A morte do promotor pode ter servido para vários propósitos, inclusive, pode ter sido uma arma contra o governo argentino
*Revista Resenha Estratégica / Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa)
Na edição anterior desta Resenha, fizemos a pergunta sobre quem não estaria interessado na morte do promotor argentino Alberto Nisman, e a resposta mais evidente era: o governo da presidente Cristina Kirchner. Para qualquer inteligência mediana, ela seria o suspeito mais óbvio, dado que Nisman não apenas a acusou pessoalmente de um conluio com o governo do Irã, para ocultar a suposta autoria de Teerã no atentando à sede Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, como deveria apresentar as alegadas evidências do fato em uma audiência na Câmara dos Deputados argentina, que não ocorreu devido à sua morte, na noite de 17 para 18 de janeiro, em seu apartamento, em um bairro nobre de Buenos Aires.
Apesar de o ambiente político bastante carregado contra o governo, as evidências apontam para uma complexa e nebulosa trama com ramificações que se estendem muito além da Argentina, envolvendo interesses políticos e estratégicos dos EUA e de Israel, os respectivos serviços de inteligência e diplomáticos, o lobby sionista da comunidade judaica portenha, uma facção do próprio serviço de inteligência argentino e, talvez, outros protagonistas atuando nas sombras. Nesse roteiro de thrillerhollywoodiano, Nisman pode ter desempenhado o papel do proverbial bode expiatório (ou patsy, para usar o termo consagrado pelo “assassino” de John F. Kennedy, Lee Harvey Oswald), em uma trama da qual pode jamais ter percebido o verdadeiro alcance e na qual a sua morte terá servido a vários propósitos.
Em uma carta divulgada no Facebook, em 22 de janeiro, Cristina Kirchner pode ter apontado na direção do alvo, situando o virtualmente certo assassinato de Nisman em um quadro mais amplo:
A denúncia do Promotor Nisman nunca foi, em si mesma, a verdadeira operação contra o Governo. Caía por terra sem ir muito longe. Nisman não sabia e provavelmente nunca soube disso. A verdadeira operação contra o Governo era a morte do Promotor, depois de acusar a Presidente, seu Chanceler e o Secretário-Geral de La Cámpora de encobrirem os iranianos acusados pelo atentado da AMIA.
O barulho da denúncia, somado ao marco internacional pelo que aconteceu na França, mesmo sem provas nem base de sustentação, cheia de informações “plantadas”, ficava sepultada pela morte do Promotor. Claro, sob a forma de um aparente suicídio. Recurso que já foi utilizado em muitos casos tristemente célebres. (…)
Hoje não tenho provas, mas tampouco tenho dúvidas. Era preciso trazê-lo ao país com urgência para aproveitar o clamor internacional provocado pelos atos terroristas ocorridos na França. O próprio Nisman diz isso em seu chat, quando fala que não imaginava que o faria tão logo, aludindo a algo que viria fazer em seu retorno imprevisto. (…) O que ele não poderia imaginar é que o prazo tinha começado a se esgotar não apenas para a “denúncia do século”, mas para sua própria vida (El País, 22/01/2015).
Um dos fatos mais estranhos do caso é a reconhecida falta de consistência jurídica das evidências que Nisman pretendia apresentar na Câmara, tarefa que motivou o seu intempestivo retorno de férias na Europa. Até mesmo um jornal como o Buenos Aires Herald, insuspeito de quaisquer simpatias pelo governo, foi lacônico ao noticiar o conteúdo do dossiê de Nisman, dado a conhecer após a sua morte: “Nada de novo – Relatório de Nisman fracassa em avivar as chamas da conspiração (Buenos Aires Herald, 22/01/2015).”
Ao que parece, a “conspiração” era outra. Em várias entrevistas, o ex-juiz da Suprema Corte Raúl Eugenio Zaffaroni sustentou que as evidências apresentadas por Nisman não se sustentavam. Segundo ele, “a denúncia [contra Cristina] não tem fundamento. Inclusive, se se aceitasse que existiu um plano [para garantir a impunidade dos iranianos], não encontro o delito, porque este plano denunciado não passou ao terreno dos fatos, não se logrou encobrir ninguém”.
Para Zaffaroni, Nisman foi “vítima de uma operação”. “O que me parece claro é que venderam informações falsas a Nisman. Alguma coisa aconteceu. (…) Nisman não é a primeira vítima disso. (…) Dá a impressão de que alguém o chamou: interrompeu uma viagem. Não havia uma data que estivesse vencendo, nada disso, ele veio e imediatamente apresentou um texto de 300 páginas… é incomum, algo aconteceu. Nenhum de nós interrompe as férias para apresentar um texto em meio ao descanso”, disse ele ao jornal Página 12 (22/01/2015).
A diretora de Assuntos Legais do Ministério da Defesa, Graciana Peñafort, bateu na mesma tecla: “É no mínimo estranho o débil que era, tanto em sua fundamentação jurídica como em seus aspectos básicos, probatórios (Página 12, 23/01/2015).”
Em meio ao furacão, Cristina tomou outra decisão retumbante, ao promover a segunda reformulação no serviço de inteligência argentino em menos de dois meses, ao enviar ao Congresso, na segunda-feira 26, um projeto de lei para a criação de uma nova agência federal de inteligência. Em dezembro último, ela já havia extinguido a antiga Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE), criando uma nova Secretaria de Inteligência (SI), ao mesmo tempo em que promovia um expurgo na agência, afastando vários integrantes de uma facção que, aparentemente, mantinha estreitos vínculos com a CIA estadunidense e o Mossad israelense.
Um desses elementos, o então diretor-geral de Operações Antonio Horacio Stiusso, trabalhou estreitamente com Nisman no Caso AMIA e parece ter influenciado fortemente o rumo das investigações do promotor, como afirma o analista Adrian Salbuchi, em um artigo publicado no sítio da rede RT. Segundo ele, Stiusso
(…) promoveu sistematicamente a versão estadunidense e israelense desse evento, que levou a Argentina a acusar falsamente o Irã daquele crime hediondo. Contando com a plena proteção e apoio da CIA, do Mossad e do MI-6 [britânico], o Sr Stiusso se tornou o mentor do promotor Nisman, na medida em que este último, sistemática e ruidosamente, apontava um dedo acusador para o Irã, desde que foi encarregado da investigação, em 2004. O mito “foi o Irã” ganhou força durante o governo de George W. Bush, como parte de sua estratégia de avassalar o Oriente Médio, após o 11 de setembro e, especialmente, após a invasão e os bombardeios israelenses do Líbano, em 2006, quando o [grupo xiita] Hizbollah levou Israel a uma derrota. (…) (RT, 26/01/2015)
Como muitos estudiosos do Caso AMIA, Salbuchi atribui o atentado de maio de 1994 a uma feroz luta intestina no Establishment israelense em torno do acordo de paz com a Autoridade Palestina de Yasser Arafat. A hipótese é reforçada pelos indícios de uma explosão interna ao prédio, como apontado pelos primeiros peritos argentinos que examinaram as ruínas. Apenas depois que investigadores israelenses chegaram ao local, um deles encontrou um fragmento do bloco do motor do suposto carro-bomba ao qual a detonação passou a ser atribuída.
Sobre os desdobramentos da morte de Nisman, Salbuchi adverte:
Este ano, haverá eleições presidenciais na Argentina, e praticamente todos os candidatos – com os favoritos Daniel Scioli [Partido Justicialista], Mauricio Macri [Proposta Republicana] e Sergio Massa [Frente Renovadora], assumindo a dianteira – estão seguindo a linha politicamente correta, fato que é bastante consistente, considerando que eles visitam regularmente e se reportam à Sociedade das Américas de Rockefeller-Negroponte-William Rhodes, e prestam homenagens regulares ao Congresso Judaico Mundial, Comitê Judaico Americano, DAIA [Delegação de Associações Israelitas Argentinas], AMIA e outros lobbies israelenses locais e internacionais.
É possível e até provável que a morte de Nisman jamais venha a ser plenamente esclarecida, mas tudo indica que ela pode ter servido a múltiplos propósitos, cujos principais interessados devem ser procurados bem longe da Praça de Maio.