De acordo com Carlos Dora, uso de carro aumenta incidência de doenças como obesidade, câncer e diabetes
Mais do que reduzir a poluição e melhorar a qualidade do ar, uma rede de transporte público eficiente ajuda a combater problemas de saúde pública como acidentes de trânsito, estresse, sedentarismo e obesidade.
É o que mostra uma compilação de mais de 300 estudos mundiais realizados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre a relação entre mobilidade urbana, saúde e qualidade de vida.
Os dados foram apresentados pelo epidemiologista Carlos Dora, 58, coordenador do Departamento de Saúde Pública e Meio Ambiente da OMS, que esteve no Brasil para uma série de palestras.
Para ele, um bom sistema de transporte pode prevenir doenças não transmissíveis, como as cardiovasculares e as pulmonares, e os acidentes de tráfego, que hoje estão entre as principais causas de morte no Brasil.
Exemplo: quem usa ônibus ou metrô anda em média entre 8 e 25 minutos a mais por dia, o que é quase o tempo mínimo recomendado pela OMS para gerar grandes melhorias de saúde.
Estudos mostram que 30 minutos de atividade física intensa, como andar de bicicleta ou caminhar vigorosamente, pelo menos três vezes por semana, reduz o risco cardiovascular em 30%, além de prevenir muitos cânceres.
A falta de atividade física chega a matar mais de 3 milhões de pessoas por ano por problemas como diabetes e hipertensão arterial.
A OMS calcula que 1,2 milhão de pessoas morram em acidentes de trânsito. Nas áreas urbanas, os carros são responsáveis por até 90% da poluição do ar ambiente e por até 1,2 milhões de mortes.
“Se o cidadão tiver à disposição ônibus e metrôs eficientes e com custo acessível, aos quais possa ter acesso em calçadas e pistas cicláveis seguras, para ele vai ser mais vantajoso deixar o carro em casa.” Acompanhe a seguir trechos da entrevista à Folha.
Folha – Como o transporte pode prevenir doenças?
Carlos Dora – O número de doença e de mortes pode ser reduzido substancialmente numa cidade que adota um sistema de transportes baseado em corredores de ônibus de alta eficiência (rápidos, limpos, com boa informação para usuários), associados a espaços protegidos [contra acidentes] para pedestres e ciclistas. Isso faz com que as pessoas optem por deixar o carro em casa. Quanto mais espaço dedicado ao transporte público eficiente e rápido, espaço para ciclistas e pedestres, menos carros, menos acidentes, menos poluição do ar, mais atividade física durante a vida diária e consequentemente mais saúde.
Quais doenças estão relacionadas hoje a um sistema de transporte ruim?
Doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes, doenças respiratórias e cânceres, além de mortes e lesões causadas pelos acidentes. A poluição atmosférica, por exemplo, causa mais as doenças respiratórias e cardiovasculares. O ruído constante das ruas movimentadas causa estresse. O uso do carro individual gera falta de atividade física e, como consequência, doenças cardiovasculares e obesidade. Muito da qualidade de vida de uma grande metrópole depende de como o transporte público é organizado.
Para a pessoa pegar um ônibus, precisa andar a pé ou de bicicleta até a estação.
Se a evidência de que o transporte público de qualidade possibilita que as pessoas se desloquem a pé, esse modelo deve ser levado em conta. A prevenção não está mais só nas mãos do sistema de saúde, mas nas mãos de boas políticas governamentais.
Há evidências claras relacionadas à mortalidade?
Sim, o transporte tem um custo muito alto em mortes. Em Copenhague, foi feito um estudo que acompanhou, durante 14 anos, pessoas que andavam de ônibus, a pé, de carro e de bicicleta. Quem usava bicicleta regularmente para ir ao trabalho teve redução de 30% na mortalidade total, isso depois de ajustar por outros fatores como o tabaco, a hipertensão, a atividade física para o lazer etc. Há poucos remédios ou intervenções médicas que reduzem a mortalidade total da população em 30%. Xangai fez um estudo semelhante com resultados quase iguais. Para ajudar a melhorar esse cenário, criamos na OMS um software que ajuda as pessoas a comparar o quanto se ganha em saúde (redução de mortes e invalidez) e em termos econômicos ao investir mais em infraestrutura para bicicletas e pedestres e no transporte público.
Ônibus superlotados, inseguros e atrasados, que são uma realidade de São Paulo, também estressam as pessoas… Certamente essas situações não fazem bem à saúde. O que sabemos é que, se o cidadão tiver à disposição ônibus e metrô eficientes e com custo acessível, é mais vantajoso deixar o carro em casa. E isso tem impacto direto na saúde pública. A prevenção de muitas doenças do século 21 [cardiovasculares, respiratórias, diabetes, obesidade etc.] pode ser lograda por medidas de transporte e também de planejamento do espaço urbano. Os governos precisam criar alternativas de transporte público de qualidade e eficiente, assim como espaço seguro para pedestre e para ciclistas. É preciso ter a noção de que ao privilegiar o carro se está desprivilegiando as demais alternativas e que isso tem um custo social.
O que fazer numa cidade já caótica como São Paulo?
O metrô é uma solução cara e de longo prazo, mas deve ser perseguida. Mas é preciso também reorganizar o espaço da superfície. O BRT [ônibus de trânsito rápido], adotado em Curitiba (PR), tem se mostrado como uma boa alternativa, capaz de contribuir, em conjunto com outras medidas, para uma melhoria na saúde pública. E o seu custo é menor quando comparado a outros meios de transporte. Parte de Bogotá, por exemplo, se transformou depois da adoção do sistema de BRT. Trabalhadores chegam andando até a parada do ônibus. Há conexão com ciclovias e espaços para pedestres. O Estado tem papel central nisso. Precisa esclarecer quais os custos e benefícios das alternativas e informar a sociedade sobre isso.
O transporte público foi o estopim dos protestos que atingiram o país. Como o sr. avalia as manifestações? É fundamental não reduzir o debate apenas à questão das tarifas. O momento é também de discutir qualidade e a eficiência do sistema de transporte.
Por que as políticas de transporte estão tão dissociadas das de saúde pública?
Pode ser uma questão cultural. As pessoas não param para pensar nessas conexões. Às vezes precisa de alguém, um visionário com coragem para fazer isso. Na Europa, até anos atrás, ninguém levava a sério o uso da bicicleta como meio transporte. Agora é chique. Paris, Barcelona, Amsterdã. São várias as cidades bicicletáveis.
Fonte: Folha de S.Paulo
CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO