País não cria vagas com ganhos acima de 2 salários mínimos há 14 anos

Ao longo do tempo, o mercado de trabalho passou a trocar empregos de maior qualidade por postos de menor rendimento

O Brasil não cria vagas com rendimento acima de dois salários mínimos há 14 anos. Levantamento feito pelo GLOBO com base nos microdados do Caged, o registro de vagas com carteira assinada do governo, mostra que a partir de 2006 não houve saldo positivo nas contratações para qualquer faixa de renda com remuneração superior a duas vezes o piso nacional.

Incluindo os dados de 2019, divulgados na última sexta-feira, o país extinguiu 6,7 milhões de empregos com renda mais alta desde 2006.

Ao longo do tempo, o mercado de trabalho passou a trocar vagas de maior qualidade por postos de menor rendimento. Foram criados 19,2 milhões de postos de trabalho desde 2006, porém, todos com renda de até 2 salários mínimos.

Considerando o saldo entre vagas fechadas e geradas, o mercado absorveu 12,5 milhões de trabalhadores. O resultado é uma economia que vem se tornando cada vez mais de baixos salários, indiferente até mesmo aos momentos de grande dinamismo, entre 2010 e 2013.

Especialistas avaliam que o quadro é estrutural. Parte do fenômeno pode ser explicado pelo modelo de crescimento econômico das últimas décadas, baseado no consumo das famílias e com baixas taxas de investimento.

Outro fator importante é a política de valorização do salário mínimo, vigente até 2018. Entre 2005 e 2019, o piso nacional subiu 74% acima da inflação. O ganho real é considerado positivo e necessário pelos economistas. O problema é que não foi acompanhado do aumento da produtividade da economia. No mesmo período, a produtividade da hora trabalhada avançou apenas 18%, segundo dados do Ibre/FGV.

— Pela régua do salário mínimo, vamos encontrar cada vez mais pessoas ganhando próximo a ele, pois o piso cresceu mais rápido do que as outras remunerações. E nos últimos anos, o que vimos foram empregos criados com uma remuneração cada vez menor ou estagnada — ressalta Hélio Zylberstajn, professor da FEA/USP e coordenador do Salariômetro da Fipe.

A lenta recuperação do mercado de trabalho, com a criação de 1,1 milhão de postos formais de trabalho no acumulado de 2018 e 2019, após a perda de mais de 3 milhões desde a recessão iniciada em 2015, ajuda a entender as dificuldades.

Graduados sem lugar

O trabalhador volta a assinar a carteira hoje ganhando, em média, 10% menos que antes da demissão. Para o empregador, é uma maneira de ajustar o descolamento entre o crescimento dos salários e o da produtividade, tendo a seu favor uma oferta muito maior de trabalhadores do que vagas disponíveis.

— A produtividade cresceu muito menos que o valor do mínimo. Isso significa que o piso ficou muito alto para a economia brasileira. O empregador não vai contratar o trabalhador por mais, a não ser que ele seja muito qualificado — explica José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos.

Essa dinâmica acabou expulsando muita gente nos dois extremos do mercado formal, no qual estão os empregos com algum tipo de proteção social. Trabalhadores sem qualificação migraram para a informalidade, enquanto profissionais de maior escolaridade enfrentam dificuldades para encontrar oportunidades com remuneração compatível com a sua formação.

Só entre 2012 e 2019, segundo dados da pesquisa Pnad Contínua, do IBGE, a proporção de profissionais com ensino superior no país saltou de 14% para 19% da força total de trabalhadores. São quase 7 milhões de graduados que entraram no mercado nos últimos oito anos, justamente em um momento em que as melhores vagas minguaram ano a ano.

No ano passado, houve sinais de reação do mercado de trabalho com a criação de 644 mil vagas, o melhor desempenho em seis anos. O problema é que nos principais setores da economia, como comércio, indústria e serviços, não houve saldo positivo em vagas com rendimento acima de 1,5 salário mínimo. Houve criação, ainda que marginal, de postos com renda entre 1,5 e dois pisos nacionais na construção civil, que iniciou processo de recuperação após a crise.

Frustração no mercado

Graduada em História e com duas especializações no currículo, Danielle Senna, de 32 anos, teve dificuldades para ganhar, como professora, um salário que consideraria satisfatório para sua formação. A crise na área de educação fez com que ela trocasse a docência pela área administrativa de um hotel, mas ainda assim não ganha mais de R$ 2 mil.

— Com as responsabilidades da minha função, acho que poderia ganhar mais. Porém, o mercado não permite escolher muito. Isso me limita. Foi bem decepcionante no início, após a faculdade — lamenta.

Um dos resultados dessa insatisfação salarial entre os mais qualificados é o avanço da informalidade entre eles ou outras modalidades de trabalho, como a prestação de serviços como autônomo ou como microempreendedor individual (MEI). Muitas empresas preferem contratar serviços assim em vez de empregar um trabalhador fixo. Dessa forma, esses profissionais conseguem remuneração mais elevada do que teriam com carteira assinada.

Para José Pastore, sociólogo especialista em relações do trabalho e emprego, a melhora do mercado brasileiro só acontecerá com a retomada do protagonismo do setor industrial e da construção, responsáveis por empregar profissionais mais qualificados e com melhores salários. Entre 2005 e 2018, a participação da indústria perdeu cerca de 8 pontos percentuais em tudo o que é produzido no país, o PIB.

— Precisamos de crescimento sustentável de seis a sete anos, com taxa de 4% ao ano, para começar a ter crescimento de serviços mais sofisticados — afirma Pastore.

Na avaliação de Zylberstajn, é necessário que o país invista na melhoria da qualificação profissional e no aumento da produtividade para que o avanço dos salários possa se refletir em aumento de poder de compra e da poupança.

— É preciso produzir mais para poder consumir mais. O crescimento do valor adicionado nas empresas é o que vai levar ao aumento dos salários, que vai impactar o consumo e o poder de compra — conclui.

No Estado do Rio, só vagas de até R$ 1.497

A recuperação do mercado de trabalho formal no Rio de Janeiro em 2019, que registrou o melhor saldo no balanço entre admissões e demissões desde 2014, com 16.829 novas vagas, foi puxada pela geração de postos de trabalho de baixa remuneração.

Dados do Caged divulgados na última sexta-feira apontam que o estado só obteve saldo positivo para aqueles que recebem até 1,5 salário mínimo, o equivalente a R$ 1.497, considerando o piso nacional de 2019. Para os níveis salariais mais elevados, o balanço ficou no vermelho, com a dispensa de trabalhadores maior que o total de contratações.

Foram gerados no ano passado cerca de 55 mil postos de trabalho de até 1,5 salário mínimo. Computados com a eliminação de 46 mil vagas de salário superior a esse patamar, culminaram no saldo de empregos no Rio em 2019 (que considera também vencimentos não declarados).

O Rio segue a a tendência dos demais estados brasileiros, onde a recuperação econômica ainda não resultou na melhoria dos salários ofertados.

Na capital fluminense, que terminou como a pior cidade do país na geração de postos de trabalho em números absolutos, o cenário se repete. O saldo negativo de 6.640 só não foi pior devido à geração adicional de 23 mil vagas com remuneração até 1,5 salário mínimo. Acima desse patamar, houve a eliminação de mais de 30 mil postos com salários acima, na indústria, serviços e construção civil.

Entre as capitais, somente Florianópolis (SC) e Vitória (ES) conseguiram obter geração de vagas acima de 1,5 salário. Nessas cidades, novas vagas foram criadas para quem ganha até R$ 1.998 — o equivalente a dois mínimos.

Fonte: O Globo
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