Em entrevista ao Sindicato do Vestuário de Guarulhos, o filho do presidente deposto pelos militares fala também das reformas defendidas pelo pai e que ainda não foram realizadas na sociedade brasileira
João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, o Jango, deposto pelo golpe militar de 1964, foi entrevistado pela Assessoria de Imprensa do Sindicato do Vestuário de Guarulhos, em Sorocaba, em Ato de Homenagem aos trabalhadores perseguidos e torturados na ditadura militar, realizado pelo Grupo de Trabalho (GT) – Ditadura e repressão aos trabalhadores e trabalhadoras e ao movimento sindical da Comissão Nacional da Verdade.
João Vicente tem hoje 57 anos, é filósofo, poeta, empresário, é diretor presidente do IPG-Instituto Presidente João Goulart. Ele falou sobre importância de atos e homenagens aos perseguidos da ditadura como forma de manter viva a lembrança de um dos períodos mais violentos da história do Brasil e ensinar para as novas gerações o que deve ser evitado.
João Vicente também falou da importância das reformas estruturais defendidas por Jango. Projetos que foram transformados e difundidos, com decidida contribuição da grande imprensa, em “idéias subversivas” para intensificar o terror ao comunismo que a classe média já alimentava à época e, com isso, obter-se apoio popular para o Golpe Militar de 1964, que o destituiu da presidência e o obrigou ao exílio e peregrinação por vários países da América Latina e depois na Inglaterra.
Foi com certa dose de emoção que o filho de Jango falou do exílio, dos efeitos à saúde do pai, dos amigos que visitavam clandestinamente o presidente deposto e dos que se afastaram para evitar problemas com a Polícia Federal e autoridades militares. João Vicente encerra a entrevista com informações sobre as investigações da morte de Jango.
Sindicato do Vestuário – Como o senhor avalia esse Ato e homenagem aos trabalhadores perseguidos pela Ditadura Militar?
João Vicente – Homenagens e atos como esse nos reportam a uma redenção das lutas políticas que existiram nesse país e que foram impedidas no seu prosseguimento pelo golpe de 1964. Nesse ano, fizemos algumas palestras, atendendo a vários convites em nome do Instituto João Goulart, e temos sentido como é importante as novas gerações conhecerem o que foram as lutas pelo nacionalismo e as lutas pela distribuição de renda do nosso país, e as lutas que impediram o processo de reformas de base propostas por João Goulart, em 1964.
Entendemos que esse tipo de Ato resgata não só a história, mas também as pessoas que lutaram; que naquele momento tiveram o entendimento de que lutar por um Brasil mais justo realmente valia. (o Ato) É de suma importância para a memória das novas gerações do Brasil.
Eu, particularmente, tenho tido uma grande receptividade ao conduzir, pela palavra, informações sobre a história, e acho que o povo brasileiro tem o direito de saber o que foi feito e o que não foi feito a partir de 1964.
Sindicato do Vestuário – O que o Golpe de 1964 interrompeu?
João Vicente – A verdade é que o Golpe de Estado de 64 não foi dado apenas contra o presidente da República, o Golpe de Estado de 1964 foi dado contra um projeto de nação, um projeto de reformas estruturais da nação brasileira, um projeto que queria reformar a estrutura básica para distribuir renda. Nisso estava a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma constitucional, a reforma política, a lei de remessa de lucros, a encampação de refinarias de petróleo, o nacionalismo dentro da nossa economia, enfim. E essas reformas ainda não foram feitas na sociedade brasileira.
Lógico que nos temos que adaptar, os tempos são outros, mas nós temos visto onde temos andado que os problemas são os mesmos. Hoje, nós vivemos no Brasil um neocolonialismo de empresas estrangeiras – (temos muitos problemas) para falar ao telefone no Brasil, (para tentar uma solução) você fica meia hora falando com uma secretária eletrônica e não consegue resolver os problemas. E de quem são essas empresas? Quem acabou com a Embratel?
Nós até hoje não temos uma empresa genuinamente brasileira, principalmente nesse setor de telecomunicações, que possa, num problema político ou num problema de guerra, evitar que fiquemos na mão de uma italiana, de uma mexicana, de uma francesa. Essas que remetem tantos lucros para o exterior, que nos últimos quatro anos remeteram 95% dos seus lucros, deixando apenas 5% de reinvestimento na telefonia operativa no Brasil. Porque suas matrizes eram deficitárias, tiram o lucro daqui, prestando um péssimo serviço ao provo brasileiro.
Isso é uma das coisas, a reforma bancária é outra grande necessidade. Hoje o crédito brasileiro está nas mãos de quatro ou cinco conglomerados bancários.
E a reforma urbana? Precisamos criar habitação para esses milhões de pessoas que não têm onde morar. Enfim, existem mil reformas. Eu acho que para avançarmos, temos que pensar nessas reformas. Pensar numa profunda reforma política e pensar também que o Brasil precisa evoluir, não apenas eleitoralmente, mas evoluir no escalamento das conquistas sociais através de novas reformas.
Sindicato dos Vestuário – Como foi o exílio e quais foram os efeitos sobre o ex-presidente e sobre sua família?
João Vicente – Eu era muito pequeno. Eu saí do Brasil com 7 anos, e nós, evidentemente, fomos arrancados… o exílio, o presidente João Goulart, o meu pai, sempre dizia que era uma invenção do demônio porque você está perto da sua terra, mas não pode ir (até ela), é tratado como um delinqüente e tem que, muitas vezes, se tornar como aquelas aves migratórias. Todos sabem que a América Latina, nos anos 70 passou por um processo ditatorial comandado pela política externa do estado americano, com Henry Kissinger no Departamento dos 40 (também conhecido como Comitê 40, de caráter semiclandestino de ligação entre a Casa Branca e CIA para desestabilizar governos não alinhados às políticas norteamericanas).
Em certo momento, todas as democracias latinoamericanas foram derrubadas pela política das ditaduras orientadas por Washington, e isso perseguiu a todos os brasileiros, argentinos, uruguaios, bolivianos, peruanos que, de uma forma ou outra, estavam exilados noutros países dentro da América Latina apenas por acreditarem na liberdade e na democracia como forma de governo. Foram perseguidos, mortos, torturados, e nós temos que resgatar, como hoje estamos resgatando (em atos e homenagens que discutem a ditadura e seus efeitos), essas figuras heróicas anônimas que participaram para que nós hoje vivenciemos uma democracia. Foram eles que nos proporcionaram através do seu exemplo e da sua história esta conduta que devemos ter como brasileiros, como democratas e como latinoamericanos.
Sindicato do Vestuário – Em quais paísesa família de Jango se exilou?
João Vicente – Nós moramos em vários países da América Larina: Uruguai, Paraguai; na Argentina, no retorno de (Juan Domingo) Perón. E depois do golpe da Argentina, acabamos exilados na Europa, na Inglaterra, pois a América Latina não dava nenhuma segurança àqueles que, como eu disse anteriormente, acreditavam na liberdade e na democracia como forma de governo.
Sindicato do Vestuário: No exílio, o seu pai continuou mantendo contato com os amigos e políticos deixados no Brasil?
João Vicente – Meu pai manteve contato com amigos do Brasil, mas havia, evidentemente, os que se afastaram porque só o fato de atravessar a fronteira e tomar um café com o presidente deposto era motivo de, na volta, serem pegos pela Policia Federal e pelas autoridades militares para interrogatórios de duas ou três horas nos aeroportos ou nos lugares de fronteiras, então muitos se afastaram.
Mas existiam os velhos cassados e os velhos companheiros que, de uma forma ou outra, tinham esse contato e às vezes até saíam clandestinamente do Brasil para terem esse contato, para trocarem informações sobre o processo político brasileiro que estava se operacionalizando naquele momento.
Alguns eram contatos secretos, outros não, como foi a atitude do presidente João Goulart em receber seu arqui-inimigo Carlos Lacerda, quando, em nome do Brasil, deixaram de lado as suas inimizades políticas e construíram a Frente Ampla Lancerda, Jucelino e Jango (a Frente Ampla pleiteava eleições diretas, reforma partidária, desenvolvimento econômico e adoção de política externa soberana).
Sindicato do Vestuário – É verdade que o ex-presidente ficou profundamente depressivo e doente no Exílio?
João Vicente – O exílio produz uma saudade imensa naquelas pessoas que, como Jango, lutaram a vida inteira por um Brasil mais justo e viam de longe o que estava acontecendo com os trabalhadores brasileiros: o maior achatamento salarial que essa nação já presenciou em toda a sua existência republicana, a falta de liberdade, as torturas que o povo brasileiro e aqueles que não concordavam com a ditadura estavam sofrendo. Evidente que o exílio deprime e transforma as pessoas quase que como em zumbis. Os exilados se tornam quase que mortos vivos que não conseguem respirar a liberdade e a democracia.
Mas (Jango) nunca desistiu da luta, ele tinha plena convicção de que sua permanência no exílio, assim como foi a sua saída depois que empossaram o Mazzili para configurar o golpe – empossaram um presidente com o outro presidente constitucional dentro do território brasileiro –, e ele sabia que a sua posição no exílio configurava e denunciava a ditadura brasileira que se dizia democrática. Então, eu acho que lutar vale a pena; e principalmente lutar pela democracia é um atributo dos heróis da pátria, que a história não esquece.
(Pascoal Ranieri Mazzili, advogado, jornalista e político brasileiro foi empossado pelos militares logo após o golpe, enquanto Jango ainda estava no Brasil, configurando golpe de estado. Ele governou o Brasil pelo brevíssimo período de 2 a 15 de abril de 1964).
Sindicato do Vestuário – Qual foi a participação da imprensa no Golpe?
Joaõ Vicente – Tínhamos no Brasil uma estrutura pró-golpe a partir de 1961, já para derrubar Jango, tanto é que houve em 1961 um levante democrático e popular através do Rio Grande do Sul, que foi o Movimento da Legalidade, para dar posse ao vice (presidente) que estava na China naquele momento.
A partir dali, em que os militares são “temporariamente derrotados”, eles preparam e começam a conspiração com farto apoio americano, que cria o IBADES (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), que compravam as redações de grandes jornais e produziram na classe média brasileira um terror do comunismo que não era verdadeiro. Lamentavelmente elas (as grandes redações) foram impregnadas por isso, acreditaram que os militares iriam dar a eleição em 1965, e nós tivermos 21 anos de ditadura. Pobres daqueles que acreditaram nessa profecia.
Sindicato do Vestuário – Como está a investigação a respeito da morte de Jango?
João Vicente – Existe, desde dezembro de 1976, a suspeita de que a morte de Jango poderia ter acontecido não por meios naturais, mas ter sido provocada por troca de medicamentos.
Essas suspeitas vêm crescendo. Nós tivemos vários indícios nesses trinta e tantos anos. Inclusive agentes da repressão uruguaia que participaram, que teriam participado, denunciaram isso. Existe uma denúncia escrita na nossa Polícia Federal, que corre no Ministério Público (Federal) e a família não poderia se abster de investigar isso. Então, nós concedemos ao pedido de investigação porque a família não pode viver os seus dias sem esse esclarecimento.
Até porque é um dever da nação (brasileira) esse esclarecimento. Jango, afinal, é um dos seus ex-presidentes eleitos constitucionais e a história do Brasil não pode conviver com essa dúvida.
A figura dele não é só da família, ele é um bem imaterial e cultural da nação brasileira, e (a sua morte) todos os brasileiros devem tentar esclarecer.
Com isso, com a Comissão da Verdade criada no governo da presidente Dilma (Roussef), foi possível fazer a exumação e foi possível tentar esclarecer essa dúvida. Hoje, a parte toxicológica dos restos mortais ainda está em laboratórios no exterior porque o Brasil não tinha tecnologia suficiente para escanear essas amostras dos restos mortais do João Goulart, e nós estamos esperando a confirmação ou não, que poderá ser positiva ou não.
O resultado depende também do tipo de substâncias que poderiam ter sido usadas. Substâncias organocloradas, que permanecem por longo tempo, deixam vestígios e podem ser detectadas. Mas tem outras substâncias que foram praticadas pela ditadura chilena, pela DINA (Direção de Inteligênica Nacional – polícia política do Chile, instalada na ditadura de Augusto Pinochet, chefiada pelo militar Juan Manuel Guillermo Contreras Sepúlveda), como os gases, tipo o gás sarin, que não deixam rastro.
(O gás sarin é usado como arma química devido à sua extrema potência sob o sistema nervoso. Ele foi classificado como arma de destruição em massa na Resolução 687 das Nações Unidas)
Vários assassinatos por envenenamento no golpe chileno estão sob a guarda do juiz (Alejandro) Madrid. Nós, aqui, esperamos que os laboratórios possam indicar ou não. Mas a família fez o dever de casa, está com o dever cumprido. Levamos esse pedido ao Ministério Público e à Comissão da Verdade, esgotando tudo aquilo que poderíamos a fazer. E até que nos digam que as possibilidades estão esgotadas, nós estamos na luta.
Fonte: Sindvestuario Guarulhos