Documentos dos EUA mostram que país sabia de torturas da ditadura militar no Brasil

Material entregue à Comissão Nacional da Verdade detalha abusos e afirma que presos eram levados para instalações militares

BRASÍLIA – Os documentos entregues pelo governo americano à Comissão Nacional da Verdade mostram que os diplomatas do país tinham conhecimento em detalhes das torturas praticadas nos porões do regime militar, mas pouco fizeram para evitá-las. Relatórios enviados pela embaixada americana no Brasil ao Departamento de Estado revelam com detalhes métodos de tortura física e psicológica e até mesmo o relato direto de um agente da repressão.

Em abril de 1973, um aerograma enviada pelo Consulado Geral do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado trata do crescimento repentino de pessoas sendo presas sob acusação de subversão. O então cônsul Clarence Boonstra relata que, com o aumento das prisões, os agentes brasileiros passaram a usar novos métodos de “extração de informações”. Apesar de não terem abandonados os tradicionais choques elétricos e o pau de arara, “uma nova, mais sofisticada pressão psicológica e física” estava sendo usada para intimidar e apavorar os interrogados, e passa a descrever o que ficou conhecido como “método inglês”.

Depois de ser preso por dois homens armados sem uniforme, o suspeito tem o rosto coberto e é levado para uma sala totalmente escura ou com temperaturas congelantes, onde é deixado por várias horas. Sons de sirenes, gritos e apitos são tocados em volumes altíssimos. Quando os interrogadores chegam, explicam o que vai acontecer com o preso se ele não cooperar. Se não conseguem a informação que querem, o suspeito passa para os meios mais tradicionais de tortura.

De acordo com documentos revelados pela BBC de Londres, o método foi ensinado aos torturadores brasileiros por militares britânicos. O relatório do diplomata americano não trata da origem da novidade, mas revela que o método só não era aplicado a dois tipos de suspeitos: aqueles com boas conexões, para que não houvesse repercussões, e os considerados “terroristas duros”. Esses eram passados diretamente para a tortura física.

O relatório revela, ainda, que os presos estavam sendo levados para unidades militares – o que contradiz os recentes relatórios das Forças Armadas, entregues à Comissão da Verdade, de que não houve tortura em suas instalações – e que as ações estavam sendo coordenadas por um grupo específico. O documento, no entanto, teve o nome dos responsáveis apagado.

Em outro relatório, esse enviado pelo Consulado em São Paulo, os diplomatas americanos recontam com detalhes uma conversa com um torturador, informante regular do posto diplomático, que trabalhava no Centro de Inteligência Militar de Osasco, em São Paulo. O militar reconta como teria conseguido quebrar uma célula comunista torturando um policial civil com choques nos ouvidos. O rapaz entregou uma companheira, que teria ficado 43 horas em um pau de arara, sem água ou comida, para relevar o que sabia. A tortura, revelou, era prática costumeira no centro de inteligência de Osasco. O mesmo homem explicou como “costurou um subversivo” – o matou atirando com uma arma automática da cabeça aos pés.

“No último ano, vários oficiais de segurança nos confirmaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão. Nós estimamos que pelo menos 12 foram mortos no ano passado em São Paulo”, revela o relatório.

Já em 1970 os diplomatas ouviram de uma americano relatos de tortura. Robert Horth, 30 anos, diretor de estatística da Agroceres, foi detido por ter o nome semelhante a Robert Roth, que seria membro de um grupo de esquerda americano chamado Weatherman. Ficou três dias preso no DOPS de São Paulo, onde foi colocado em uma cela com seis brasileiros. Lá ouviu e viu o resultado das torturas sofridas por eles e relatou ao oficial de políticas do consulado Peter Jon de Vos e ao oficial de agricultura Harold Rabinowitz em um almoço no restaurante Rubayat.

Apesar de ter conhecimento em detalhes do que acontecia nos porões da ditadura, a embaixada americana recomendava “cautela” ao tratar do assunto com o governo brasileiro. Em um relatório, a embaixada sugere que fosse levada a “preocupação do governo americano” com as denúncias para que não houvesse uma reação negativa que pudesse prejudicar a relação entre os dois países. “Nossa mensagem vai ser levada em consideração se o governo for persuadido, tanto por nossas palavras quanto por nossas ações, que estamos falando como ‘amigos preocupados'”, diz o telegrama. Havia o temor de perder a cooperação brasileira, já naquela época, no combate ao narcotráfico. A situação só iria mudar no final da década de 1970, quando o democrata Jimmy Carter assumisse o governo.

 Fonte: O Estado de S. Paulo – Lisandra Paraguassu

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