O projeto, elaborado ainda no governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi apresentado pela sucessora ao Congresso em 2011
Um rapaz de classe média chega em casa depois de longa viagem e liga para reativar a internet. A operadora de telemarketing pergunta se quer o plano que oferece emails, notícias, redes sociais e um site de busca. Estaria falando de velocidade da conexão? Não. Diz que o plano define o acesso. Para também assistir vídeos na internet é outro o pacote. E para ter acesso integral ao conteúdo da rede, apresenta um terceiro, por R$ 288. O rapaz, indignado, diz que quer voltar a ter a internet por inteiro e ameaça publicar uma denúncia em seu blog. A operadora, sem alterar o tom de voz, esclarece que se ele tem blog vai precisar de uma internet profissional. É um outro plano.
O vídeo de três minutos, produzido com o apoio da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto do Direito do Consumidor, está no site criado pelo movimento que defende a aprovação do marco civil da internet (marcocivil.com.br).
O projeto, elaborado ainda no governo Luiz Inácio Lula da Silva, foi apresentado pela sucessora ao Congresso em 2011. Há um mês, em meio ao vazamento da espionagem americana no Brasil, ganhou regime de urgência na Câmara dos Deputados.
Contas a prestar ao eleitor fazem convergir PT e PSDB
A associação não lhe trouxe vantagens. A urgência quis mostrar que a presidente Dilma Rousseff fala grosso com os Estados Unidos, mas revelou que o governo fala fino com seus aliados.
O regime de tramitação impede que outros projetos sejam passados a sua frente. Ao trancar a pauta de votações, o marco civil da internet tornou-se a garantia que o governo precisava contra o avanço, no plenário, de projetos gastadores. Sua votação poderia liberar a pauta, por exemplo, para o piso nacional dos agentes de saúde, abre-alas das bombas fiscais do Congresso.
Pelos malabarismos da negociação parlamentar, o fim do voto secreto também colaborou para a urgente inércia do marco civil da internet.
Até agora o governo Dilma foi perdulária nos vetos a leis que contrariaram os gostos do Planalto. Com o fim do voto secreto, os vetos passarão a ter votacão aberta e nominal. Em temas que gerem mobilização popular ou corporativa, os parlamentares terão um incentivo para derrotar o governo, tanto maior quanto mais próximas as eleições.
Com a mudança, o governo já não deve correr tantos riscos em deixar votar para depois vetar. Daí que o represamento da pauta com bombas fiscais seja tão importante para o governo.
É neste jogo que está enredado o marco civil. Deixá-lo em banho maria é tratar as manifestações de junho como herança maldita. O vídeo em que um policial é flagrado quebrando o vidro da própria viatura no centro de São Paulo teve 2,5 milhões de acessos. Quantos teria tido se o usuário tivesse que pagar um plus a mais adicional para assisti-lo?
O relatório do deputado Alessandro Molon (PT-RJ) prevê a isonomia dos pacotes de dados. Adere à visão de quem iguala o fornecimento de sinal de internet ao de água e luz. A tarifa deve remunerar a infraestrutura montada para que o serviço chegue à torneira, à tomada ou ao computador.
Da mesma maneira que o usuário paga pela quantidade de água e luz que usa, o internauta é cobrado pela velocidade que opta por navegar. É esta velocidade, e não a segmentação de pacotes, que deve lhe dar acesso aos aplicativos. É a isso que se chama de neutralidade da rede.
As empresas preferem comparar o fornecimento de internet ao da TV a cabo. Argumentam que, sem diferenciar o acesso por planos de acesso, não terão como investir na infraestrutura. Os antecedentes não lhe são favoráveis. A Anatel estabelece metas para investimentos e cobertura das empresas de telecomunicações. Seu descumprimento gera multas e uma avalanche de recursos ao judiciário. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor calcula que apenas 9% das multas do setor dos últimos três anos foram pagas. Em alguns casos as penalidades superam o valor de mercado das empresas.
Professor da Universidade Federal do ABC e difusor do software livre no Brasil, Sérgio Amadeu deu, em recente debate na internet, os seguintes números sobre o mercado: o setor faturou R$ 280 bilhões em 2012, o equivalente a 8% do PIB. No Brasil, metade da população acima de dez anos tem internet. Quando esse acesso se universalizar, a fatia das telecomunicações na riqueza nacional, na avaliação de Amadeu, tem potencial para ultrapassar a do setor financeiro.
Para isso, além de quebrar a neutralidade, as empresas querem controlar a navegação do usuário. Experimente fazer uma pesquisa sobre Camboriú, por exemplo. Em 24 horas sua caixa de emails será inundada por propaganda de hotéis, restaurantes e lojas da cidade. Isso é possível porque sites de busca como o Google guardam o histórico de navegação do usuário e o vende no mercado.
Amadeu calcula que empresas de rastreamento de dados na internet já faturam mais, no mundo, que a indústria de petróleo. A mina de negócios do rastreamento orienta, por exemplo, a distribuição das prateleiras de supermercado. Se a navegação do usuário indica que ele compra fralda e cerveja, o supermercado vai tratar de colocar os dois produtos próximos.
Dito assim, até parece inofensivo. Mas se dois amigos trocam mensagens em redes sociais e vem à tona doença de um deles, nada impede que a informação seja captada pelo banco de dados de um plano de saúde e o usuário tenha seu contrato rejeitado por enfermidade preexistente.
As teles querem disputar esse filão. O marco civil as veta no mercado de rastreamento e restringe seu uso comercial pelos sites de busca.
Na negociação do texto que vai a voto quando o stress fiscal deixar, Molon cedeu a partidos de oposição que queriam facilitar o histórico de navegação para a investigação criminal. Com argumentos como o de que 53% das pessoas que ganham até um salário mínimo e usam a internet o fazem também para assistir vídeos – uma grande parte deles, acessados em lan houses, para a preparação de concursos – o deputado tem angariado apoio ao texto. Enfrenta maiores resistências no PMDB, mas avalia que PT e PSDB tendem a rejeitar uma internet fatiada entre ricos e pobres. As contas a prestar ao eleitor logo mais ajudam nessa convergência. O que atrapalha é a neura fiscal.
Fonte: Valor Econômico
Maria Cristina Fernandes
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