposta outra PEC em estágio mais avançado de tramitação e, assim, pular etapas do processo legislativo e realizar a votação diretamente em plenário. Uma proposta dessa magnitude deve ser precedida de uma discussão justa e transparente com toda a sociedade.
Cabe aos parlamentares defenderem o pacto federativo e a autonomia dos entes subnacionais, recusando esse “jabuti” que compromete não apenas os direitos previdenciários dos servidores públicos, mas também a própria essência da federação brasileira.
É crucial que essa disposição da PEC seja revista, pois representa um retrocesso no processo democrático e uma afronta ao princípio da descentralização administrativa. O Congresso Nacional tem o dever de garantir que qualquer mudança previdenciária seja amplamente debatida com a sociedade e respeite as particularidades de cada ente federativo. Caso contrário, estaremos diante de um perigoso precedente de concentração de poder que compromete a autonomia dos Estados e municípios e os direitos dos seus servidores públicos.
*Texto publicado originalmente em Valor Econômico