Profissionais da saúde abrem mão da convivência para ajudar pacientes e evitar contaminação
“Maternidade é uma lição de humildade eterna: tudo que você achava que sabia vai descobrindo que não é bem assim”, afirma Gladys Prado, 50, infectologista do hospital Sírio-Libanês.
Com um filho de nove anos, ela é uma das mães que atuam na linha de frente do combate ao coronavírus e tem atendido outras mães com suspeita e confirmação da doença. “A gente, tecnicamente, não sabe exatamente o que fazer, e essa sensação é muito parecida com a maternidade. A gente fica perdido, nessa doença tem muito disso.”
A preocupação comum entre as que estão trabalhando e as que estão infectadas é não passar o vírus para os filhos, contam as profissionais ouvidas pela Folha.
“Quase todas levam o celular e falam com os filhos diariamente, mas não aparece vontade de vê-los, porque existe um medo muito maior de infectá-los”, conta Prado.
No hospital de campanha do Pacaembu, em São Paulo, a enfermeira Gladys Cristina Borges, 38, diz que fez ligações do próprio celular quando suas pacientes estavam mais angustiadas e querendo falar com os filhos.
Uma das internadas com complicações respiratórias pelas quais Borges ficou responsável e que mais a marcou nesse período de pandemia era uma mãe jovem.
A enfermeira conta que, quando a dificuldade de respirar da internada aumentou, a equipe tentou colocar máscara, fazer movimentos de fisioterapia, mas, no fim, teve que intubá-la.
Quando os profissionais explicaram o procedimento, ela pediu que esperassem para fazer um telefonema ao marido e ao seu filho de poucos meses.
“Eu me coloco no sentido de filha, muito angustiada sem notícias, e no lugar de mãe, querendo falar que está tudo bem. Acho que a maioria só quer dizer que elas estão bem”, afirma a enfermeira.
Mesmo as que contraíram coronavírus dos filhos em casa manifestam medo de que eles peguem a doença de novo ao ir ao hospital, conta Annelice Silva Oliveira, 38, enfermeira na área de ginecologia do Hospital Regional de Ceilândia, no Distrito Federal.
“Como eu trabalho na área obstétrica, também recebo muitas gestantes e a preocupação delas é com as consequências para o bebê”, diz.
Gelma Helena de Carvalho, 47, enfermeira da maternidade da Fundação Santa Casa de Misericórdia e do Hospital Regional em Belém (PA), conta que a amamentação é o que gera mais angústia nas pacientes com suspeita ou confirmação de Covid-19. Com cuidados de higiene e máscara, elas podem amamentar, explica.
A infectologista Mirian Dal Ben, 40, que trabalha no hospital Sírio-Libanês, acompanhou uma mulher de 92 anos que morreu com coronavírus. Durante o período na UTI, ela pediu para falar com os filhos por celular.
Dal Ben conta que atendeu mais homens jovens durante o período de pandemia do que mulheres —e que, nesses casos, a grande dificuldade é explicar aos familiares a proibição das visitas.
“Aos pais, mais velhos, nós orientamos a não ir visitar porque são do grupo de risco. A gente, enquanto mãe, consegue entender a angústia de não poder estar ao lado dos filhos”, conta a médica.
Algumas das mães com sintomas mais leves da doença acabam não indo para o hospital. Segundo Dal Ben, indicar o isolamento social em casa é o mais difícil para elas.
A infectologista atendeu duas mães com filhos pequenos para quem o procedimento mais adequado era o isolamento.
Uma delas conseguiu que o pai cuidasse da criança e se manteve dentro do quarto, mas o pequeno batia na porta insistemente, relata a infectologista. A outra, cujo marido também teve coronavírus, não teve como se isolar em casa.
Não só as mães infectadas tiveram suas rotinas alteradas. As profissionais de saúde com filhos tiveram que adaptar o dia a dia com jornadas cada vez mais extensas —e, agora, também com alto risco de contaminação em casa.
A enfermeira Annelice, que tem filhos de 7 e 17 anos, deixou o mais novo morando com o pai, que não trabalha na área da saúde, e mantém distância da filha em casa.
Gladys, que trabalhava na região do Morumbi antes de ser transferida para o Pacaembu, teve seu trajeto ao trabalho estendido e também optou por deixar seus filhos, de 9 e 12 anos, com a avó em Minas Gerais.
Já Mirian manteve seus filhos em casa e, diminuído o medo inicial de infectá-los quando a pandemia começou, hoje ela diz ter mais preocupação com o pouco de tempo que passa com eles.
“Vivo um conflito interior muito grande. Estou trabalhando mais que o habitual, tem dia que não os vejo e não estou conseguindo dar o suporte que eles precisam. A minha filha de seis anos está sendo alfabetizada, precisaria de alguém para fazer o homeschooling”, conta a infectologista.
Com a sua mãe, que mora em Belo Horizonte (MG), ela conversa por videoconferência diariamente. “O mais doloroso é que, como não temos perspectiva de a epidemia acabar, também não tenho perspectiva de vê-la a curto e médio prazo”, diz.
Iris Tavares, 46, enfermeira no Hospital Platão Araújo, na zona leste de Manaus, também não tem perspectiva de ver o filho que mora em São Paulo.
“Ele fica desesperado por mim, eu por ele e fica um jogo de mensagens perguntando sobre os sintomas. Estamos em cidades que são dois dos principais focos dessa pandemia”, conta.
Com a escalada dos casos em Manaus, Tavares viu o número de mortes na unidade em que trabalha subir de uma média de cinco mortes em um dia para um fim de semana com 68 óbitos.
“Tenho dois filhos totalmente diferentes um do outro e isso me ajuda a lidar com as diferenças de personalidade de cada um, entender cada um dos pacientes nesse cenário. O cuidado com carinho, com uma palavra amiga, faz toda a diferença nesse momento”, conta.
O Dia das Mães deste domingo (10), as enfermeiras Gladys Borges e Annelice Oliveira vão passar de plantão nos hospitais.
“É o primeiro que passo longe do meu filho. Fico o tempo todo dentro de casa sentindo que está faltando alguma coisa, até engasgo quando falo”, conta Oliveira.
Borges também pediu para estar no plantão nessa data, já que está sozinha em casa. A equipe de enfermagem planejou um dia de beleza com as pacientes e um mutirão para realizar videoconferências com as que quiserem.
“A gente acaba sendo um pouco a família dessas pessoas. E acho que a empatia que a gente ganha quando é mãe, da fragilidade alheia, a gente vai tendo que usar de forma intensa nesse momento”, diz a infectologista Gladys Prado.