Elite brasileira, que adora imitar os americanos, poderia copiar a importância que Biden tem dado ao movimento sindical
Joe Biden fez várias mudanças na decoração do Salão Oval logo após ser empossado como presidente dos Estados Unidos. Uma das que mais me chamou a atenção foi a colocação no local do busto de um sindicalista: César Chávez (1927-1993), filho de imigrantes mexicanos que liderou um movimento pelos direitos de trabalhadores agrícolas. O seu lema era “sí, se puede”, mais tarde adaptado por Obama para “yes, we can”.
Nos primeiros dias de governo, Biden declarou o seguinte: “Estamos começando a trabalhar para reconstruir a espinha dorsal dos EUA: a indústria, os sindicatos e a classe média”. Para o cargo equivalente ao de ministro do Trabalho, ele nomeou um ex-sindicalista. O novo presidente americano ainda assinou uma série de atos executivos com medidas de proteção aos trabalhadores e fez um discurso histórico, no final de fevereiro, defendendo o direito de organização sindical, que enfrenta diversos entraves nos EUA.
Teria o liberal Biden enlouquecido? Seria ele um agente comunista infiltrado no império americano? A resposta é não. A aproximação dele com o movimento sindical, apesar de pouco conhecida no Brasil, não começou ontem. E tem razões bem concretas.
A sua campanha à Presidência foi lançada dentro do poderoso sindicato dos metalúrgicos de Pittsburgh, na Pensilvânia. Desde o início, o democrata contou com amplo apoio de centrais sindicais, que criaram a Ação Trabalhista para a Defesa da Democracia (LADD). Sindicalistas visitaram centenas de milhares de lares, batendo de porta em porta para pedir votos para o candidato. Quando Trump declarou que não reconheceria a vitória de Biden, o movimento operário ameaçou uma greve nacional, algo que não acontece nos Estados Unidos desde a década de 1940.
Mas por que esse entusiasmo dos trabalhadores pela candidatura de Joe Biden, que não deteve o longo processo de enfraquecimento dos sindicatos quando era vice de Obama? A primeira frase do seu “Plano de Fortalecimento das Organizações Trabalhistas, da Negociação Coletiva e dos Sindicatos”, parte do seu programa de governo, resume bem a questão: “Sindicatos fortes construíram a grande classe média americana”.
Demorou, mas, em meio à tripla tragédia da pandemia, da grave crise econômica decorrente dela e do governo Trump, os democratas reconheceram o óbvio: “Não é coincidência que esse declínio [no número de trabalhadores sindicalizados] tenha ocorrido ao mesmo tempo em que cresceu a desigualdade de renda. Quando os trabalhadores são impedidos de se organizar e de se envolver em negociações coletivas, os resultados previsíveis são salários estagnados e uma classe média em declínio”, diz outro trecho do documento.
Hoje, os sindicalizados nos Estados Unidos representam apenas 10,5% da força de trabalho, contra 35% nos prósperos anos 1950. A taxa de sindicalização caiu principalmente após o governo ultraliberal de Ronald Reagan nos anos 1980, graças a campanhas antissindicais, com respaldo jurídico, realizadas dentro das empresas, além de constante intimidações de funcionários sindicalizados.
A consequência não poderia ser outra. Segundo o Relatório da Desigualdade Global 2018, da equipe do economista francês Thomas Piketty, os Estados Unidos enfrentam há quase 40 anos estagnação na renda da metade mais pobre da sua população. Desde 1980, o valor médio dos rendimentos anuais brutos desse segmento aumentou apenas US$ 200. Ao mesmo tempo, a renda média anual bruta dos 10% mais ricos dobrou (para US$ 311 mil); e a do 1% no topo, triplicou (para US$ 1,3 milhão).
Tudo isso explica muita coisa, desde a eleição “surpresa” de Trump até esse protagonismo pouco antecipado dos sindicatos no governo de Biden. Por isso, Biden se elegeu com uma plataforma com medidas como o aumento de 100% no salário mínimo federal, a recuperação do direito de negociação coletiva, fortes controles e sanções para a interferência empresarial na liberdade de sindicalização do seu pessoal e reforço do direito de greve, entre outras. Afinal, o único jeito de salvar a economia de mercado americana neste momento é injetando dinheiro no bolso do trabalhador. E não há maneira mais prática de fazer isso do que fortalecendo os sindicatos, que por sua vez exercem pressão sobre as empresas para uma maior valorização dos seus trabalhadores. E não é exatamente disso que o Brasil precisa?
A nossa taxa de sindicalizados também é muito baixa, de apenas 11% – somente entre 2018 e 2019, depois da reforma trabalhista, perdemos mais de 1 milhão de trabalhadores sindicalizados. A reforma foi aprovada com a promessa de criação de 2 milhões de empregos, e qual foi o resultado? A realidade é que chegamos em 2021 com cerca de 14 milhões de desempregados, frente os cerca de 11 milhões de antes da aprovação da reforma. E, mesmo antes da pandemia, a taxa de desemprego diminuiu apenas de 12,2% (durante a recessão de 2014) para 11,8%, por meio da criação de empregos em sua maioria precários, sem jornada ou salários fixos.
Outra promessa das reformas neoliberais era a de que o Brasil se tornaria mais competitivo e atraente para empresas e investidores estrangeiros. O resultado? A Ford não está mais aí para contar. O país perdeu uma multinacional a cada três meses desde 2018, da indústria ao varejo – 14 no total. O mercado interno implodiu. O faturamento das empresas do setor automotivo, que já foi de US$ 87 bilhões no Brasil em 2013, caiu para US$ 54 bilhões em 2019. A participação do setor industrial no PIB brasileiro também vem caindo ano a ano. Em 2018, a indústria de transformação representou apenas 11,3% do PIB, quase a metade dos 20% registrados em 1976.
No Brasil, nossa elite vem há muito tempo pressionando para que a pauta liberal seja implantada de reforma em reforma, sempre sob a alegação da geração de empregos e salvação do Estado. Diversas foram implementadas, e tanto a vida do trabalhador quanto a situação do país não param de piorar. Por uma razão simples, tudo isso está errado e está nos levando para baixo do fundo do poço.
Já que nossa elite adora copiar os modelos americanos, fica a dica: que tal imitar o que Biden se propôs a fazer nos Estados Unidos? A retomada do crescimento brasileiro passa necessariamente pela ação de sindicatos fortes, com estrutura e organização capazes de aumentar a renda, a proteção e a qualidade de vida dos seus trabalhadores.
por Antonio Neto, Presidente da CSB e do SINDPD-SP, publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo