Governos e empresas de todo o mundo disputam a assessoria desta economista . O progressismo, diz ela, deve ir além da redistribuição e se tornar um motor de inovação
O mundo está começando a sair de uma pandemia devastadora e a economista Mariana Mazzucato (Roma, 52 anos) está empenhada em convencer governos e organizações internacionais a serem ambiciosos e irem além de um papel reparador de economias maltratadas. Professora de Economia da Inovação e Valor Público no University College de Londres (UCL) e diretora fundadora do Instituto de Inovação e Propósito Público, ligado à mesma instituição acadêmica, Mazzucato é sobretudo uma mente provocadora, ágil e brilhante disputada como assessora por governos de todo o mundo e que pôs em causa o sacrossanto papel protagonista dos empresários no crescimento econômico e reivindicou a necessidade de um Estado forte, sim, mas reinventado. Capaz de estabelecer objetivos globais e influenciar o desenho dos mercados. Como John Fitzgerald Kennedy em 1962, que impôs a seu país a missão de enviar um homem à Lua e trazê-lo de volta à Terra são e salvo, ela acredita que só sabendo de antemão o que se persegue será possível determinar como fazê-lo da forma mais eficaz e benéfica para todos. Agora publica Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism (Missão Economia: Um Guia para Mudar o Capitalismo, ainda sem edição no Brasil) e No Desaprovechemos Esta Crisis, uma compilação de algumas de suas últimas colaborações.
PERGUNTA. Uma economia baseada em missões concretas para mudar o capitalismo como o entendemos. É isso?
RESPOSTA. A maioria das políticas econômicas dos governos consiste basicamente em aportar dinheiro: subsídios, empréstimos ou garantias, na forma de apoio a diferentes setores. Não têm como foco resolver problemas. Devemos aspirar a uma política econômica focada em problemas concretos e orientada para resultados. Quer seja despejando resíduos plásticos nos oceanos ou acabar com a onda de crimes com arma branca em Londres.
P. Objetivo, chegar à Lua. Assumir riscos, cometer erros, mas não mudar o rumo.
R. A ideia consiste em que, na hora de traçar uma política econômica, seja orientada por um propósito e um resultado determinados. Por isso devemos criá-la como se fosse uma missão. Ir à Lua e voltar era uma missão. O desafio enfrentado pelos Estados Unidos era muito amplo: a Guerra Fria, o desenvolvimento do Sputnik pela União Soviética… Hoje os desafios estão englobados nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que as Nações Unidas estabeleceram em sua Agenda 2030: pobreza zero, paridade de gênero… Cada um deles pode se tornar uma missão concreta e fazer com que o conjunto da economia trabalhe ao mesmo tempo para resolver o problema, as empresas e o Governo.
P. Como se consegue essa colaboração? Quem a coordena?
R. Precisamos de um novo modelo de setor público. E também precisamos de um modelo diferente de colaboração público-privada. Duas tarefas igualmente complicadas, porque existem sérios problemas em ambas as áreas. As instituições do setor público não se veem como órgãos orientados por uma missão concreta. Foram treinadas, pelos acadêmicos ou pelos ministérios de Economia, para atuar no melhor dos casos somente quando houver uma falha nos mercados. E trata-se de que a economia seja uma criação conjunta. Isso significa assumir riscos, investir e pensar de modo proativo quais são os objetivos que se perseguem. A cultura interna das instituições públicas deve se basear muito mais na experimentação. E em equivocar-se uma e outra vez. As empresas de capital de risco, ou a comunidade empresarial em geral, se vangloriam exatamente disso, de terem fracassado continuamente até alcançar o sucesso. Quando os órgãos públicos fracassam, acabam imediatamente na primeira página dos jornais.
P. O fundo de recuperação de pandemia acordado pela UE parece adotar algumas de suas ideias. O projeto foi bem traçado?
R. É muito bom termos um plano de recuperação com condicionalidade de investimento na UE. Depois da crise financeira, a condicionalidade foi colocada na austeridade. A Espanha cortou seu investimento em pesquisa pública em 40% para reduzir o déficit. Algo estúpido, como até o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial reconhecem hoje. No entanto, não se pode substituir a austeridade por investimento sem algo mais, como proclamam alguns economistas de esquerda. Como vamos investir? Em que quadro? Vamos jogar dinheiro público de um helicóptero? Precisamos de um caminho, de um plano, de uma trajetória para alcançar um crescimento liderado pelo investimento. Dado que a recuperação na UE foi condicionada à consecução desses objetivos tão amplos, surge uma oportunidade. Mas agora deve aterrissar em cada um dos Estados membros e obrigá-los a repensar o funcionamento da sua Administração pública, do seu setor público, da sua capacidade sobre o terreno para enfrentar seriamente estes desafios.
P. A senhora insiste muito na necessidade de implicar os cidadãos nesse novo desenho da economia.
R. Essa é a parte mais complicada. Por isso é mais fácil implicar os cidadãos em projetos locais. E é com isso que podemos aprender. Porque as pessoas se reúnem. Nas associações de bairro, no movimento estudantil. Da mesma forma que você faz parte do desenho do plano, você adquire conhecimento, você se implica, o projeto em si acaba investindo na sua própria capacidade. São somente os economistas, os líderes empresariais e os políticos que se limitam a dizer a todo mundo que vão combater a mudança climática. “Será algo bom para todos, confiem em nós”, dizem. Em áreas específicas, como a tecnológica, pode funcionar. Mas quando o que se pretende é definir uma missão social, como combater a desigualdade, ou inclusive a mudança climática, a participação é necessária. Do contrário as pessoas simplesmente ignoram e não mudam. Irão se recusar.
P. E é possível planejar a longo prazo com os governos preocupados com o que pode acontecer na semana que vem?
R. Não precisamos apenas de políticas orientadas a uma missão. Precisamos de organizações orientadas nesse sentido. Que sejam públicas, mas não politizadas. Pense na BBC, por exemplo. Sempre teve internalizado um grande conceito de valor público. Possui uma cultura propensa a assumir riscos. Inclusive tem um departamento de pesquisa e desenvolvimento. Desenvolveu ao longo do tempo uma cultura de experimentação que atraiu os melhores. É muito mais difícil que um político lhe diga o que tem de fazer, porque é uma organização com um valor e um propósito muito definidos. É muito mais simples acabar preso em uma cultura de nepotismo ou corrupção quando você não tem uma visão clara de qual é o papel do Estado ou do setor público. É o que tento combater, esse aniquilamento constante das capacidades públicas. Não porque eu pense que o Estado é mais importante do que qualquer outro ator, mas porque acredito que é o mais fraco.
P. Mas temos memória fraca. Já se começa a discutir que, mais cedo ou mais tarde, os países terão de enfrentar os descomunais déficits em que incorreram.
R. Se voltarmos a cair nesse erro, não apenas seria uma oportunidade perdida, mas um crime. Sabemos que a pandemia foi muito pior do que deveria ter sido. Se tivéssemos sistemas de saúde pública fortes, se tivéssemos pagado o que se devia àqueles que chamamos de “trabalhadores essenciais”, a situação teria sido diferente. A austeridade massacrou essa infraestrutura social em muitos países. Uma educação pública adequada, uma saúde pública adequada, um bom sistema de transporte público… tudo isso morre quando você impõe a austeridade.
P. Aumentar impostos, sim ou não?
R. É claro que temos que abordar a política fiscal. Os governos precisam de receita tributária para elaborar seus orçamentos e ajudar a financiar suas políticas públicas. Mas não pode ser um debate simplista. Os impostos devem ser usados para incentivar comportamentos concretos. Se você tem uma tributação de empresas muito baixa, está incentivando uma economia de curto prazo, com operações de curto alcance. Se você não tributa as transações financeiras, estimula os ganhos baseados unicamente no intercâmbio de ativos já existentes.
P. E os partidos de esquerda entendem tudo isso?
R. A esquerda ficou muito preguiçosa. Veja a América Latina, por exemplo, a Venezuela. Na Europa, temos o mesmo problema, mas em um nível diferente. Todo o discurso se concentra na redistribuição. Não existe uma narrativa progressiva adequada que explique bem de onde surge a riqueza. Acredito cada vez mais na necessidade de falar sobre pré-distribuição. Como conseguimos criar mais valor, de um modo diferente, ao invés de esperar para pegar os restos. Tudo isso requer um discurso e uma discussão diferentes. É claro que precisamos de uma política fiscal progressiva para poder redistribuir, mas a agenda progressista precisa se concentrar muito na criação de riqueza também. Se você se concentrar apenas na redistribuição, não haverá nada a redistribuir. E, além disso, é tedioso como mensagem. Um empreendedor como Elon Musk ou qualquer empresário de Silicon Valley sempre será muito mais atraente.
Fonte: El País