Desbordamento da desnacionalização

Por Carlos Lessa*

A partir do governo Collor, o tema da política e do desenvolvimento industrial saíram de pauta. Com a intensificação do discurso ecológico e da crítica puramente emocional do autoritarismo, a chaminé passou a ser vista como uma agressão. A desmoralização da indústria levou Collor a chamar o carro brasileiro de “carroça”. Essa proscrição durou mais de 20 anos e, timidamente, a ideia de política industrial renasceu, bastante envergonhada. Não se restaurou o tema da industrialização, associado que foi ao padrão passado e tido como culpado, em parte, do processo hiperinflacionário.

A proteção à indústria, que foi um discurso considerado meritório e que foi recorrente da grande mídia do passado, passou agora a ser tratada como medida de restrição às importações e de abertura de comércio “com o mundo globalizado”. A adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) implicou numa limitação fortíssima da soberania nacional em matéria de incentivo à industrialização.

O microscópico regime automotivo brasileiro, um pálido plágio da meta automobilística de JK, foi considerado, por Pascal Lamy (diretor da OMC), “potencialmente uma medida restritiva ou de distorção do comércio”.

No Brasil atual, é praticamente obsoleto o argumento de protecão à indústria nascente que, a exemplo da muda de árvore, deve ser protegida e amparada até atingir a maturidade. Se considerarmos a inauguração dos fornos de Monlevade, o marco de finalização da instalação de empresas no horizonte da primeira Revolução Industrial, e reconstituirmos o caminho da CSN até o Plano de Metas e a instalação de Brasília, instalou-se no Brasil um parque tecnológico da segunda Revolução Industrial. No governo autoritário, foi feito o último esforço para completar o sistema industrial, com o II PND de Geisel e o fomento aos fabricantes de equipamentos e instituições científicas e tecnológicas.

O Brasil percorreu mais de um século em busca do sonho da industrialização, percebida como ação coordenada de instalação de setores e complexos industriais que se integravam à economia nacional e articulavam cadeias produtivas com as atividades agropecuárias e de prestação de servicos.

Finda essa trajetória, haveria, no Brasil, um tripé capitalista, com uma perna formada pelas filiais de multinacionais estrangeiras, outra formada por grandes empresas nacionais em alguns setores industriais chaves e dominantes não só na engenharia pesada, mas também no comércio atacadista e de varejo com autosserviço.

Uma terceira perna era constituída por gigantescas empresas estatais de capital público dominantes nas infraestruturas. Hoje, o tripé está estilhaçado, pois o capital estrangeiro desnacionalizou a indústria privada nacional e, pelo processo de privatização, abocanhou peças fundamentais de infraestrutura. Aliás, o desbordamento da desnacionalização é tão impressionante que se estendeu à compra de instituições de ensino, editoras de livros didáticos e caminha para controlar os serviços privados de saúde, além de já ter desalojado dos supermercados a presença brasileira. Ultimamente, está fazendo aplicações imobiliárias em espaços urbanos e em terras agrícolas.

Nesse cenário, a proposta de um projeto nacional exige focalizar as grandes frentes de expansão industrial. A primeira delas é, certamente, a economia do petróleo, que pode, mal dirigida, converter o Atlântico Sul num novo Oriente Médio, ou permitir a restauração de forças do sistema industrial sob controle de empresários nacionais. Não há maldição mais assustadora que converter o Brasil em exportador de petróleo cru; por outro lado, há um futuro científico e tecnológico brilhante associado ao desenvolvimento da economia brasileira de petróleo.

No passado, nosso povo via na indústria a afirmação da capacidade brasileira e a oportunidade de melhores empregos, mas aprendeu que quem emprega também desemprega e que os preços se reajustam com muito mais velocidade e facilidade que os salários – e já não percebe afetuosamente a industrialização. Continua com objetos de desejo, tendo sido abundantemente servido pelos últimos governos mediante expedientes de aumento do endividamento familiar e do prolongamento do débito. O veículo automotor tem suas populações crescendo a taxas espantosas – de 2000 para cá, a frota de carros particulares e motos teria se ampliado 9%.

Para o homem de posses, o carro do último modelo é uma afirmação de seu sucesso e um elemento de exibição narcísica. Ele paga sua vaidade com intensa depreciação do modelo que deixou de ser zero km. Para o popular, além das dimensões que animam os ricos, o automóvel tem uma classificação patrimonial como bem de família e há uma cadeia de transmissão ao longo de sucessivas mãos dos veículos fora de moda. A geriatria popular prolonga a vida e o valor do carro ultrapassado. É necessário atender o povo no outro objeto de desejo: a moradia e a casa própria.

Do ponto de vista da família que se endivida comprando ou construindo a casa própria, é sólida a evolução patrimonial, pois não paga aluguel e a tendência é que o imóvel se valorize. Do ponto de vista macroeconômico e social, a construção civil supera, em todas as dimensões, a indústria metal-mecânica: emprega muita mão de obra (local); utiliza matérias-primas locais, abundantes em quase todos sítios urbanos brasileiros; usa matérias-primas industrializadas (cimento, componentes hidráulicos, cerâmicas) em mãos de grandes grupos nacionais); tem um coeficiente importado baixíssimo e praticamente não pressiona o balanço de pagamentos. Ao contrário do automóvel, a casa própria, em seu preenchimento, se articula com inúmeras cadeias produtivas.

A industrialização, como sonho de um sistema industrial integrado, não tem legitimação política viável no Brasil. O peso da perna pública no tripé depende da economia do petróleo; o peso da empresa nacional depende da construção civil. É bom lembrar que a construção civil integra a formação interna de capital e torna possível desenhar uma política que fortaleça a empresa privada construtora imobiliária e a construção popular autônoma em mutirão.

Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES; escreve mensalmente às quartas-feiras. [email protected].

Fonte: Valor Econômico

Compartilhe:

Leia mais
Lula critica fala de campos neto
Lula critica fala de Campos Neto sobre aumento de salários ser uma "preocupação"
Manifestação contra juros altos 30 de julho
Centrais sindicais farão ato contra juros altos: cada 1% na Selic custa R$ 38 bi ao povo
eduardo leite nova proposta servidores
Governo do RS adia projetos de reestruturação de carreiras de servidores e anuncia mudanças
Grupo de Trabalho estudará impactos da inteligência artificial
Governo cria grupo para estudar impacto da inteligência artificial no mercado de trabalho
GT do G20 sobre emprego em Fortaleza
CSB em reunião do G20: temas discutidos aqui são colocados em prática pelos sindicatos
adolescentes trabalho escravo colheita batatas cerquilho sp
SP: Operação resgata 13 adolescentes de trabalho escravo em colheita de batatas
sindicam-ba filia-se csb
Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens da Bahia filia-se à CSB
Parceria Brasil-EUA contra calor extremo trabalhadores
Parceria Brasil-EUA pelos Trabalhadores e OIT debatem ação contra calor extremo
BNDES abre concurso 2024 veja edital
BNDES abre concurso com 150 vagas e salário inicial de R$ 20 mil; acesse edital
pesquisa jornada flexivel trabalho híbrido
Flexibilidade de jornada é prioridade para 30% dos trabalhadores no Brasil