Por Ivan Lessa
A presidente Dilma Rousseff é desenvolvimentista, mas continua fazendo uma política de estabilização. Ela tem boas ideias, porém “não tem coragem de pô-las em prática”. O diagnóstico é de Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, ex-professor de Dilma na Unicamp na disciplina de economia brasileira.
Ex-presidente do BNDES (governo Lula), Lessa, 76, afirma que a desnacionalização explica em parte o baixo crescimento brasileiro. Defende medidas de longo prazo e a ampliação do investimento público.
Ex-reitor da UFRJ, ele dá nota 9 para o discurso da presidente e 6 ou 5 para a sua prática. Eleitor de Serra, de quem foi padrinho de casamento, Lessa ataca a privatização no setor de energia e o modelo adotado a partir dos anos 1990. A seguir, os principais pontos da entrevista.
MODELO BRASILEIRO
A grande pergunta que não é colocada é: para onde nós vamos? Se tivermos mobilização nacional, um entendimento claro de qual é o projeto nacional e coerência dos diversos personagens em relação a isso, a possibilidade de construí-lo aumenta enormemente. Na minha visão, o Brasil continua apostando na ideia da globalização, apesar da crise mundial dessa globalização. Isso significa fazer um tipo de política que está a serviço das diretivas gerais e não das especificidades de cada país.
DESNACIONALIZAÇÃO
A desnacionalização trouxe uma porção de defeitos. O mais elementar é que ela confirma cada vez mais a dependência de suprimentos do exterior e a necessidade de investir voltado para fora. Se se depende de suprimentos do exterior, se depende de exportar frango, açúcar, café, minério de ferro etc. O país fica cada vez mais amarrado à opção de globalização, amarrado para ser um componente da periferia mundial. Os países do centro desenvolvem atividades voltadas para o mercado interno, com tecnologia própria e tecnologia de ponta. Quando há desnacionalização, o país passa a ser apenas um comprador de tecnologia, na melhor das hipóteses.
BAIXO CRESCIMENTO
A desnacionalização explica muitas coisas. E o setor público não investe com clareza para apontar para onde o Brasil irá. Na verdade, o setor público continua prisioneiro do acordo de Washington. Continua usando o modelo de metas da inflação, apesar de os europeus já estarem abandonando esse modelo. O Brasil continua fazendo uma política que prioritariamente é de estabilização, não de desenvolvimento. Mas faz um discurso a favor do desenvolvimento.
DESENVOLVIMENTISTA
Foi minha aluna, é inteligente, gosto como pessoa. Tem ideias, em princípio, boas. Ela não tem coragem de pô-las em prática. Faz o enunciado, mas não o coloca em prática. Não gosto de dar nota. Mas, em relação às coisas que ela sugere, daria nota 9. Para o que ela faz dou nota 6 ou 5.
Ela diz que é necessário abaixar a taxa de juros. Concordo integralmente. Então é preciso fazer uma política consistente para baixar para valer. Teria que mexer na taxa de juros do BC, na dívida púbica, tornar cada vez mais difícil haver essa corrida em cima dos títulos de divida pública. Tinha que lançar a proposta de imposto de exportação para poder voltar a desvalorizar o câmbio para valer. Elevar o dólar de R$ 2 para R$ 3. É muito? Note que, no Planalto, a borrachinha de apagar e o lápis ambos são chineses.
INVESTIMENTO PÚBLICO
O investimento público sofre limitações terríveis. Eu apostava que a economia do petróleo ia ajudar o Brasil encontrar uma frente de expansão. Não encontrou. Ao contrário, o que vejo é um discurso cada vez mais duvidoso em relação à Petrobras.
PETROBRAS
Vejo a Petrobras vendendo refinarias no exterior, dizendo que está perdendo dinheiro com gasolina, que está perdendo dinheiro com gás de cozinha. Isso faz os empresários brasileiros duvidarem de que a Petrobras toque para frente o seu programa. Aí, se a Petrobras não vai, sou eu, dono da lanchonete da esquina, que vai apostar no crescimento brasileiro? Quem está apostando para valer no crescimento brasileiro? Hoje eu diria: ninguém. Há um ano eu diria que era o pessoal do petróleo com o Pré-Sal. Essa senhora que preside a Petrobras está mostrando uma vulnerabilidade terrível.
ENERGIA
O Brasil há 25 ou 30 anos atrás vinha construindo uma estrutura energética que era a melhor do planeta, que quase não dependia de petróleo, carvão, gás. Era basicamente elétrica e mais de 80% gerada por hidroeletricidade. Veio uma coisa surrealista: foi reduzido espetacularmente o peso da energia elétrica dentro da matriz. Começa com Collor, avança com Fernando Henrique e é absolutamente confirmada nos governos Lula e Dilma. Para mim, é ininteligível. Tínhamos um dos melhores sistemas de eletricidade do planeta e o domínio completo da construção de usinas hidrelétricas e redes. Foi tudo desmantelado.
PRIVATIZAÇÃO
No caso da energia elétrica, [a privatização] é um desastre de proporções colossais. O Brasil tinha um dos mais baixos custos de energia elétrica do planeta. Adotou-se o preço de energia pela energia mais cara que está sendo produzida. No Brasil há uma quantidade enorme de usinas que estão praticamente amortizadas. Seria possível ter uma tarifa elétrica espetacularmente baixa. Fizeram no Brasil uma coisa surrealista. O governo está exaltando que construiu as térmicas e que elas eliminam a vulnerabilidade. Mas as térmicas empurraram para cima de uma maneira espetacular o preço da energia elétrica.
COMPETITIVIDADE
Diversos setores exportadores tradicionais que são eletrointensivos e que tinham vantagem de ter suprimento de energia elétrica baratíssimo perderam vantagem. O Brasil fez com que a indústria perdesse competitividade. Hoje o Brasil depende da termoeletricidade e perdeu a vantagem estratégica de uma matriz energética que era espetacular e não refez nada. Colocou no lugar um consumo crescente de energia elétrica não renovável. Foi um erro do ponto de vista de balanço energético brutal. Um erro estratégico que afeta o futuro brasileiro.
MINÉRIOS
O Brasil é importante supridor de minério de ferro para a China. Mas os chineses não são bobos e vão desenvolver sua própria Vale na África. Por mais algum tempo a Vale irá muito bem, mas a longo prazo ela irá mal enquanto exportadora de minério de ferro. Optamos por ser primário-exportadores, não por ter uma indústria siderúrgica integrada e moderna. Se desaparecer a conexão importante com a China, o Brasil vai ficar num mato sem cachorro.
SOJA
É sucesso, mas não é um sucesso nacional. Quando o café foi um sucesso no Brasil no passado, quem produzia as novas variedades de café era o Instituto Agronômico de Campinas. Agora quem produz é a Monsanto. Quem produzia fertilizantes no Brasil até recentemente eram empresas da Petrobras que foram privatizadas. Parece que agora a Petrobras esta refazendo a sua presença no setor de fertilizantes. Todo o maquinário da indústria é estrangeiro. Os defensivos agrícolas são todos estrangeiros. Todos os grandes exportadores são grupos estrangeiros. O financiamento agora depende do sistema financeiro mundial. O complexo da soja tem de nacional mesmo um pedaço dos proprietários de terra que plantam soja –se bem que os chineses agora estão comprando alucinadamente terra agrícola. E tem o caminhoneiro, o dono do caminhão. O fabricante do caminhão, que é estrangeiro. O complexo soja é um sucesso, porém não é nacional.
SISTEMÃO
Se houver qualquer borogodó no sistema mundial de soja, quem vai pagar um preço maior é a soja brasileira. Porque tem o sistemão que se defende e vai jogar para cima do Brasil as perdas. Ele procura controlar, na medida do possível os suprimentos e os mercados? Para poder jogar nas duas pontas se for necessário. O complexo do café foi, no passado, um complexo nacional. Por isso o país fez uma política defensiva do café durante a crise mundial de 29. Não podemos fazer agora uma política defensiva de soja.
CANA E ÁLCOOL
O quadro é parecido com o da soja. Uma empresa francesa produz clones especializados de cana. A terra da cana também está sendo vendida para estrangeiros. As usinas principais estão saindo de mãos nacionais para mãos estrangeiras. O Brasil ainda tem a ponta da tecnologia que é a Dedini. Vamos ver por quanto tempo ela resiste como empresa nacional. Estamos transferindo as vantagens brasileiras, muita água, terra e muito sol, para controladores estrangeiros. Essa é a opção da globalização.
EMPRESÁRIO NACIONAL
Como se faz uma globalização e, ao mesmo tempo, reserva os segmentos dinâmicos dessa globalização em mãos nacionais? É muito difícil. Quando o empresário nacional é muito robusto e poderoso, pula para fora do Brasil e tenta reproduzir o padrão das múltis bem sucedidas. O empresário tem a visão de empresário. Se tivessem uma visão nacional, estariam discutindo e debatendo um projeto nacional.
CARROS E ENDIVIDAMENTO
O Brasil fez com que a atividade econômica interna dependesse basicamente de vendas financiadas de bens de consumo duráveis, principalmente autos. Houve endividamento em massa das famílias. O endividamento não é necessariamente nem ruim nem bom. Ele pode ser muito virtuoso. Por exemplo, quando ele gera uma resposta empresarial que é ampliar capacidade de produção, quando ao mesmo tempo se gera novos empregos e maior renda familiar. É virtuoso o endividamento que tem como consequência a retomada do investimento macroeconômico, a ampliação da capacidade de produção, de geração de emprego e renda. O endividamento brasileiro cresceu explosivamente durante a última década. O número de autos cresceu 9% ao ano, refletindo o endividamento em massa das famílias em torno do objeto do desejo principal do povão que é o automóvel. Isso teve um efeito ruim. Não elevou a taxa de investimento brasileira, que está inferior a 20% do PIB.
CONSTRUÇÃO CIVIL
Penso que Dilma ela acha muito melhor que as famílias brasileiras se endividem por construção de residências do que por compra de automotores. A indústria da construção civil é altamente virtuosa. Gera emprego, materiais locais, mão de obra local, marcenaria, alvenaria. Além disso, os materiais básicos da indústria são fabricados no Brasil: cimento, produtos cerâmicos, ferro de construção. A família prefere a ideia da casa própria a do automóvel. Prefere se endividar com a casa própria. Isso é sempre virtuoso porque a família para de pagar aluguel. Enquanto que o endividamento com automóvel, do ponto de vista familiar é complicado. O automóvel traz gastos com impostos, combustível, manutenção. E tem a depreciação. Já o imóvel residencial geralmente melhora de valor. Quando a família compra a prazo pagando prestação a casa própria, ela esta capitalizando para o futuro. É extremamente virtuoso o modelo da construção civil. Coisa que a Dilma sabe.
LONGO PRAZO
Precisa haver uma fonte de financiamento pesada para as famílias poderem se endividar e tem que ter investimento público para a infraestrutura. Isso não existe no Brasil porque a prioridade toda é dada ao pagamento da dívida pública.
Para fazer um programa para valer de construção civil é preciso equacionar o financiamento em massa a longo prazo a uma taxa de juros baixa para as famílias. Só tem uma maneira de fazer isso: é lançando mão da poupança institucional que existe no Brasil. É a poupança gerada pela previdência pública oficial. É a previdência toda e todos os outros fundos complementares, como Previ. Essa massa de recursos pode dar sustentabilidade a uma política de longo prazo de ampliação significativa da construção civil.
Outra coisa necessária, já que 80% da população brasileira é urbana, é o investimento público em infraestrutura. Não se pode ampliar muito a construção civil, se não houver aumento no fornecimento de energia elétrica, de água tratada, água recolhida etc.
CÂMBIO
A melhoria do câmbio tem uma característica curiosa e extremamente angustiante. Num país que não tem imposto sobre exportação, se há aumento da taxa de câmbio, há imediatamente reflexo na inflação. O Brasil tem coragem de propor imposto sobre a exportação? Então não consegue fazer uma política de câmbio consistente. O governo deveria ter no seu ferramental tributário a possibilidade de aplicar um imposto de exportação se houvesse a seguinte combinação: preço internacional muito alto de uma commodity brasileira e, ao mesmo tempo, desvalorização cambial.
PRESSÃO SOBRE BANCOS
Ela está correta na tentativa, mas ela só foi a meio caminho. O problema é que quem obedece a Dilma são BB, CEF e BNDES. O resto desobedece. Os bancos praticamente não repassam a queda de juros. O cheque especial é uma armadilha terrível. Itaú, Bradesco e Santander só reduziram um tiquitinho. Ela vai enquadrar Itaú, Bradesco e Santander ou os três enquadram ela? Ela não tem como enfrentá-los.
Tudo que o BNDES fizer, em princípio, é bom para o Brasil. Só que tem coisas que o BNDES faz que são maravilhosos e outras que não são tão maravilhosas assim. E tem algumas coisas cuja prioridade é altamente questionável. Por exemplo, o BNDES não deveria apostar tanto em financiar a exportação de automóvel. Se as empresas que estão instaladas no Brasil têm mercado mundial para automóvel, elas deveriam procurar linhas de financiamento fora do Brasil para tocar para frente suas exportações. Mas não pode fazer nada, porque se a indústria principal brasileira hoje é automobilística. Você vai mexer nela?
Fonte: Folha de São Paulo