Diante do relatório da Comissão da Verdade, é imperativo que as Forças Armadas reconheçam sua participação em crimes contra os direitos humanos
*Pedro Dallari, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso
Neste 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, a CNV (Comissão Nacional da Verdade) chega ao final de suas atividades e entrega à presidente da República seu relatório, contendo a descrição do trabalho realizado, a apresentação dos fatos examinados, as conclusões e as recomendações.
Cumpre, assim, determinação da lei nº 12.528/11, que criou a CNV e fixou para ela o objetivo de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas de 1946 a 1988 –período entre as duas últimas Constituições democráticas brasileiras–, com a finalidade de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Nos seus dois anos e sete meses de existência, a CNV se dedicou à busca e à pesquisa de documentos, ouviu mais de um milhar de depoimentos, efetuou diligências em locais de repressão, realizou dezenas de sessões e audiências públicas por todo o território nacional, dialogou intensamente com a sociedade.
Com apoio de um competente conjunto de assessores e pesquisadores, os membros da Comissão Nacional da Verdade, levados a essa condição por designação presidencial, dirigiram o trabalho de investigação observando estritamente os marcos e a finalidade estabelecidos no mandato legal. A busca da verdade, o resgate da memória e a promoção da reconciliação nacional foram, assim, o norte que guiou toda a atividade da CNV.
A lei definiu para a CNV objetivos específicos a serem atendidos na apuração da verdade. Competia-lhe esclarecer os fatos e as circunstâncias das graves violações de direitos humanos –tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. Sendo as violações de direitos humanos aquelas de responsabilidade do Estado e de seus agentes, para esse esclarecimento deveriam ser identificados, no âmbito estatal, estruturas, instituições, locais e autores associados àquelas condutas criminosas.
Os oito relatórios preliminares de pesquisa, divulgados a partir de fevereiro deste ano, e o relatório final, apresentado nesta quarta-feira, responderam a esse compromisso. Evitando-se abordagens de caráter analítico, foi dada prioridade a um enfoque calcado na descrição circunstanciada dos fatos ocorridos no período investigado, com especial atenção para o regime ditatorial que se prolongou de 1964 a 1985, em função da extrema intensidade do quadro de violações.
Dividido em três volumes, o relatório contempla, no primeiro deles, a descrição das atividades da CNV, seguindo-se a apresentação das estruturas, cadeias de comando, métodos e dinâmica das graves violações de direitos humanos e culmina com as conclusões e recomendações.
No segundo volume, foram reunidos textos que enfocam as graves violações sob a perspectiva de sua incidência em diferentes segmentos sociais –militares, trabalhadores urbanos, camponeses, povos indígenas, membros de igrejas cristãs, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), professores e estudantes universitários. Também integram esse volume textos que tratam da resistência à ditadura militar, assim como da participação de civis no golpe de 1964 e no regime ditatorial, notadamente empresários.
O terceiro volume, o mais extenso, de expressivo significado para a CNV, descreve a história de 434 mortos e desaparecidos políticos, a partir dos elementos informativos que foram examinados nos outros dois volumes.
O relatório não representa o começo ou o fim da investigação desses temas pela sociedade brasileira. A Comissão Nacional da Verdade se beneficiou de trabalho que vinha sendo realizado havia bastante tempo pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia, ambas do governo federal, por entidades da sociedade, por sobreviventes e por familiares de mortos e desaparecidos.
No curso de suas atividades, a CNV contou ainda com a contribuição de órgãos públicos nacionais e organismos internacionais, de Estados estrangeiros e de comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais –que, com o advento da CNV, passaram a ser instaladas por todo o país. Caberá a essas comissões, assim como à universidade e a outros entes da sociedade e do Estado, continuar e aprofundar as investigações.
O relatório –que propõe também a criação de um órgão público para seguimento das ações e recomendações da CNV– deve ser visto como uma plataforma de apoio ao trabalho que ainda será executado. É certo, por exemplo, que o rol de vítimas do terceiro volume não é definitivo e que as investigações seguintes certamente acarretarão a identificação de número maior de mortos e desaparecidos, especialmente entre as populações camponesa e indígena.
Mesmo que adequadamente consagrada, a verdade não promove o resgate da memória social se não é revelada e compartilhada. Essa constatação –e a de que mais de 80% dos brasileiros nasceram após o golpe de 1964 e que 40% (80 milhões) nasceram depois do final da ditadura, em 1985– levou a CNV a dar especial atenção à efetivação do direito à memória, também uma de suas finalidades legais.
Com a evolução da investigação e a consolidação de resultados, estes passaram a ter divulgação pública por diversas formas, entre as quais relatórios preliminares de pesquisa. Apresentados em sessões e audiências públicas, com ampla cobertura da imprensa, e disponibilizados a toda a sociedade por meio do sítio da CNV na internet (www.cnv.gov.br) e das redes sociais, esses relatórios preliminares se prestaram à disseminação de informações sobre as graves violações de direitos humanos e o contexto em que ocorreram.
Essa publicidade dos trabalhos da CNV contribuiu para melhor conhecimento da ditadura militar, cujo cinquentenário, em março deste ano, por força dessa compreensão, não foi alvo de comemoração por qualquer segmento de expressão social. O relatório final estará disponível no sítio da CNV a partir de hoje e deverá se tornar um instrumento importante para a preservação da memória social sobre esse período da história brasileira.
A emergência da verdade histórica é condição essencial para a promoção da reconciliação nacional, terceira finalidade definida legalmente para a CNV.
O trabalho conduzido permitiu à Comissão Nacional da Verdade concluir que as graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado, especialmente nos 21 anos da ditadura instaurada em 1964, foram resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado, configurando crimes contra a humanidade.
Nessa conduta estatal, o protagonismo foi das Forças Armadas. Seu exercício envolveu cadeias de comando originadas nos gabinetes dos presidentes e ministros militares, como está fartamente demonstrado no relatório. Em consideração ao resultado do trabalho da CNV e assim como já feito por outras instâncias do Estado, é imperativo que haja, por parte das Forças Armadas, o reconhecimento de sua responsabilidade institucional.
Trata-se de gesto que abrirá caminho para a superação definitiva do passado, consolidando em base permanente o compromisso dos militares com o Estado democrático de Direito e reconciliando-os plenamente com a sociedade brasileira.
Essas foram as diretrizes que guiaram o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e a elaboração do relatório a que hoje se dá conhecimento. Ele é oferecido ao país com a convicção de que os fatos nele descritos não se repetirão nunca mais.
Pedro Dallari, 55, coordenador da CNV – Comissão Nacional da Verdade,* JOSÉ CARLOS DIAS, 75, JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 66,MARIA RITA KEHL, 62,PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 70, e ROSA CARDOSO*, 67, são integrantes da CNV.
Fonte: Folha de São Paulo