Falta de mão de obra e inflação também foram problemas na época, e resultaram em revoltas e violência
No rastro de uma pandemia devastadora, milhões de pessoas estão mortas e muitas mais tiveram suas vidas reviradas. Muitos dos sobreviventes, desgastados por uma sensação de inutilidade em seu trabalho e pela diferença intransponível entre os ricos e todos os demais, se recusam a retornar aos antigos empregos ou pedem demissão em massa. Cansados de excesso de trabalho e baixa remuneração, eles sentem que merecem uma vida melhor.
Essa poderia ser uma história sobre os dias atuais, mas é também o padrão que surgiu em toda a Europa depois da mais mortal pandemia registrada na história, a peste bubônica.
As lutas por salários e pelo valor do trabalho que definiram os anos após a peste foram, de certa forma, tão intensas quanto a própria pandemia. Afinal, a Europa explodiu em violência. Vendo onde estamos agora, vale a pena prestar atenção na série de acontecimentos que levou, passo a passo, da pandemia ao pânico e à revolta sangrenta.
A peste varreu como fogo o continente eurasiano de 1347 a 1351. O historiador árabe Ibn Khaldun lembrou horrorizado: “A civilização, tanto no Oriente como no Ocidente, foi visitada por uma praga destrutiva que devastou nações e fez populações desaparecerem. Ela engoliu muitas das coisas boas da civilização e as eliminou”.
A Europa, fortemente atingida, perdeu algo entre um terço e metade de sua população (embora os historiadores ainda discutam o número). “Muitas terras e cidades ficaram desoladas”, escreveu o historiador italiano Giovanni Villani em 1348. “E essa praga durou até ____.” Ele nunca preencheu a data final, pois morreu de peste antes que pudesse.
Quando pensamos na peste negra, tendemos a pensar nas cenas horríveis relatadas nas cidades: os cadáveres amontoados, as valas onde os corpos foram jogados sem cerimônias. O que os contemporâneos também acharam estranho, no entanto, foi o que eles viram no campo —não cenas de destruição, mas imagens de abundância e fartura. Campos de grãos maduros inertes sob o sol. Vinhas pesadas de uvas. Essas visões eram inquietantes porque sugeriam que não havia mais ninguém vivo para fazer as colheitas.
“Muitas propriedades finas e nobres / Estão ociosas sem pessoas para trabalhar nelas”, escreveu o poeta e compositor Guillaume de Machaut, que resistiu à peste trancado em sua torre. Seu poema continua:
“O gado jaz pelos campos completamente abandonado / Pastando no milho e entre as uvas / Em qualquer lugar que quisesse / E não tinham dono, nenhum vaqueiro / Nenhum homem para conduzi-los.”
Após o colapso demográfico, houve uma grave escassez de mão de obra. E assim, após o choque inicial, como preveriam os economistas modernos, o preço da mão de obra disparou. Machaut escreveu:
“Nenhum homem teve seus campos arados / Seus grãos semeados, ou suas vinhas cuidadas / Mesmo que pagasse o triplo dos salários / Não, certamente, nem mesmo por 20 vezes a taxa / Porque tantos haviam morrido.”
Trabalhadores de todo tipo —rurais, artesãos nas cidades, até mesmo párocos pobres que tiveram que atender os moribundos— olharam para suas vidas depois que a pandemia diminuiu e recalcularam seu valor. E viram um sistema impossível, que era inclinado contra eles.
Na Inglaterra, por exemplo, cerca da metade da população estava legalmente amarrada à terra em servidão, forçada a trabalhar para o proprietário local. Mas, de repente, esses trabalhadores pareciam ter algum poder de barganha. Não eram mais obrigados a tolerar exigências irracionais. Seus empregadores não podiam mais tomá-los como algo garantido.
Por um lado, eles precisavam de salários mais altos para suportar a inflação descontrolada que se seguiu à peste: na Inglaterra, apesar da queda do preço de algumas matérias-primas básicas como grãos, os preços gerais dos bens de consumo aumentaram cerca de 27% de 1348 a 1350. Os trabalhadores reclamaram que não podiam pagar pelas necessidades básicas —e se não recebessem o que pediam largavam o arado, fugiam das aldeias de seus senhorios e iam buscar um acordo melhor.
Não sofremos um golpe demográfico tão brutal durante a Covid, mas ainda assim os trabalhadores americanos recalcularam o significado do trabalho e seu valor —e números recordes de trabalhadores deixaram seus empregos na Grande Demissão dos últimos meses. Cerca de 3% da força de trabalho total dos Estados Unidos se demitiu somente em novembro, informou o Departamento do Trabalho. De acordo com uma pesquisa de setembro, 46% dos empregados em tempo integral estavam considerando ou procurando ativamente um novo emprego.
Empregos com baixo salário tornaram-se especialmente difíceis de preencher, enquanto as redes sociais estão cheias de discussões irritadas sobre a necessidade de ter dois ou até três empregos para pagar um aluguel médio numa cidade média.
Nos últimos meses, houve várias greves de destaque, com trabalhadores exigindo compensação justa e notáveis sucessos sindicais nas empresas Kellogg’s e Deere. Nesse sentido, estamos vendo ecos da situação após a peste negra, à medida que os trabalhadores se recusam a retornar às condições pré-pandêmicas e reavaliam suas necessidades e seu valor. Muita coisa mudou nos últimos dois anos. O mundo está diferente.
À medida que avançamos para uma nova era pós-pandêmica, as tensões no mercado de trabalho do século 14 podem nos ensinar algo sobre a turbulência que está por vir.
Nos anos que se seguiram à peste, em toda a Europa, senhores de terras e nobres assistiram, primeiro com indignação, depois com fúria, enquanto as pessoas abandonavam seus empregos e partiam em busca de uma vida melhor. O que se seguiu foi uma onda histérica de leis que tentavam devolver a economia para onde estava antes da peste. Estatutos e decretos congelaram os salários nos níveis anteriores à praga; tornaram ilegal abandonar a terra de um senhor, ilegal fugir; com efeito, tornaram o próprio desemprego ilegal.
Publicado em Folha de São Paulo