A nova “lista suja” do trabalho escravo, divulgada hoje pelo Ministério da Economia, traz 48 novos empregadores. A Animale, marca de roupas de luxo que subcontratou costureiros imigrantes bolivianos e os submeteu a jornadas de mais de 12 horas por dia passa a integrar o cadastro. Os dez trabalhadores resgatados dormiam nas oficinas, dividindo o espaço com baratas e instalações elétricas com risco de incêndio, conforme revelou a Repórter Brasil em dezembro de 2017.
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Animale e com o CEO da marca, Roberto Jatahy, pedindo um posicionamento, mas não teve retorno.
Essa é a primeira “lista suja” do trabalho escravo divulgada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.
Outro novo integrante da “lista suja” é o produtor da Fazenda Cedro II, Helvécio Sebastião Batista, do Triângulo Mineiro, que comercializa o Café Fazenda Cedro. A marca ostenta selos de boas práticas de certificadoras internacionais. Uma delas, a Rainforest Alliance, informou à Repórter Brasil que suspenderá a certificação.
Em fiscalização ocorrida em julho de 2018, os auditores-fiscais do trabalho encontraram na fazenda seis trabalhadores com jornadas exaustivas que iam, em alguns casos, de 6h até 23h, além de condições de higiene consideradas degradantes nos alojamentos.
“Isso [trabalho escravo] é improcedente. Estou tomando as minhas providências. Entrei com mandado de segurança e não paguei um centavo de multa”, afirma Batista, que é do conselho de administração da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado (Expocaccer).
Com as novas inclusões, a “lista suja” totaliza 187 empregadores flagrados com a exploração de mão de obra análoga à escravidão. Veja a lista completa.
A Work Global Brasil e a Serviço de Domésticas e Babás Internacionais (SDI) também entraram no cadastro por submeterem imigrantes filipinas a condições análogas à escravidão como empregadas domésticas e babás em São Paulo.
Luxo e sofisticação
Os imigrantes bolivianos subcontratados pela Animale recebiam, em média, R$ 5 para costurar peças de roupa vendidas por cerca de R$ 700 na loja. A fiscalização do extinto Ministério do Trabalho flagrou, em setembro de 2017, o crime em três oficinas na região metropolitana de São Paulo.
Em uma delas, os imigrantes costuravam das 7h às 21h, com apenas uma hora de descanso. Um dos trabalhadores recebia R$ 6 para costurar uma calça que demorava uma manhã inteira para ficar pronta. Os fiscais também constataram que as máquinas de costura ficavam próximas das camas dos trabalhadores, o que estimulava ainda mais as longas jornadas.
Cinco crianças moravam nos locais. Quando não estavam na escola, elas andavam e brincavam entre as máquinas e as pilhas de tecido. A atenção exigida por elas “compete diretamente com a aguda concentração exigida na atividade de costura”, segundo os auditores-fiscais do trabalho, o que aumenta o risco de acidentes.
A Animale se define com a frase “moda feminina com luxo e sofisticação” e tem mais de 80 lojas, muitas delas em shoppings de alto padrão. A marca pertence ao grupo Soma, que além da Animale detém a Farm, Fábula, A. Brand, FYI, Foxton e Off Premium.
Em nota enviada à reportagem à época da fiscalização, o grupo Soma negou que tivesse conhecimento das situações em que se encontravam os trabalhadores e das jornadas de trabalho a que eram submetidos.
A Animale é uma das 38 marcas da moda envolvidas com trabalho escravo no Brasil. O histórico de cada uma e os detalhes de como atuam para monitorar o cumprimento da lei trabalhista entre seus fornecedores podem ser conferidos no aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela Repórter Brasil. O aplicativo está disponível no Google Play e na Apple Store e avalia desde 2013 as ações adotadas para combater o trabalho escravo.
Fragrância e aroma frutado
“Fragrância e aroma frutado. Sabor doce de frutas maduras e amora. Café bem equilibrado, finalização intensa”, é a descrição do café Fazenda Cedro em um dos sites onde é vendido. Além dos adjetivos, são indicados certificados de boas práticas: da Starbucks, Nespresso, Rainforest Alliance e UTZ.
Os auditores encontraram na fazenda Cedro e em outras propriedades que têm Helvécio Batista como administrador outros 19 trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravos, além dos seis que provocaram a inclusão do produtor na “lista suja”.
Os trabalhadores não tinham banheiro adequado nem cozinha para preparar as refeições. Além disso, eram submetidos a jornadas exaustivas, que se estendiam até as 23h. Muitas vezes sem folga semanal.
“É tudo inverdade. Esses caras do ministério fazem terrorismo para cima da gente que está fazendo riqueza para esse país”, afirma Batista. “Minha fazenda é certificada. Tenho Nespresso, Starbucks, Rainforest, UTZ. Todas em dia”. Segundo o produtor de café, sua fazenda foi auditada na semana passada pela Nespresso.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Nespresso afirmou que “A Nespresso, por meio de seu Programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável™, trabalha preventivamente para garantir o processo sustentável em toda a cadeia, bem como políticas adequadas de trabalho. As fazendas que fornecem café para a companhia são rigorosamente avaliadas e supervisionadas anualmente para cumprirem devidamente com os critérios do programa. Não aceitamos situação contrária, sem exceção. Diante do exposto no último relatório do Ministério do Trabalho, suspendemos de imediato o trabalho com o produtor em questão e vamos averiguar o caso”.
A Repórter Brasil procurou a Starbucks e UTZ. A UTZ informou que certificou uma fazenda vizinha, administrada por Batista, mas que não está na nova “lista suja”. Starbucks não respondeu até a publicação desta reportagem, que será atualizada assim que ela se manifestar.
Comida de cachorro
“Às vezes eu perguntava à minha patroa se podia pegar um ovo e ela dizia que não”, afirmou à Repórter Brasil, em julho de 2017, uma das filipinas que estava em situação análoga ao trabalho escravo e que foi agenciada pela Work Global Brasil, que adotava o nome fantasia de Global Talent.
Ela sentia fome e chegou a se alimentar da comida do cachorro, para quem cozinhava pedaços de carne. Sob a condição de anonimato, as filipinas disseram que foram parar no hospital após vomitarem e sentirem tontura devido à falta de alimentação adequada e ao trabalho sem descanso.
“Nos primeiros seis meses eu trabalhei sem nenhum dia de folga”, diz uma delas. Seu dia de trabalho começava às 6h e terminava às 22h. “E se os patrões tivessem visitas, me pediam mais uma hora”, conta a trabalhadora. Ela diz nunca ter sido paga pelas horas extras.
As trabalhadoras foram agenciadas pela Global Talent, empresa especializada na contratação de domésticas estrangeiras. À época, a Global Talent afirmou desconhecer o “teor das constatações” do Ministério do Trabalho. “A empresa Global Talent repudia veementemente a alegação de que estaria utilizando-se ou agenciando mão de obra de pessoas em condições análogas à de escravos”, diz nota enviada pelo advogado da empresa.
Em maio do ano passado, o sócio-proprietário Leonardo Ferrada e a Global Talent foram condenados pela 5° Vara do Trabalho de São Paulo a pagar R$ 2,8 milhões por tráfico de pessoas para exploração de trabalho e omissão no caso de trabalho escravo. A decisão levou em conta os casos de 70 imigrantes filipinas que teriam sido trazidas ao Brasil por Ferrada.
Procurado, o advogado da Global Talent, Fernando Merlini, afirma que “esse processo é uma enorme injustiça, já que os patrões dos empregados que afirmavam ter sido ‘escravizados’ sequer foram processados na ação civil pública movida pelo Ministério Público. A empresa Global apenas cuidava da documentação para que essas pessoas viessem legalmente ao Brasil”, informou. “Se houve algum abuso, não foi a Global quem cometeu, pois os trabalhadores não eram seus empregados”.
A Serviços de Domésticas e Babás Internacionais (SDI) também entrou na “lista suja”. A empresa trazia as trabalhadoras filipinas como turistas e regularizava sua situação com solicitação de refúgio ou de visto de trabalho. Procurada, a advogada da empresa, Thereza Castilho, não se manifestou até a publicação desta reportagem. À época da fiscalização, a reportagem procurou a empresa, mas não obteve resposta.
Entre os 48 empregadores que passaram a integrar a “lista suja” estão também empresas de construção civil em capitais, como Belo Horizonte e Fortaleza; fazendas de café em Minas Gerais; casas de farinha em Alagoas e trabalhadores rurais em fazendas de Norte a Sul do Brasil. Ao todo, esses 48 empregadores submeteram 485 trabalhadores às condições análogas à escravidão. Minas Gerais, com 12 empregadores, e Pará, com oito, são os estados com mais casos.
O que é a lista
A “lista suja” é uma base de dados criada pelo governo federal em novembro de 2003. O cadastro expõe casos em que houve resgate de pessoas em condições consideradas análogas à escravidão. As 48 empresas que entraram na atual “lista suja” foram fiscalizadas entre 2014 e 2018. Antes de serem incluídos no cadastro, empregadores têm direito de se defenderem em duas instâncias administrativas do extinto Ministério do Trabalho, agora submetido ao Ministério da Economia.
Os empregadores envolvidos permanecem por dois anos na relação. Caso façam um acordo com o governo, o nome fica em uma “lista de observação” e pode sair depois de um ano, se os compromissos foram cumpridos.
O cadastro tem sido utilizado para análise de risco por investidores e bancos públicos e privados. Além disso, há empresas brasileiras e internacionais que evitam fechar negócios com esses empregadores.
Quatro elementos podem definir escravidão contemporânea, de acordo com o artigo 149 do Código Penal: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde, a segurança e a vida) ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde, segurança e vida).
Fonte: Uol