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Opinião | Souto Maior – A liberdade dos sindicatos de fixarem suas fontes de custeio

Opinião | Souto Maior – A liberdade dos sindicatos de fixarem suas fontes de custeio
Em decisão proferida em 27 de setembro, nos autos da Rcl 36933 MC/SP, o Ministro Ricardo Lewandowski suspendeu a validade das cláusulas 59, 60 e 82 do Dissídio Coletivo 1000550-35.2019.5.02.0000 que haviam sido homologadas pela Seção Especializada em Dissídio Coletivo do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região – TRT2, sob o fundamento de que, ao permitirem a fixação, por deliberação assemblear, de contribuições sindicais aplicáveis a todos os integrantes da categoria, beneficiários das normas ajustadas, sem necessidade de autorização ou possibilidade de oposição, teriam desrespeitado o teor da Súmula 40 do STF e o entendimento fixado na ADI 5.794, que impedem a estipulação de contribuições aos não-associados.

Os precedentes acatados, no entanto, “data venia”, não servem de fundamento para negar aos sindicatos a possibilidade jurídica de fixarem suas respectivas fontes de custeio, respeitados os preceitos constitucionais e os parâmetros do Direito Coletivo do Trabalho.

Com efeito, não se pode confundir imposto sindical, regulado na CLT, com contribuição confederativa, prevista na Constituição Federal, e menos ainda com contribuição fixada em assembleia da organização sindical, tenha o nome que tiver.

O imposto sindical está regulamentado na lei e, por isso, deve seguir o padrão legalmente fixado.

A contribuição confederativa e as demais contribuições assistencial ou negocial se situam na esfera da organização coletiva, que deve se desenvolver sem interferência do Estado, conforme prevê expressamente o inciso IV, do art. 8º da CF:

“IV – a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei;”

Lembre-se, a propósito, do previsto no inciso I, do mesmo artigo:

“I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;”

A Constituição Federal, portanto, é muito clara ao garantir aos sindicatos a possibilidade de se organizarem em sistema confederativo e de estabelecerem, em assembleia geral, uma contribuição para o custeio respectivo, sem qualquer interferência do Estado, o que não se confunde com a contribuição prevista em lei.

A lei pode alterar, como se viu recentemente, os padrões jurídicos do imposto sindical, mas não pode, sob pena de inconstitucionalidade, interferir na deliberação da assembleia, e muito menos o poderá fazer o Judiciário.

Se a assembleia delibera pela fixação de uma contribuição confederativa’ – e também a assistencial (cabível em razão de uma negociação coletiva realizada com sucesso) – com previsão de ser devida a todos que integram a categoria representada (que, com o fim da atividade preponderante, segundo o novo padrão estabelecido pela “reforma” trabalhista, será definida pela própria entidade sindical), não pode o Judiciário contrariar a deliberação, exigindo, sem base legal e afrontando a Constituição, a concordância individual (ou a não recusa dentro de certo prazo) dos integrantes da categoria quanto ao desconto em seu salário do valor correspondente, até porque a obrigação do empregador, de descontar a contribuição, foi também fixada, expressamente, no dispositivo acima citado.

​É bastante curioso verificar como, no momento em que se exige publicamente que os juízes se restrinjam à aplicação literal da lei, as decisões judiciais que limitam direitos dos trabalhadores e trabalhadoras se desapegam de todo e qualquer suporte legal e isso não provoca objeção institucional ou exposição crítica na grande mídia.

E para cumprir esse papel, de tornar difícil (ou quase impossível) a vida dos sindicatos, vai-se até o ponto de penalizar, também sem respaldo na lei, inclusive os empregadores.

Com efeito, o entendimento jurisprudencial que obriga o empregador a devolver ao empregado o valor correspondente à contribuição confederativa/assistencial, cujo desconto foi feito sem autorização expressa do empregado, representa a criação de um efeito jurídico punitivo para quem, meramente, cumpriu um acordo ajustado, e que segue, assim, determinação constitucional.

A forma de recolhimento, estabelecida em norma de natureza imperativa dirigida ao empregador, está prevista de modo inequívoco na Constituição (“será descontada em folha”) e, por conseguinte, qualquer isenção do cumprimento dessa obrigação ou fixação de pena para quem a cumpre representa uma ofensa direta à Constituição.

Se há gravidade no desrespeito ao princípio jurídico básico de que ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, quanto mais gravidade haverá com o ato de se impor uma obrigação, com repercussão punitiva, a quem, sem qualquer propósito abusivo ou ato de má-fé, simplesmente cumpriu a lei.

E é falsa a contraposição criada entre interesse coletivo e o direito individual, subjetivo, do trabalhador. O sindicato não é uma entidade cuja existência se explica na lógica de uma pessoa jurídica. O sindicato é, essencialmente, a explicitação jurídica da atuação coletiva dos trabalhadores, cuja individualidade cede espaço para dar lugar à força coletiva, essencial para o antagonismo de classe.

Não há, pois, a possibilidade de o trabalhador, individualmente, contrariar a vontade coletiva, vez que a vontade coletiva é constituída por sua manifestação individual (sendo que o silêncio também é uma forma de expressão). O Direito do Trabalho, ademais, se sistematiza de tal modo, sempre privilegiando o todo em detrimento da parte, para, inclusive, cumprir a função de estabelecer a materialidade necessária à melhoria da condição social dos trabalhadores. A não ser quando estejam em situações em que a deliberação coletiva fira, de modo prejudicial, direitos fundamentais (e não a mera opção), a contraposição não se coloca.

Essa regra de proteção não desatende, inclusive, o interesse individual da progressividade.

Nestes termos, a propósito, o ENUNCIADO N. 38 do II ENCONTRO DA ANAMATRA:

“CONTRIBUIÇÃO SINDICAL. I – É lícita a autorização coletiva prévia e expressa para o desconto das contribuições sindical e assistencial, mediante assembleia geral, nos termos do estatuto, se obtida mediante convocação de toda a categoria representada especificamente para esse fim, independentemente de associação e sindicalização.”

A decisão do Ministro Lewandowski se apoiou no entendimento expresso na ADI 5.794/DF, mas a ADI 5.794/DF cuidou, especificamente, do imposto sindical fixado em lei e os preceitos ali fixados não podem ser estendidos para a contribuição confederativa, que é, como visto, instituto distinto, com regulação constitucional diversa, ainda que atenda, em princípio, a mesma finalidade.

Fosse possível ao Judiciário, sob o argumento de proteger o interesse individual do trabalhador, negar vigência aos termos de uma cláusula coletiva aprovada em assembleia, lhe seria permitido (em verdade, estaria obrigado) a agir do mesmo modo com relação a outras normas coletivas que fixam obrigações para os trabalhadores ou que reduzem o potencial econômico de seus direitos. Dito de forma mais clara, tais normas só seriam aplicadas com a concordância individual expressa do trabalhador.

Acrescento que a Súmula vinculante 40 do STF (“A contribuição confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição Federal, só é exigível dos filiados ao sindicato respectivo.”) parte, exatamente, da diferenciação entre a contribuição fixada em assembleia e a contribuição estabelecida em lei.

Mas, em vez de se manter na diferença essencial da fonte normativa da contribuição, trazida na Constituição, que imporia a visualização do diverso papel do Estado frente a ambas, o da intervenção, no caso da contribuição legalmente regulada, e o da não intervenção, na hipótese da contribuição tratada no âmbito da própria organização sindical, achou por bem elaborar um silogismo “de trás prá diante”, como se costuma dizer.

Analisando os precedentes de tal verbete (p.ex. RE 198.902, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª T, j. 27-8-1996, DJ de 11-10-1996), é possível constatar que o STF olhou para a espécie e a partir dela criou uma regra generalizante.

Partindo do pressuposto de que a contribuição sindical fixada em lei tem natureza de tributo, o que atrai a compulsoriedade do pagamento também para os não associados ao sindicato, concluiu que como a contribuição confederativa não é tributo não é pertinente que seja compulsoriamente imposta aos não associados.

Ora, as características da maçã não podem ser determinantes do que como se compreende a banana, de modo a alterar a própria concepção do gênero fruta.

Na questão pertinente às particularidades da contribuição fixada em lei, também denominada imposto sindical, no máximo se poderia dizer que a compulsoriedade é automática porque isso decorre da sua natureza tributária, enquanto que, no caso da contribuição negocial, a abrangência, não tendo o suporte da compulsoriedade, vez que não se cuida de tributo, não seria automática, dependendo, pois, de deliberação expressa neste sentido.

Fato é que a Súmula 40 do STF criou uma norma constitucional, indo bem além da sua função de interpretar a norma.

O equivocado percurso de raciocínio adotado pelo Supremo, no entanto, tem consequências.

É que o específico, por obra da lei da “reforma” trabalhista, foi alterado e, assim, o imposto sindical deixou de existir enquanto espécie tributária (cf. reconhecido pelo STF ADI 5.794/DF, Rel. Ministro Luz Fux; e Rcl 34.889 MC/RS, Min. Cármen Lúcia – decisão monocrática).

Com isso, eliminou-se o pressuposto que servia para delimitar a abrangência da contribuição estabelecida em ato negocial.

Em outras palavras, eliminado o pressuposto, o verbete da Súmula 40 do STF perdeu o seu sentido.

E, para salvar a Súmula 40 do STF, não cabe o argumento de que se a própria contribuição fixada em lei não é obrigatória quanto mais não o seria a contribuição estabelecida no âmbito da organização sindical, vez que, primeiro, não foi esse, claramente, o pressuposto da Súmula e, segundo, porque significaria meramente a reprodução do mesmo silogismo equivocado de se avaliar uma espécie por intermédio das características de outra.

O fato concreto e insofismável é o de que a Constituição expressamente vedou a interferência e a intervenção do Poder Público na organização sindical (art. 8º, I) e, portanto, não é possível que se crie um pressuposto, sem respaldo expresso na Constituição, para determinar qual será a abrangência da deliberação assemblear sindical, sob pena de se quebrarem as garantias constitucionais como um todo e de se ter que levar a outras consequências, talvez indesejáveis na perspectiva de que quem assim agiu, o pressuposto criado.

E ainda que não se queira admitir isso com relação à contribuição confederativa, no que tange à contribuição assistencial, cuja base jurídica é, estritamente, a negociação coletiva (e que se relaciona com o princípio da solidariedade), a Súmula 40 do STF não representa qualquer delimitador de compreensão, pois, conforme já decidido no âmbito do próprio STF, a referida Súmula não trata da contribuição assistencial (Rcl 21.851, Min. Edson Fachin – decisão monocrática, j. 17-5-2016, DJE 103 de 20-5-2016).

​O que não pode persistir de maneira alguma é a incoerência de se preconizar a validação de negociações coletivas que reduzam direitos individuais dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, negar validade às cláusulas negociais de custeio sob o argumento da proteção do interesse individual dos trabalhadores, até porque o único ponto em comum entre essas duas posições é o de que ambas contrariam a Constituição.

Fonte: Blog Souto Maior