A renda familiar no Brasil avançou em um ritmo bastante superior ao do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos dez anos
De acordo com cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a renda domiciliar per capita da população brasileira aumentou 40,7% entre 2003 e 2011, taxa 13,3 pontos superior a apresentada pelo PIB per capita, que avançou 27,7% no período. Dentro do PIB, em consequência, a renda do trabalho tem crescido mais do que as rendas da “propriedade”, que envolvem, na conta do PIB, juros, dividendos e a própria remuneração do capital.
A diferença entre renda familiar e PIB per capita é ainda maior caso a conta per capita das famílias seja feita pelo critério de mediana, que mostra a tendência central. Marcelo Neri, presidente do Ipea, ressalta que, por essa ótica, fica mais evidente a melhora de vida do brasileiro médio: entre 2003 e 2011, a alta acumulada nessa métrica foi de 65,9%. As informações são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Dados preliminares evidenciam que essa situação se aprofundou em 2012. No ano passado, o PIB per capita ficou estagnado (já que o PIB e a população mostraram a mesma taxa de crescimento, de 0,9%), enquanto a massa salarial subiu 5,2%, de acordo com a Pesquisa Mensal do Emprego. A mediana da renda real habitualmente recebida, por sua vez, aumentou 7,5%, em linha com o reajuste do salário mínimo. Também influenciados pelo aumento acima da inflação, as rendas provenientes do Bolsa Família e da Previdência Social subiram ainda mais (12,2% e 6,1%, respectivamente), sempre em termos reais per capita, de acordo com estimativas do Ipea. “Imaginamos que a renda não sustentará esse crescimento indefinidamente, mas o ponto é que esse momento ainda não chegou”, afirma Neri.
Como reflexo do aumento real dos salários, nos dados detalhados das contas nacionais – que medem o PIB – a chamada renda do trabalho tem crescido mais que renda do capital. Os últimos dados disponíveis são de 2009. Naquele ano, o fator trabalho atingiu uma participação recorde na década – 43,6% do PIB. No mesmo ano, a proporção da renda que correspondeu à remuneração do capital ficou estável, correspondendo a 33,2% do produto interno, percentual que indica uma diferença de quase 10 pontos entre os dois principais grupos detentores da renda. Quatro anos antes, em 2005, a diferença entre capital e trabalho era de cinco pontos quando o PIB era analisado pela ótica da renda.
Entre as razões para o maior crescimento da renda, os economistas apontam a política de remuneração do salário mínimo, o crescimento do setor de serviços (que pressionou o mercado de trabalho), as políticas sociais e os baixos ganhos de produtividade. E, como consequência ruim, eles apontam a inflação.
Na opinião de Luiz Fernando de Paula, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a política de valorização do salário mínimo tem papel central na dinâmica de renda que cresce acima do PIB, já que a Pnad captura essencialmente a renda do trabalho, além das transferências governamentais. Por causa da regra de reajuste, que leva em consideração o PIB de dois anos antes, o mínimo subiu bastante nos últimos dois anos, mesmo sem crescimento mais expressivo da economia. “O governo fez uma opção pela recomposição dos salários de base e a economia não quebrou, como diziam que aconteceria. Por outro lado, há efeitos colaterais, e um deles é que se quiserem manter essa política, será preciso acomodar inflação maior.”
Por ser decorrente de uma mudança estrutural – no caso, o crescimento do setor de serviços, impulsionado pelo aumento da renda – é válido tolerar uma inflação mais elevada do que em outros países em desenvolvimento, argumenta o presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). De Paula, no entanto, alerta que é preciso cautela para não permitir descontrole dos preços, movimento que corrói o avanço real dos salários.
Na avaliação do professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), José Márcio Camargo, aumentos salariais acima da produtividade, como vem ocorrendo no Brasil, têm custos econômicos sérios que estão ficando mais visíveis. “No longo prazo, essa situação é absolutamente insustentável. O empresário industrial olha para frente e sabe que sua margem vai cair, o que não é um incentivo para investimentos.”
Por competir com produtos importados, o segmento manufatureiro encontra mais dificuldade para repassar aos consumidores a elevação do custo com mão de obra. No ano passado, o PIB industrial amargou queda de 0,8%, enquanto a economia avançou 0,9%, sustentada, do lado da oferta, pelo setor de serviços.
Na avaliação de Márcio Camargo, é preciso desaquecer o mercado de trabalho, via aumento de juros, para gerar ganhos de rendimento compatíveis com o crescimento da produtividade. É uma decisão política difícil, reconhece o economista, “mas na atual trajetória, em algum momento o desemprego vai aumentar e já começamos a ver uma corrida entre preços e salários. A inflação voltou a ser assunto.”
Para Marcelo Neri, do Ipea, é preciso ter uma agenda que atenda os dois lados: tanto a indústria e o setor produtivo, com redução de custos, quanto a população menos favorecida, por meio de programas assistenciais, como o recém-lançado Brasil Carinhoso.
Uma questão estatística também pode estar influenciando na discrepância entre a evolução, do PIB per capita e da renda domiciliar, afirma Neri. O deflator implícito do PIB aumentou muito mais nos últimos anos do que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Em um exemplo simplista, Neri destaca que, caso o PIB fosse deflacionado pelo índice de preços ao consumidor, a alta entre 2003 e 2011 seria de 48%. Ou seja, em termos nominais o produto avançou mais do que a renda nesse período, argumenta o presidente do Ipea.
Fonte: Valor Econômico