Novo relatório aponta que polícia política e montadoras “construíram um sistema de vigilância e repressão” durante a ditadura militar

Documento faz parte do inquérito que investiga as relações entre a Volkswagen do Brasil e a ditadura militar; relatório cita outras nove empresas do setor

Um novo relatório reforça a acusação de que a Volkswagen do Brasil contribuiu com a ditadura militar na perseguição de oponentes políticos. Autoesporte teve acesso à íntegra do documento, que é assinado por Guaracy Mingardi, doutor em ciências políticas pela Universidade de São Paulo e ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade, e Martin Carone dos Santos, advogado criminalista. O relatório de 104 páginas analisa documentos oficiais dos órgãos de repressão da ditadura e conclui, entre outras coisas, que “havia um conluio desde o início entre a Volkswagen e o aparelho repressivo”. Outras empresas do setor automotivo são citadas como parte de “um sistema de vigilância e repressão”.

O relatório “A participação da indústria paulista na repressão: o caso Volkswagen” foi anexado ao inquérito público que está sob os cuidados da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal. As conclusões deste material seguem a mesma linha do relatório que um historiador alemão produziu a pedido da sede da Volkswagen na Alemanha. Conforme Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, antecipou à Autoesporte, a “Volkswagen do Brasil ajudou a perseguir e prender oponentes políticos da ditadura”. A VW do Brasil já recebeu este documento, porém ainda não tornou público seu conteúdo. Ele também ainda não faz parte do inquérito do MPF.

As acusações

O relatório brasileiro traz diversas acusações contra a Volkswagen do Brasil. Segundo os autores, os documentos analisados permitem afirmar “além de qualquer dúvida” que “houve participação da Volkswagen na repressão”. Essa participação chega a ser descrita como “camaradagem” e teria envolvido “não só a colaboração através da troca de informações, mas também repressão ativa da empresa contra funcionários”.

O ponto de contato entre a montadora e os órgãos de repressão era o Departamento de Segurança Industrial, comandado por dois militares: general Alcides C. de Castro e Silva (entre 1959 e 1969) e coronel Adhemar Rudge (a partir de 1971). A cooperação dessa diretoria é dividida pelos autores em dois momentos: no começo dos anos 1970, principalmente em 1972, foi identificada uma “repressão essencialmente ideológica, buscando identificar os indivíduos que estariam defendendo a ideologia comunista”. No final da década, “a repressão visava contornar as greves e paralisações que aconteceram seguidamente naqueles anos”, o que se “prolongou pelo menos até 1981”. Mas, o relatório também aponta que houve um “relacionamento especial” entre a segurança da VW do Brasil e os militares “desde antes do golpe de 1964”, o que leva os autores a concluir que “havia uma identidade de objetivos, ou talvez mesmo uma proximidade ideológica com os militares”.

A colaboração ativa entre a Volkswagen do Brasil e os órgãos da ditadura “não foi fruto das circunstâncias ou do acaso”, segundo o texto. “Portanto havia um conluio desde o início entre a Volkswagen e o aparelho repressivo”, tese que seria reforçada pela contratação de dois militares na chefia do departamento de Segurança Industrial da empresa.

O documento também cita outras nove montadoras, fabricantes de combustíveis, pneus e tratores que teriam colaborado com os órgãos de repressão. A forma como tais companhias contribuíram com os militares leva os autores a afirmar que “a polícia política e as empresas de montadoras de veículos construíram um sistema de vigilância e repressão”. Eles ponderam, porém, que a Volkswagen do Brasil “foi uma das mais eficientes em manter uma aparência de legitimidade, enquanto agia nas sombras como instrumento da repressão política”.

Prisões dentro da fábrica

Entre os diversos episódios que constam no relatório como exemplos de colaboração da Volkswagen do Brasil e a ditadura, dois se destacam. Em um deles, um gerente da empresa teria omitido a prisão de um funcionário ao informar à família que ele se ausentaria por conta de uma viagem a trabalho. Em outro, a prisão teria ocorrido na linha de montagem da empresa, acompanhada por agentes do departamento de segurança, que teriam testemunhado agressões contra o funcionário detido. Local das prisões, a fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP) foi a primeira linha de produção da empresa fora da Alemanha e atualmente é responsável pela produção do novato Polo, do futuro Virtus e da picape Saveiro.

O primeiro caso aparece no depoimento de Henrich Plagge ao MPF, contratado pela VW do Brasil em 1960 como ajudante de inspeção. Doze anos depois, em 8 de agosto de 1972, Plagge foi chamado à gerência da empresa por volta das 14h. No local, encontrou dois desconhecidos e o gerente Ruy Luiz Giometti.

Plagge foi preso por “atividades subversivas”, levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e submetido a torturas. Em seguida, funcionários da Volkswagen teriam omitido a prisão à família de Plagge. “Naquele mesmo dia o gerente da Volks foi até sua casa para avisar seus familiares que estava em viagem por conta da firma. Os familiares só descobriram realmente o que aconteceu quando Flagge (sic) foi colocado em liberdade, em dezembro de 1972. Tão logo isso aconteceu foi demitido. Em outras palavras a empresa participou ativamente da farsa montada pelo DOPS ao mentir para a família”, diz o relatório.

O outro caso é o do então ferramenteiro Lucio Bellentani, que, aos 28 anos de idade, foi preso enquanto trabalhava no setor de prensas da montadora. Documentos e depoimentos mostram que o aconteceu em julho de 1972, às 23h30. A ação teria sido comandada por agentes dos órgãos de repressão, mas “acompanhada por seguranças da companhia”. Além de Bellantani, outros 12 funcionários e dez pessoas que não trabalhavam na empresa foram presas sob a alegação de fazerem parte do mesmo grupo.

Lucio Bellentani afirma ter sido levado da linha de produção para “uma sala do setor de Recursos Humanos”, onde teria sido agredido com “socos, chutes e pontapés”. De lá, foi transferido para a sede do DOPS, no centro de São Paulo, onde teria sido torturado com “palmatórias nas mãos, pés e cabeça, pau de arara, choque elétrico e chegou a ser arrastado em um veículo amarrado pelas mãos”, conforme os documentos anexados ao relatório.

Fonte: Revista Auto Esporte

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