Sobre números e narrativas na Justiça Trabalhista, por Guilherme Guimarães Feliciano

No editorial “Aumento do número de ações trabalhistas é alarmante” (15/2), a Folha indignou-se com o avanço das demandas nos tribunais —14,1% a mais em 2024 ante o ano anterior, revertendo a queda sentida em 2017.

Não levou em conta, porém, que, se o país mantém elevadíssima rotatividade nos postos do trabalho —23,8 milhões de demitidos por ano, segundo o Caged (dez./2024)—, não é em razão das supostas “vantagens” em receber seguro-desemprego, mas sobretudo em função de um regime contratual inseguro agravado com o advento da lei 13.467/2017, a reforma trabalhista que desarticulou os limites até então existentes para as terceirizações.

De acordo com o Ipea (2024), a rotatividade no Brasil é duas vezes maior que a dos EUA (em São Paulo, 5,3% dos terceirizados perdem o emprego no primeiro mês).

Eis o fato: quantos mais forem os terceirizados, maior será a rotatividade no mercado de trabalho (e as consequentes judicializações, porque o modelo brasileiro de trabalho terceirizado baseia-se em precarização e redução de direitos; Dieese, 2014). O editorial tampouco indaga o porquê de o Brasil contar com 22 milhões de pessoas na informalidade laboral (Pnad Contínua, dez./2024).

No final das contas, apenas 8,9% das pessoas demitidas estão acionando a Justiça; logo, é falso afirmar que praticamente todo trabalhador demitido ingressa com uma ação trabalhista.

Somando-se os números acima, e partindo-se da premissa de que a maior parcela do trabalho não documentado afronta a lei (ou seja, deveria ser registrado em carteira e gozar de plenos direitos sociais), pode-se concluir que apenas uma pequena parcela das ilegalidades trabalhistas praticadas em território nacional realmente chega às barras dos tribunais laborais brasileiros.

Pode-se, é claro, partir de outra premissa: a de que a massa trabalhadora na informalidade é composta por “empreendedores individuais”, felizes proprietários de meios de produção (como carros, motocicletas e bicicletas). Não creio, porém, que o panorama econômico atual abone essa visão. Nem sequer o governo a abonaria, já que encaminhou ao Congresso o projeto de lei complementar 12/2024, prevendo para a fração mais proeminente dessa coletividade —os trabalhadores por aplicativo, ali chamados de “autônomos”, que já totalizam mais de 2,1 milhões de pessoas no Brasil (IBGE, out/2023)— típicos direitos sociais, como a limitação de jornada (12h) e a remuneração mínima (R$ 32,10/h), idênticos àqueles outrora concedidos aos trabalhadores comuns nos albores do constitucionalismo social, entre 1917 (Constituição mexicana) e 1919 (Constituição de Weimar). Poucos contribuem para a seguridade social, mas precisarão dela.

Resta uma indagação. Acaso seria legítimo admitir, para o “bem” da economia, leis, decisões e acordos que restringissem direitos sociais fundamentais? Historicamente, como ponderou o então ministro do STF Ricardo Lewandowski na ADI (ação direta de inconstitucionalidade) 6.363, é cíclica “a tentação de suprimir —antes mesmo de quaisquer outras providências— direitos arduamente conquistados ao longo de lutas multisseculares. Primeiro, direitos coletivos, depois sociais e, por fim, individuais (…)”.

“Não há almoço grátis” (Milton Friedman). Nem direitos sociais. A história ainda ecoa os seus custos.

Por Guilherme Guimarães Feliciano, professor da Faculdade de Direito da USP e juiz do Trabalho (TRT da 15ª Região); é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

*Texto publicado originalmente em Folha de S.Paulo

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