Nascido como ponto de passagem entre São Paulo e o litoral, o grupo de cidades que forma o ABC transformou-se em um importante símbolo da industrialização brasileira. Há pouco mais de 30 anos, porém, a urbanização fez com que muitas empresas escolhessem o interior paulista para expandir as atividades. Nas duas últimas décadas, várias outras preferiram investir em outros Estados. A região seria hoje apenas uma vítima da guerra fiscal não tivesse sido também duramente atingida pelo encolhimento do parque fabril em todo o país e pela recente crise econômica. Embora ainda conte com a fidelidade de importantes multinacionais, o ABC tenta lutar, agora, para não se transformar em um novo símbolo, o da desindustrialização do país.
A diminuição da atividade produtiva nessa região acentuou-se no último período recessivo. O mais recente estudo da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), um dos centros mais especializados em pesquisas econômicas no ABC, mostra que o PIB industrial das sete cidades que compõem a região passou, em valores nominais, de R$ 28,9 bilhões em 2013 para R$ 24,3 bilhões em 2016, uma queda de 16%. Em termos reais, no entanto, descontado o efeito inflacionário, a retração foi de quase 39%, muito acima das quedas registradas no Brasil (11,5%) e no Estado de São Paulo (14,73%).
Para Luis Paulo Bresciani, professor da USCS e consultor do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o ABC reflete a “crise de demanda” que atingiu todo o país e uma perda generalizada da atividade industrial, acentuada desde 2014. A região continua a ser o segundo maior polo industrial do país, atrás da região metropolitana de São Paulo, e, por isso, diz, recebeu impacto mais forte da crise.
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostra que entre 2013 e 2017 houve uma perda de 6% no número de empregos formais no Brasil e de 6,4% no Estado de São Paulo. Mas o ABC registrou queda muito superior, de 12,5%. A taxa média de desemprego na região, segundo pesquisa do Seade, passou de 10,3% em 2012 para 17,7% em 2017, um dos maiores níveis de desocupação dos últimos 14 anos, segundo o economista Luis Carlos Zambrano, professor convidado da USCS.
Segundo ele, o saldo positivo na criação de empregos com carteira assinada na região, de 8 mil vagas, registrada em 2018, como consequência da retomada do crescimento econômico, “é ainda insuficiente. “O ABC vem apresentando permanente perda de dinamismo desde 2009”, afirma. O PIB per capita, historicamente maior que o paulista e o brasileiro, perdeu para São Paulo em 2014.
O aprofundamento da desindustrialização do ABC não é novo para os pesquisadores. Mas chamou a atenção da sociedade desde o início do ano, quando a Ford anunciou que vai fechar a fábrica em São Bernardo do Campo e a General Motors ameaçou fazer o mesmo em São Caetano do Sul.
A operação da Ford deixou de receber investimentos há quatro anos por conta de um processo de enxugamento mundial e reestruturação estratégica “A Ford é um ponto fora da curva”, diz o prefeito de São Bernardo, Orlando Morando (PSDB), que aponta a guerra fiscal como “um crime”. Para ele, erros dos dirigentes da montadora no Brasil “não podem contaminar a cidade”.
A saída da Ford a partir de novembro, quando termina o período de estabilidade dos 2,8 mil funcionários, representará perda de R$ 18,5 milhões em tributos nos cofres de São Bernardo. O prefeito está, no entanto, otimista em relação aos resultados de um plano no qual ele e o governador João Doria (PSDB) estão envolvidos para atrair um comprador para a fábrica da montadora. Há dois interessados, Morando, que se prepara para receber esta semana a visita de representantes de uma empresa chinesa. O prefeito está animado com a possibilidade de manter a produção de caminhões no espaço que será deixado pela Ford.
A forte dependência da indústria automobilística é, para o professor da Universidade de São Paulo, Glauco Arbix, um dos principais motivos do enfraquecimento da atividade industrial no ABC. A entrada de competidores de outros setores, como os de tecnologia, no mercado mundial, desafia as montadoras ao provar que são igualmente capazes de desenvolver o carro do futuro e novos conceitos de transporte. “A questão nunca foi tão estrutural”, afirma Arbix, ex-presidente da Finep e hoje coordenador do Observatório de Inovação do IEA-USP. Há uma mudança de paradigmas num setor que durante um século reinou, absoluto, na produção de veículos movidos a motores a explosão. E o ABC, diz Arbix, aparece no meio desse tiroteio, com o desafio de ter que agir rapidamente.
A guerra fiscal é mais um fator que atingiu o setor automotivo e, consequentemente, o ABC. “Essa é uma guerra que vamos perder sempre”, afirma Jefferson José da Conceição, coordenador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS. Movida a incentivos fiscais, a descentralização industrial no setor automotivo foi mais marcante entre meados dos anos 90 e início de 2000. Mas continuou nos últimos anos. E ganhou uma força adicional em novembro, quando, a menos de dois meses do fim do mandato, o ex-presidente Michel Temer assinou decreto ampliando o prazo de concessão de benefícios fiscais nas regiões Norte e Nordeste.
A Ford seguiu o rastro da renúncia fiscal. Comprou a Troller, uma fabricante de jipes brasileira do Ceará, para, aproveitando os incentivos na região, erguer uma fábrica em Camaçari, na Bahia. A compra de uma antiga metalúrgica pernambucana foi também o caminho encontrado pela Fiat Chrysler para construir uma grande fábrica de automóveis em Goiana (PE). “A Ford transferiu seu centro de pesquisa e desenvolvimento para a Bahia e isso joga um peso decisivo”, afirma Conceição.
Pesa, ainda, contra o ABC, o processo de adensamento urbano, que espremeu a indústria. A proximidade com São Paulo estimulou a especulação imobiliária, atraída por terrenos para moradia mais baratos do que na Capital, que a fica em torno de 20 quilômetros de distância dos principais pontos das cidades da região. Há anos passou a ser rotineiro fábricas e conjuntos habitacionais convivendo no mesmo espaço.
A pequena Diadema tem o melhor retrato desse uso misto do espaço. Grandes e pequenos galpões industriais espalham-se em avenidas em meio a lojas, lanchonetes e edifícios residenciais. “A presença de operários que consomem quentinha deixam satisfeita a cozinheira que sequer precisa se deslocar de casa para preparar as marmitas”, afirma Bresciani. Mas nem todo o mundo está feliz. O barulho de uma prensa que há décadas funciona no mesmo lugar passou a ser motivo de queixas de quem mora em apartamentos construídos na vizinhança.
Claudionor Vieira do Nascimento, coordenador da regional do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em Diadema, está preocupado com o que pode acontecer com os empregos de uma grande fabricante de bancos e molas para veículos instalada há anos entre o Jardim Campanário e o Taboão, uma área onde no passado só haviam fábricas. Um edifício residencial de 12 andares com apartamentos de classe média, o Park Jacuí, acaba de ser construído num terreno praticamente colado à fábrica. Uma fileira de árvores com galhos finos é a única separação entre o prédio e o galpão industrial.
Não sobrou espaço para expandir a produção, necessária agora, uma fase de retomada das montadoras, segundo Nascimento. Ele diz que o uso misto de áreas que antes recebiam só indústria tornou-se um problema. “A especulação imobiliária tem colocado muitas empresas na UTI”, diz o dirigente, que viu a base de metalúrgicos de Diadema encolher de 30 mil em 2010 para 18,7 mil hoje.
Há anos não se tem registro de um grande investimento industrial em Diadema, apesar dos esforços do Poder Público que reduziram índices de criminalidade na cidade, como a lei que proíbe a abertura dos bares entre 23h e 6h, em vigor desde 2002. Nascimento lamenta o encolhimento do número de grandes empresas.
Segundo dados da USCS, nos últimos 28 anos, o número de empresas com mais de 500 funcionários no ABC caiu de 120 para 50. Conceição, professor da universidade, aponta o reflexo das crises na indústria de transformação. Entre 1989 e 1999, a quantidade de trabalhadores formais empregados passou de 363,3 mil para 187,7 mil. Depois veio um ciclo de retomada, chegando a 264,8 mil em 2011 e, em seguida, forte retração em período mais curto, chegando a 186,3 mil em 2017. Para Bresciani, o avanço da automação por si só não justifica a queda.
A presença de área de proteção aos mananciais na região também dificulta projetos de expansão industrial. Por conta disso, há tempos empresas, como a Yakult, sairam em busca de outras áreas para ampliar a produção ou criar novas linhas. O ABC é, ainda vítima das enchentes. Há poucos dias, vários municípios decretaram estado de calamidade. Os prefeitos negociam com o governo estadual a construção de mais piscinões.
Mas nem só de más notícias vive o ABC. Há pouco mais de dois meses, a Braskem anunciou investimento de R$ 600 milhões na fábrica cujo terreno está metade em Santo André e a outra metade em Mauá. Os recursos serão empregados na modernização do sistema elétrico para garantir maior confiabilidade na central de matérias primas da fábrica que emprega 4 mil trabalhadores, incluindo terceirizados O polo petroquímico tem outras grandes empresas. E grandes fornecedores da indústria automobilística, como os fabricantes de pneus Brisdgstone e Pirelli mantem atividade e investimentos em Santo André.
Há pouco menos de um ano a sueca Saab construiu uma fábrica que ocupa 4,5 mil metros quadrados em São Bernardo para, a partir de 2020, produzir aeroestruturas do caça Gripen para a Força Aérea Brasileira. Segundo o diretor geral da Saab Aeronáutica Montagens, Marcelo Lima, a empresa Saab realizou estudos sobre os possíveis locais da instalação, incluindo São José dos Campos, o maior centro aeronáutico do país, onde será feita a montagem do Gripen. Mas São Bernardo foi escolhido pela qualidade de sua força de trabalho, a proximidade com universidades e centros de pesquisa e também pela vantagem logística, devido à facilidade de acesso a portos e aeroportos, a importantes rodovias”.
O ABC também acaba de receber grandes investimentos da indústria automobilística. Volkswagen e Scania e anunciaram programas de R$ 2,6 bilhões cada uma e a Mercedes-Benz outros R$ 800 milhões, respectivamente. A maior parte dos recursos é para modernizar processos em fábricas erguidas por essas empresas há cinco ou seis décadas. A Volks iniciou, ontem, uma parada técnica de 12 dias para alterações na linha, necessárias para a chegada de um novo carro, cujo nome e investimento a montadora ainda mantém em sigilo. Em São Caetano, a GM vai investir em torno da metade do programa de R$ 10 bilhões, anunciado há uma semana, para renovar a linha de produtos nos próximos quatro anos.
As empresas também já não apontam os sindicatos como motivo para deixar de investir no ABC. O clima tenso, de longos e difíceis negociações que quase sempre acabavam em greve fazem parte de um passado remoto. Houve um amadurecimento nas relações trabalhistas na região que hoje serve de referência a outras bases – da mesma forma que negociações e mobilizações combativas serviam no passado.
Além disso, o próprio processo de desindustrialização enfraqueceu os sindicatos. A base do sindicato do ABC, de onde surgiu o Partido dos Trabalhadores, e que abrange basicamente São Bernardo e Diadema, soma 70 mil tranalhadores, uma perda de 37 postos em relação a 2011.
Isso abrandou as negociações. Na Volks, o sindicato de São Bernardo aceitou redução de benefícios em troca da promessa de produção de novos modelos de automóveis. O mesmo, agora, acontece na GM, que reduziu o valor do piso salarial. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano, Aparecido Inácio da Silva mostra cuidado para cuidar da única grande empresa que sobrou em sua base, a GM. Ali trabalham praticamente todos os 9 mil metalúrgicos de São Caetano. Há menos de quatro anos eram 12,5 mil.
Não só “Cidão”, como é conhecido, quer paparicar a GM. Na semana passada, o prefeito de São Caetano, José Aurcchio Júnior, anunciou programa de incentivos para a produção de veículos que concede isenção e descontos de IPTU, ISS e em contas de água e esgoto. A GM já havia negociado redução de ICMS com o governo estadual.
Diante de um quadro difuso, falta saber que caminhos o ABC pode seguir. A elaboração de um diagnóstico foi, até, aqui, prejudicada pela falta de união entre os governos locais. Diferenças partidárias sempre marcaram a história política da região conhecida no país como berço do PT.
Há alguns anos foi criado um consórcio intermunicipal, que em determinado momento criou até um plano diretor único, voltado à preservação do parque industrial sem comprometer a área urbana. Rachas internos levaram à saída de alguns municípios. Há poucos dias, o consórcio foi reorganizado com a adesão das sete cidades.
No comando do consórcio está o prefeito de Santo André, Paulo Serra (PSDB). “A região dormiu em berço esplêndido, acomodou-se num modelo antigo quando deveria ter buscado novas vocações”, afirma. Para ele, faltou coragem de encarar a realidade. Com a volta da discussão, o consórcio vai preparar, com ajuda de consultoria, um estudo para obter um diagnóstico dos pontos fracos e fortes da região.
Assim como o prefeito de São Bernardo, Serra destaca lados positivos da região, como a Via Anchieta e o Rodoanel, que facilitam o escoamento industrial. “Mas temos que saber por que o ABC perde empresas. Será o preço dos terrenos, que custam R$ 2 mil a R$ 3 mil o metro quadrado enquanto em Sorocaba, à beira da rodovia Castelo Branco são vendidos a R$ 800?”, questiona Serra. “O que podemos mexer em planos diretores e tributos para atrair as empresas? Essa é uma discussão regional”, destaca.
Arbix prevê “um longo período de declínio” do ABC por conta de dificuldades para “remodelar” a região. Mais otimista, por outro lado, Morando faz um apelo: “Por favor, não enterrem a região no pessimismo”.
Fonte: Valor Econômico