Confira a íntegra da fala de Antonio Neto na audiência pública do STF sobre pejotização

O presidente da CSB, Antonio Neto, participou de audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta segunda-feira (6) que debateu a pejotização, como parte da discussão em torno do Tema 1.389. Confira a íntegra da fala:

“Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes,

Saúdo esta Casa, os Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal, as autoridades e os companheiros aqui presentes.

Compareço a esta audiência em nome dos trabalhadores, em especial da tecnologia da informação, para afirmar com clareza: a pejotização, como vem sendo praticada no país, é fraude trabalhista.

Trata-se da dissimulação de vínculos de emprego sob roupagens de contratos civis ou empresariais, suprimindo direitos fundamentais assegurados pela Constituição de 1988.

LEIA: Pejotização corrói pacto social no Brasil, diz ministro da AGU em audiência no STF

A desigualdade de poder entre empregadores e trabalhadores — sobretudo do hipossuficiente — é realidade concreta. Esse desnível justificou o tratamento protetivo ao trabalho na Constituição Federal, quando o constituinte reconheceu que não há negociação em pé de igualdade e que a lei deve corrigir a assimetria.

A Carta Magna, em seu artigo 1º, inciso IV, consagra o valor social do trabalho como fundamento do Estado Democrático de Direito. No artigo 7º, estabelece um patamar civilizatório mínimo de direitos — irrenunciáveis e indisponíveis. E no artigo 170, define que a ordem econômica deve estar fundada na valorização do trabalho humano.

Já a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, no artigo 9º, é explícita ao declarar nulos de pleno direito os atos que visem fraudar a aplicação da legislação trabalhista.

Hoje, todos os trabalhadores, em graus distintos, enfrentam o risco de perder garantias conquistadas por décadas de lutas.

Portanto, caros Ministros, a decisão que esta Corte tomar poderá sepultar o artigo 7º da Constituição.

Permitir que contratos de pessoa jurídica se sobreponham à CLT equivale a negar a primazia da realidade e esvazia o sentido cidadão da Constituição.

É verdade que a Reforma Trabalhista de 2017 não ousou mexer nos direitos consagrados no artigo 7º da Constituição Federal, mas a ela coube ampliar a terceirização precarizante e flexibilizações inapropriadas, abrindo espaço para arranjos que contornam a proteção social.

A pejotização tornou-se expediente recorrente: contrata-se como “empresa” quem, na prática, é empregado, para evitar encargos e garantias.

Estudos recentes apresentados no Senado revelam que esse percentual saltou de 8,5% em 2015 para 14,1% em 2023 — ou seja, cerca de 20 milhões de pessoas ocupadas. Estima-se que isso tenha gerado impacto de R$ 89 bilhões aos cofes públicos em tributos e encargos.

Reconhecemos, contudo, que existem situações excepcionais previstas na CLT em seu artigo 444, parágrafo único. Nesses casos, pode haver espaço para a contratação como pessoa jurídica, desde que:

  • haja ausência de subordinação;
  • liberdade real de jornada e clientela múltipla;
  • e capacidade de negociação efetiva.

Mas o que se vê na prática é o uso abusivo dessa exceção: profissionais com total dependência econômica são obrigados a abrir CNPJ para manter o emprego e, outras vezes, convencidos de que são ‘empreendedores’.

Dados da Fundação Getúlio Vargas mostram que a realidade é:

  • 56,3% dos trabalhadores que tiveram seus contratos formais transformados em modelos pejotizados recebem até 2 mil reais;
  • 36,9% recebem entre 2 mil e 6 mil reais;
  • e menos de 2% estariam enquadrados na definição de hipersuficiência legal.

Pergunto: alguém crê que uma mulher grávida estará mais protegida como PJ, mesmo após os inúmeros casos de trabalhadoras pejotizadas dispensadas arbitrariamente denunciados nas redes sociais?

Ou que um trabalhador estará amparado por um contrato civil que não prevê normas regulamentadoras, fiscalização do trabalho e representação sindical?

Na minha categoria, milhares de profissionais de TI executam funções idênticas às de empregados celetistas, com longas jornadas e sem 13º, férias, FGTS ou seguro-desemprego — apesar dos incentivos fiscais na folha de pagamento concedidos ao longo dos últimos anos.

Há quem diga que muitos preferem ser ‘PJ’ para ter autonomia. Mas isso não é verdade para a maioria. A maior parte dos pejotizados são empresas apenas na forma: trabalham sob subordinação, habitualidade, pessoalidade e onerosidade.

Quando se aceita a pejotização irrestrita, assina-se um cheque em branco para rasgar a CLT e para destruir direitos conquistados com greves, sangue, suor e lágrimas da classe trabalhadora.

Reafirmo aqui um princípio fundador do direito internacional do trabalho: o trabalho não é uma mercadoria — formulação consagrada na Declaração de Filadélfia.

A OIT adverte, de forma consistente, sobre os danos estruturais da informalidade e a necessidade de uma transição à formalidade, conforme a Recomendação nº 204, de 2015.

Neste ano, o debate foi retomado após 10 anos, com a seguinte observação no relatório: a informalidade mina direitos, produtividade, arrecadação e proteção social.

O desafio contemporâneo não é desmontar garantias, tampouco inviabilizar a atividade econômica, mas atualizar o arcabouço para assegurar trabalho decente em todas as relações de trabalho.

Senhores Ministros, é verdade que há elevada judicialização nas relações laborais no Brasil. Mas ela decorre, em grande medida, do descumprimento reiterado de obrigações por parte de empregadores e tomadores de serviço.

Criminalizar quem busca o que lhe é devido não é solução.

É preciso fortalecer a negociação coletiva, instrumento constitucional de equilíbrio entre capital e trabalho e caminho inequívoco para o entendimento, a mediação e a solução de conflitos entre trabalhadores e empregadores.

Senhores Ministros, o Brasil profundo e real espera decisões com alma pública e compromisso social.

É preciso rejeitar a lógica do lucro a qualquer custo e da transferência de riscos ao elo mais fraco.

É preciso reconhecer que decisões recentes desta importante Corte foram de reiteradas opções pelo capital na disputa entre capital e trabalho — sentimento capturado por forças antidemocráticas para lançar ataques e desacreditar o STF, suas funções constitucionais e as instituições brasileiras.

Este momento é oportunidade de corrigir rumos e reafirmar a confiança social nesta Corte como Guardiã da Constituição e dos valores civilizatórios.

Peço, por fim, que o STF contribua para que possamos construir — trabalhadores, empresários e Estado — um caminho que:

  • reafirme a primazia da realidade: sempre que presentes os elementos do artigo 3º da CLT, deve ser reconhecido o vínculo de emprego;
  • admita exceções apenas para hipersuficientes com autonomia real;
  • valorize a negociação coletiva como instrumento legítimo de regulação de novas formas de trabalho;
  • e encoraje políticas públicas para regular adequadamente as novas relações laborais, sem erosão de direitos.

Permitam-me concluir com Lacordaire, que disse: ‘Entre o fraco e o forte, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o empregado, é a lei que liberta e a liberdade que escraviza.

É este o sentido civilizatório que rogo a Vossas Excelências preservar.”

Foto: Luiz Silveira/STF

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