Vantagem se mantém em grupos com educação semelhante e dentro de uma mesma profissão e indica gargalos no mercado de trabalho
Fazer ensino médio em escola privada e universidade pública, realidade de uma minoria de brasileiros, resulta em salários maiores no futuro. Mas a vantagem não é proporcional entre todos os formandos dessas modalidades de ensino mais valorizadas, aponta estudo do Insper.
Mesmo entre aqueles que cursaram o ensino superior público, um homem branco chega a ganhar em média quase 160% a mais do que uma mulher negra (considerando a soma de autodeclaradas pretas e pardas).
E esse diferencial não está ligado somente à escolha de cursos, já que mesmo dentro de uma mesma profissão a vantagem dos homens brancos se mantém.
Entre médicos que se formaram em universidade pública, por exemplo, um homem branco ganha em média R$ 15,1 mil, um homem negro R$ 10,6 mil, uma mulher branca R$ 6,6 mil e uma mulher negra R$ 6,4 mil.
“Há uma estratificação bem clara: quem mais ganha é o homem branco, depois o homem negro, a mulher branca e por último a mulher negra. Mesmo dentro da mesma ocupação e tendo feito universidade pública, que é bem selecionada”, observa Naercio Menezes Filho, um dos autores do estudo, ao lado de Beatriz Ribeiro e Bruno Komatsu.
“Isso mostra a discriminação contra os negros e as mulheres no acesso a empregos bem remunerados ou a posições de destaque dentro dessas carreiras. Mesmo ter feito ensino superior não parece suficiente para quebrar essa barreira que existe.”
O estudo foi feito utilizando dados do módulo especial sobre educação da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 2016 e 2018. A pesquisa permite relacionar a formação recebida no passado com a renda atual de brasileiros com idades entre 25 e 59 anos.
Segundo o levantamento, uma minoria de brasileiros que terminaram o ensino médio cursaram escolas privada: apenas 15%, contra 85% que fizeram esse nível de ensino em escola pública.
No ensino superior, a proporção se inverte. Cerca de 72% dos que fizeram faculdade cursaram instituições privadas de ensino, comparado a 28% que cursaram universidades públicas.
Essa exclusividade das modalidades de ensino mais valorizadas se reflete em vantagens salariais no futuro. Quem cursou ensino médio privado, por exemplo, recebe em média R$ 5,5 mil na vida adulta, comparado a uma renda média de R$ 2,4 mil de quem cursou ensino médio público, um diferencial de 127%.
Entre quem cursou ensino superior público e privado também há diferenças salariais – de R$ 5,2 mil para R$ 4,7 mil–, mas aqui a vantagem é menor, de apenas 10%.
“Há uma diferença muito grande entre as pessoas que frequentam ensino médio privado e público”, explica Menezes Filho. “No ensino privado, as pessoas que frequentam em geral são de alta renda, a educação dos pais é maior, o investimento nas crianças desde os primeiros anos de vida é maior, as escolas tendem a ser melhor equipadas e há as conexões entre os alunos. Tudo isso gera um diferencial de produtividade bem grande.”
Já no ensino superior, esses diferenciais não são tão marcados, avalia o pesquisador. Há parte da elite que entra no ensino superior público e parte, no privado. E há boas faculdades em ambos os sistemas. “Assim, fica mais equivalente o salário, faz mais diferença o tipo de ensino médio feito do que o ensino superior.”
Como são poucos os que cursam as modalidades de ensino mais valorizadas e são elas que resultam nos maiores salários, os pesquisadores destacam que esse é um fator relevante para o aumento da concentração de renda no país.
“Quando a elite tem condições de pagar um ensino médio privado, por exemplo, os filhos têm mais vantagens para passar no vestibular, tanto na universidade pública como privada. Esses filhos vão ganhar mais no futuro e ter condições de pagar para seus próprios filhos frequentarem ensino médio privado, convivendo com pessoas que também tem alto capital humano, educação e renda. Isso produz uma sociedade estratificada”, diz Menezes Filho.
Para o pesquisador, no entanto, o ponto mais relevante do estudo é mostrar como essas vantagens educacionais são desproporcionalmente apropriadas pelos homens brancos, em detrimento das mulheres e dos negros.
“Se estivéssemos olhando apenas para o ensino superior público ou privado, os diferenciais também poderiam refletir a escolha de cursos das pessoas”, afirma.
O professor do Insper lembra que homens brancos têm probabilidade maior de fazer cursos como medicina, engenharia, direito e economia. Já as mulheres negras tendem a fazer cursos de humanas, educação e formações ligadas ao cuidado, como enfermagem.
Mas mesmo dentro de uma mesma ocupação e tipo de formação, a diferença de renda entre os grupos é significativa. O que, segundo Menezes Filho, reflete a desigualdade de acesso aos postos de trabalho melhor remunerados.
Sempre considerando formados em universidades públicas, em engenharia e arquitetura, homens brancos ganha em média R$ 9,9 mil, homens negros R$ 8,6 mil, mulheres brancas R$ 7,2 mil e mulheres negras R$ 5,3 mil, aponta o estudo.
Entre professores, homens brancos têm renda média de R$ 5,9 mil, homens negros de R$ 4,3 mil, mulheres brancas de R$ 3,8 mil e mulheres negras de R$ 2,9 mil.
“Há uma espécie de ‘teto de vidro’ nas profissões, a partir do qual a mulher tem dificuldade de entrar, por exemplo, em cargos gerenciais ou de diretoria dentro das profissões. Isso acontece principalmente para as mulheres negras”, observa Menezes Filho.
Segundo o pesquisador, essa realidade reflete em parte a vida reprodutiva da mulher, que dificulta o acesso delas a certas posições dentro das corporações. “Mas isso é cultural, não precisava ser assim, pais e mãe poderiam ter a mesma responsabilidade pelos filhos, dedicando o mesmo tempo. É um aspecto cultural que leva a mulher a se sacrificar.”
Já no caso do diferencial de salário entre as raças, a explicação é o racismo estrutural. “A sociedade brasileira tem um componente discriminatório desde a infância. Na sociedade, isso está em todo lugar, nas ruas, nas lojas, na hora da contratação, na promoção. E os negros também acabam introjetando essa discriminação acumulada ao longo da vida, o que define suas escolhas e acaba influindo também nesses diferenciais de salários observados.”
Para Menezes Filho, um primeiro passo importante na mudança desse quadro foi a adoção da Lei de Cotas no ensino superior público federal.
Ele acredita também que cotas poderiam ser adotadas no serviço público, onde as remunerações são elevadas, e avalia que o financiamento porporcional para campanhas políticas de candidatos negros também deve ser um avanço importante, embora o sucesso da iniciativa vá depender de como será sua implementação na prática.
O professor avalia ainda que políticas de crédito para mulheres e negros são importantes no momento atual, em que há uma redução do emprego com carteira e avanço do trabalho por conta própria.
O pesquisador não defende, porém, a adoção de cotas no setor privado. “Se o setor privado não estiver convencido de que é bom para as próprias empresas ter mais diversidade, ter talentos que não estão sendo utilizados, é difícil forçar isso”, afirma.
“É preciso uma mobilização da sociedade para que os empregadores entendam o quanto estão perdendo com a discriminação e quanto o país está perdendo em termos de produtividade, que está estagnada há muito tempo.”
Fonte: Folha de S.Paulo