Por Marcus Meneghetti
O presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Fessergs), Sérgio Arnoud, avalia que o pacote de projetos que modificam as carreiras e a Previdência dos servidores públicos vai reduzir os salários e as aposentadorias do funcionalismo. Esse é um dos aspectos que, conforme Arnoud, deve gerar uma “avalanche de ações judiciais”, caso seja aprovado.
“Pode gerar um passivo ao Estado maior que o deixado pela Lei Britto (reajuste concedido aos servidores públicos em 1995 pelo governo Antonio Britto, MDB, que não foi honrado pelo Estado)”, alerta Arnoud. Mas essa é apenas uma das críticas dos servidores ao conjunto de medidas proposto pelo governador Eduardo Leite (PSDB). Nos protestos, as medidas são chamadas de “pacote da morte”.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o presidente da Fessergs cita os pontos que considera mais preocupantes entre as modificações propostas para os servidores ativos e inativos. Entre eles, menciona a transformação das gratificações (aumentos concedidos como percentuais dos salários) em parcelas autônomas (valor fixo nominal), o fim das incorporações dessas gratificações à aposentadoria e a mudança nas regras das promoções.
Jornal do Comércio – Quais os pontos do pacote que considera preocupantes?
Sérgio Arnoud – Algumas questões são muito sérias. Alguns servidores que recebem baixa remuneração, mais de 80% da folha, serão penalizados. Principalmente os aposentados e pensionistas, que não recolhiam Previdência até o teto do regime geral do INSS
(R$ 6.032,73). Se a reforma for aprovada, passará a ser descontado um percentual para quem ganha a partir de R$ 1 mil. Isso afeta mais de 90% dos aposentados e pensionistas imediatamente. No final, significa diminuição dos salários.
JC – Existe uma discussão jurídica sobre a constitucionalidade dessa medida…
Arnoud – De fato, é uma questão polêmica por dois motivos. Primeiro, a aposentadoria é um ato jurídico perfeito, já consolidado, que não pode ser mexido, nem para mais, nem para menos. Tanto que, em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a “desaposentação” (que abrange os casos em que as pessoas pediam a substituição de uma aposentadoria por outra com valor maior, levando em conta a contribuição feita antes e depois da primeira aposentadoria). Então, se não pode mexer para mais, também não pode mexer para menos.
JC – E a segunda razão no debate sobre a constitucionalidade?
Arnoud – A segunda questão diz respeito à irredutibilidade do salário. Os salários não podem ser diminuídos nominalmente, conforme está no artigo 7º da Constituição Federal.
JC – As mudanças propostas pelo governo causariam diminuição do valor da aposentadoria?
Arnoud – Sim. Isso acontece por três motivos, pelo menos. Começa pelo fim das gratificações temporais para os servidores ativos, cujos triênios e quinquênios passarão a compor uma parcela autônoma fora do salário básico. Isso, combinado com a não incorporação das Funções Gratificadas à aposentadoria, significa que os servidores ativos se aposentarão com muito menos do que os que se aposentam pelas regras atuais.
JC – Qual é o terceiro fator que pode diminuir o valor das aposentadorias?
Arnoud – A partir da reforma da Previdência, o cálculo (do valor da aposentadoria) será feito não mais pela média dos últimos 80 salários, mas sim pela média de toda a carreira, desde o dia em que o trabalhador ingressou no serviço público até o dia em que se aposentou. Só isso já vai representar uma diminuição de até 30% das aposentadorias. Além disso, há, ainda, o aumento da alíquota de contribuição, que vai até 22% em alguns casos.
JC – Considerando todas essas mudanças que implicam redução da aposentadoria, quanto diminuiria?
Arnoud – Todos esses fatores vão fazer com que os atuais servidores se aposentem com até 50% dos seus salários da ativa. Isso é altamente preocupante.
JC – Prevê ações judiciais contestando o aumento das alíquotas previdenciárias e outras medidas que podem culminar na diminuição da remuneração?
Arnoud – Não tenho dúvida de que haverá uma avalanche de ações judiciais. Na Fessergs, já estamos sendo procurados pelos trabalhadores. É uma questão que, conforme alertamos o governo, deve se arrastar ao longo do tempo. Pode gerar um passivo ao Estado maior que o deixado pela Lei Britto. No final das contas, o governo está fazendo algo que vai viabilizar o oxigênio para este momento, mas vai inviabilizar o futuro.
JC – Em 2018, os servidores manifestaram preocupação quando o Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul (Ipergs) foi desmembrado em duas entidades: o IPE Saúde, que administra o plano de saúde; e o IPE Prev, que administra a aposentadoria. Como avalia a atuação da autarquia destinada a cuidar da Previdência dos gaúchos?
Arnoud – O Instituto de Previdência está sendo esvaziado e praticamente condenado à privatização. A ideia do governo é, inclusive, retirar a paridade na gestão do instituto. Como a contribuição para a Previdência estadual é paritária – hoje, o servidor e o governo contribuem com o mesmo valor -, a gestão é compartilhada. Os servidores indicam um gestor, enquanto o governo indica dois. O conselho é, igualmente, paritário. Agora, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Executivo busca retirar a representação classista da gestão (do IPE Prev), fazendo com que os servidores se tornem meros contribuintes, enquanto o governo gere como bem entender o instituto.
JC – Quanto às mudanças que o pacote propõe aos ativos, o que chama a atenção?
Arnoud – Em primeiro lugar, se o pacote for aprovado, os ativos terão um problema na sua aposentadoria: se aposentarão recebendo metade do salário na ativa. Em segundo lugar, não terão reposição durante um longo período de tempo, porque as vantagens temporais que os ativos têm hoje serão transformadas em uma parcela autônoma que não será corrigida. Se houver reajuste, será abatido dessa parcela autônoma. Ou seja, retira da parcela autônoma, que faz parte da remuneração dos servidores, para pagar o aumento no básico. No final das contas, o servidor vai receber a mesma coisa, além de estar pagando o seu próprio reajuste.
JC – Está dizendo que, conforme aumenta o salário básico, diminuem as gratificações…
Arnoud – Exatamente. Por exemplo, um trabalhador ganha R$ 2 mil, mais R$ 1,5 mil em gratificações por tempo de serviço. É esse segundo valor que vai se transformar em uma parcela autônoma. Se esse trabalhador receber um reajuste de 10%, vai aumentar R$ 200,00, porque o percentual incide sobre o básico. Só que, pela proposta do governo, esses R$ 200,00 serão tirados da parcela autônoma. Ou seja, o salário básico aumenta para R$ 2,2 mil, e a parcela autônoma diminui para R$ 1,3 mil. Isso acontecerá até a parcela autônoma chegar a zero.
JC – Hoje, os salários básicos que são menores que o salário-mínimo recebem um complemento para atingirem o piso. Como ficariam esses casos?
Arnoud – Hoje, existem casos de salários básicos do quadro geral da saúde, por exemplo, que são inferiores ao salário-mínimo. Eles recebem uma parcela autônoma para completar seu salário até chegar ao valor do mínimo. Quanto às vantagens temporais, somariam acima do valor do salário-mínimo. Por exemplo, hoje, um servidor que tem o salário básico de R$ 600,00, recebe um completivo de aproximadamente R$ 400,00 para atingir o salário-mínimo. Além disso, digamos que receba mais R$ 200,00 em vantagens temporais. Ou seja, o salário final dele é R$ 1,2 mil. Pela proposta do governo, o trabalhador só terá direito a um completivo, se a soma do básico e das gratificações for menor que o salário-mínimo. Para ficar claro, vamos pegar o mesmo caso daquele servidor que recebe R$ 600,00. Como o básico e as vantagens dele somam R$ 800,00, ele receberia um completivo de R$ 200,00 para chegar ao salário-mínimo. O salário dele seria de cerca de R$ 1 mil (valor aproximado do mínimo), menor que os R$ 1,2 mil da regra atual.
JC – Os servidores reclamam também da mudança nas promoções…
Arnoud – O serviço público é regido por alguns princípios basilares do Direito Administrativo. Um desses princípios é o da impessoalidade. As promoções, pela proposta do governo, vão passar por uma avaliação política, sem critérios básicos definidos. Serão concedidas de acordo com a vontade do chefe. Abre a possibilidade de o servidor só receber promoção se for do partido do governo. Hoje, sou avaliado por critérios objetivos previstos na legislação, como a assiduidade, eficiência etc. Em outras palavras, acaba com o princípio da impessoalidade.
JC – O governo argumenta que as reformas precisam ser feitas porque o Estado gastaria mais de 80% com pessoal, apesar de o Tribunal de Contas do Estado (TCE) não corroborar esse número. Na sua avaliação, é um dado manipulado?
Arnoud – Esse número tem vários problemas. Primeiro, o número não corresponde aos próprios dados disponibilizados no site da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz). Há uma diferença de mais de 15% entre os dados do portal da Sefaz e o número apresentado pelo governo. A própria Sefaz e o TCE questionam o número apresentado pelo Executivo para justificar a reforma. A culpa (da situação fiscal do Estado) não é do serviço público, como diz o governador. Afinal, o número de servidores é infinitamente menor do que há 10 anos. Hoje, existe menos da metade de servidores do que havia, porque as pessoas se aposentam, e o Estado não repõe, alegando falta de recursos. Atualmente, o gasto com servidores é mínimo, menos da metade do que era 10 anos atrás. Em segundo lugar, o governo desconta o Imposto de Renda dos servidores como sendo despesa, mas, na verdade, é receita, porque o que é descontado do servidor fica no Estado, não é repassado ao Ministério da Economia.
JC – Outro argumento do governo é que, para aumentar a competitividade no Estado, é necessário diminuir o gasto da máquina pública, porque isso está drenando a capacidade de investimento…
Arnoud – Não é verdade que o Estado não tem competitividade. O governo esconde que o Rio Grande do Sul está em segundo lugar no ranking da melhor máquina administrativa do País (segundo o Ranking da Competitividade dos Estados, produzido pela consultoria B3 AS). Só perde para o Distrito Federal, que recebe gordos investimentos do governo federal. Por exemplo, o policiamento em Brasília é pago pela União, apesar da segurança ser de competência dos estados. Apesar da campanha contra os servidores públicos, do parcelamento dos salários por cinco anos, o serviço público gaúcho é o segundo melhor do País. No ranking geral, que leva em conta todos os itens analisados, estamos na sétima colocação entre os 24 estados. Portanto, para sustentar sua argumentação, o governo usa dados a seu bel-prazer, sem que eles correspondam à realidade.
JC – Qual é a estratégia do movimento dos servidores na Assembleia Legislativa?
Arnoud – Temos um estudo bastante detalhado sobre os prejuízos do pacote. Queremos apresentar esse estudo aos deputados, assim que eles voltarem à Assembleia, possivelmente alguns dias antes da sessão extraordinária que o governador pretende convocar (para votar os projetos do pacote). Queremos mostrar aos parlamentares os problemas dos projetos, até para que eles tenham subsídios para suprimir algumas aberrações grosseiras, que vão contra o serviço público e a sociedade em geral.
JC – A ideia é tentar modificar os projetos no plenário, através de emendas?
Arnoud – Sim. Até porque o diálogo que o governador faz é um diálogo de surdo: quando ele nos chamou para mostrar as propostas, por exemplo, fizemos uma série de sugestões que o governo fingiu que não ouviu. Simplesmente as ignorou.
JC – Várias categorias, além do magistério, entraram em greve. Cogita-se uma greve geral?
Arnoud – Em janeiro e fevereiro, quando são tiradas todas as férias possíveis, não é o momento mais propício para uma greve geral. Mas, como os prejuízos aos servidores são enormes, a gente cogita, sim, uma greve geral.
Perfil
Nascido em 3 de outubro de 1949, em Alegrete, Sérgio Arnoud mudou-se para Porto Alegre antes da maioridade. Estudou no Colégio Júlio de Castilhos. Na década de 1970, trabalhou como fotógrafo profissional em jornais como Zero Hora, Folha da Manhã, Folha da Tarde e Correio do Povo. Ingressou no serviço público em 1978, como jornalista da assessoria de imprensa da presidência da Assembleia Legislativa, na época ocupada pelo deputado estadual Nivaldo Soares (MDB). No início da década de 1980, fundou a UNSP/Sindicato (União Nacional dos Servidores Públicos), em conjunto com colegas do funcionalismo. A partir da UNSP, surgiu a ideia de criar uma federação para congregar as entidades que representam os servidores gaúchos. Dessa forma, em 1990, foi um dos criadores da Federação Sindical dos Servidores Públicos no Estado do Rio Grande do Sul (Fessergs), entidade que preside desde 1995. Também é formado em Ciências Jurídicas pela Universidade Ritter dos Reis. É diretor de Relações Internacionais da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil, vice-presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros e secretário-geral adjunto da Confederação Latinoamericana e do Caribe de Trabalhadores Estatais.
Fonte: Jornal do Comércio