Avanço da ‘uberização’ acarretou bicos precários e diminuição na renda, avalia autor
Em novembro do ano passado, um protesto de centenas de motoboys e ciclistas da Rappi trancou a avenida Paulista. Os entregadores da startup colombiana, um dos incontáveis aplicativos de delivery na cidade de São Paulo, reivindicavam aumento na remuneração das corridas —o valor mínimo fica na casa dos R$ 5.
As queixas se estendiam ao prazo para as tarefas e às penalidades em caso de atraso ou recusa do serviço. Além de bloqueios temporários, os entregadores estão sujeitos a dívidas se o aplicativo não processa a tempo o cancelamento de uma viagem.
Meses antes, fiscais do extinto Ministério do Trabalho já haviam aplicado multas milionárias a duas concorrentes da Rappi: a Loggi e a Rappido, empresa do grupo Movile, um dos raros espécimes brasileiros de “unicórnio”, ou startup com valor de mercado de ao menos US$ 1 bilhão.
Ambas foram autuadas por infrações à legislação trabalhista decorrentes, na avaliação dos fiscais, de uma irregularidade primordial: deixar de registrar motofretistas como empregados. Só no caso da Loggi, o Ministério Público do Trabalho cobra indenização de R$ 200 milhões.
A explosão de aplicativos de delivery é provavelmente o caso mais representativo das rupturas geradas no Brasil pelo avanço da “gigeconomy” —a economia dos bicos. Até poucos anos atrás, os serviços de entrega eram pulverizados entre empresas de pequeno porte, que contratavam motoboys, reconhecidos como categoria profissional regulamentada.
Hoje a atividade está ao alcance de qualquer um que aceitar termos e condições de plataformas digitais. A avalanche de aplicativos é turbinada por fundos de venture capital (investimento de risco) inclinados num primeiro momento a perder dinheiro em ofertas a usuários e trabalhadores, para depois ganhar mercado.
Assim como nos EUA, que viram a ascensão das startups do Vale do Silício no rescaldo da crise de 2008, a “gig economy” deslanchou no Brasil com a recessão iniciada em 2014. Meia década depois, ela funciona como uma verdadeira bomba de sucção de 12,2 milhões de desempregados e 40,8% de trabalhadores informais.
Embaladas por um “tecnofetichismo”, as plataformas oferecem de faxina a passeio com cachorro e têm lado numa das batalhas ideológicas em curso no país: a aprovação de reformas de orientação liberal sob os mantras do corte de custos e da alergia à regulação do Estado. O presidente Jair Bolsonaro já afirmou que as leis trabalhistas devem “se aproximar da informalidade”.
Em geral, os aplicativos se apresentam como meros intermediadores entre consumidores e fornecedores. Apesar de seus algoritmos estipularem preços, controlarem a prestação do serviço e aplicarem penalidades, as empresas argumentam que os trabalhadores são autônomos. Assim, motoboys do iFood, faxineiras da Parafuzo e motoristas da 99, para citar algumas das mais conhecidas startups brasileiras, são considerados clientes, e não empregados.
A chamada “uberização”, referência à plataforma de transporte mais popular do mundo, é a mais recente e significativa das “mutações neoliberais” do mercado de trabalho desde a década de 1970, na definição de Veena Dubal, professora da faculdade de Direito da Universidade da Califórnia. Um sistema de gestão de mão de obra que se ancora no discurso de liberdade e autonomia para transferir a “empreendedores de si mesmos” os riscos da atividade econômica de gigantes digitais.
No Brasil, o exemplo dos entregadores é paradigmático da terceirização total de riscos. Para a prestação do serviço de entrega, diversos aplicativos exigem o registro de MEI (Microempreendedor Individual), pessoa jurídica criada em 2008 que limpou o terreno para a uberização. Se ficar impossibilitado de trabalhar, o trabalhador só terá o salário mínimo garantido pela contribuição paga por ele próprio ao INSS.
Para além da desproteção trabalhista, um estudo do Ipea de janeiro de 2018 acendeu outro alerta sobre a proliferação dos MEIs: o alargamento do rombo da Previdência. Segundo o documento, o número de microempreendedores individuais chegou a 7,7 milhões em dezembro de 2017. “Parece estar ocorrendo alguma migração de empregados formais para MEI”, detecta a publicação.
Como a contribuição mensal ao INSS é quase simbólica (5% do salário mínimo), o estudo estima uma necessidade de financiamento de ao menos R$ 464,7 bilhões nas próximas quatro décadas para cobrir o desfalque gerado por esse regime.
É inegável que plataformas bem-sucedidas da “gig economy” têm aceitação entre consumidores, não só pelos preços acessíveis mas também por centrarem fogo em nichos pouco eficientes. Dentre as cidades dos 65 países em que a Uber atua, São Paulo é a que mais usa o aplicativo.
Diante de altas taxas de desemprego e informalidade, baixa produtividade e precarização até dos postos com carteira assinada, também não surpreende que os aplicativos atraíam gente à caça de ocupação.
Porém, a longo prazo, essa mecânica pode desencadear o que Trebor Scholz descreve em seu livro “Uberworked and Underpaid” (“uberexplorados e sub-remunerados”): uma “corrida para o fundo do poço”. Quando motoristas concorrem entre si e assumem o risco da atividade de uma plataforma, o limite é rodar o dia todo e morar no próprio carro —o que já ocorre na Califórnia.
No setor de transporte de passageiros, aquilo que um dia já foi euforia parece estar com os dias contados. Um estudo do Instituto JP Morgan Chase revela um declínio considerável nas remunerações dos motoristas nos EUA. Em março de 2018, o rendimento mensal médio era 53% inferior em relação ao pico de 2014.
Neste ano, deve sair do papel a aguardada abertura de capital da Uber. Para analistas, os anos de prejuízo (US$ 1,8 bilhão só em 2018) forçarão a empresa a elevar tarifas para consumidores, a baixar repasses a motoristas ou a combinar as duas medidas. Não há para onde correr.
Se a princípio os fundos de venture capital bancam tarifas sedutoras para recrutar trabalhadores, a longo prazo tende a se consolidar “uma estratégia de baixa remuneração”, segundo Veena Dubal. Como compensação, premiações transformam o cotidiano de trabalho em uma espécie de gincana viciante, prolongada e perigosa. Na capital paulista, o número de mortes entre motociclistas aumentou 18% no ano passado .
A ressaca da “gig economy” vem colocando em xeque até mesmo modelos econômicos consagrados, como a Curva de Phillips. Grosso modo, ela relaciona a queda do desemprego ao crescimento da inflação.
Se há excesso de gente ocupada e com dinheiro para gastar, presume-se que os preços disparem. Porém economistas de peso vêm levantando a hipótese de que a Curva de Phillips perdeu a validade. Um deles é Lawrence Summers, secretário do tesouro no governo do ex-presidente norte-americano Bill Clinton.
Nos EUA, o desemprego despenca desde a crise de 2008. Hoje está em patamar historicamente baixo, inferior a 4%. Mas a inflação não decolou. Uma das explicações é justamente a nova diagramação do mercado de trabalho. As rendas geradas por bicos precários, instáveis e de baixa remuneração já não têm o poder de empurrar os preços para cima.
É por essa razão que, em artigo no Financial Times, Summers cravou: “A América precisa mais que nunca de seus sindicatos”. O palpite do economista é que o poder de barganha dos empregadores aumentou e o dos trabalhadores diminuiu. No caso dos aplicativos, em que a figura do patrão veste a fantasia imaterial de um algoritmo, reivindicar direitos se torna ainda mais desafiador.
No Brasil, a lógica da terceirização total de riscos para trabalhadores atomizados já deu mostras do seu potencial de estrago em maio do ano passado, com a histórica greve dos caminhoneiros. Desde 2007, com a aprovação da lei 11.442, que criou a figura do transportador autônomo de carga, a categoria também atravessa um processo de uberização.
“Os caminhoneiros foram encorajados a se endividar e tentar adquirir veículo próprio, com o sonho de maior autonomia e de ‘não ter mais patrão’, e 44,8% dos caminhoneiros estão endividados, conforme pesquisa da Confederação Nacional do Transporte em 2016. Nada muito diferente do que ocorreu com trabalhadores que perderam empregos e adquiriram carros para trabalhar para aplicativos de transporte de pessoas”, compara Rodrigo Carelli, procurador do Ministério Público do Trabalho e professor de direito da UFRJ, em artigo de junho de 2018.
As plataformas da “gig economy” pegaram carona nas utopias igualitárias da sua irmã mais velha e virtuosa, a “sharing economy” (economia do compartilhamento), mas seguiram caminho oposto. Em vez de catalisar trocas diretas de bens e serviços a partir da internet, a primavera de apps “acabou se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos e sem qualquer segurança previdenciária”, escreve Ricardo Abramovay, economista e professor da USP, no prefácio do livro “Uberização – A Nova Onda do Trabalho Precarizado”, de Tom Slee (Elefante, 2017).
A longo prazo, a “gig economy” pode aprofundar a “dualização econômica” já tão característica de países em desenvolvimento, como o Brasil, nos termos propostos pelo professor de Harvard Dani Rodrik em “Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy” (“conversa franca sobre o comércio: ideias para uma economia mundial saudável”, lançado em 2017). Nesse desenho, a ponta da pirâmide da economia digital fica reservada a uma minoria de profissionais criativos, altamente produtivos e bem remunerados.
Já a base é sustentada por uma massa de trabalhadores desprotegidos e facilmente substituíveis.
Resta ainda um complicador: os desafios da robotização e da inteligência artificial. Dos testes do carro sem motorista da Uber aos do delivery via drones da Amazon, as perspectivas de inovações tecnológicas para o mercado de trabalho não são das mais animadoras.
Por Carlos Juliano Barros é jornalista, documentarista e mestre em geografia humana pela USP.
Fonte: Folha de S.Paulo