A rua paralela à Estação Brás parece uma junção de todos os clichês da urbanização predatória em São Paulo: é larga para os carros, tem calçadas minúsculas, não conta com nenhuma árvore em sua extensão e muito menos faixa de pedestres. Além do sol queimando forte no asfalto, dá para sentir o tremor habitual de quando um trem da linha vermelha do Metrô passa do outro lado do muro.
A rua poderia ser ainda mais inóspita, mas segundo A.M., 72, que mora no seu carro há alguns anos no bairro do Brás, as famílias que ocupam a via é que a fazem ser mais amigável para que outros carros estacionem sem medo de furtos ou roubos. “Olha aí, tá cheio de carro de bacana”, aponta o senhor.
A área é movimentada por conta dos carros e de alguns pedestres, que se espremem na calçada para passar até a entrada do metrô. A.M. traga o cigarro e pede para que seja escrita “a verdade” da rua. “Está cheio de trabalhador morando aqui. Tá vendo aquele ônibus? Quem mora ali resgata animais abandonados e atropelados. Ele poderia ter só um, mas tem um monte. Mais pra frente tem uma família inteira. Todo mundo batalha aqui e faz reciclagem para sobreviver”, diz. “Não é o lixo que gostam de dizer nas reportagens”, reclama, enquanto faz sinal de negativo para evitar fotos.
Na madrugada de 23 de março, em plena fase roxa da pandemia, implementada pelo governo do Estado, fiscais da prefeitura fizeram uma operação na rua, exigindo que os moradores saiam dali em um prazo de cinco dias, sob pena de multa de R$ 18 mil por abandono de veículo em via pública. Os veículos definitivamente não estão abandonados. Pelo contrário: servem de casa.
Segundo os moradores da rua, que se espalham em carros, kombis e ônibus, operações assim são feitas periodicamente, criando uma situação interminável de “joga pra lá, joga pra cá”. Quando baixa a fiscalização, os carros se movem para outro lugar e, depois, voltam para o ponto que ocupavam.
Um dos moradores da via é Isaías Alves da Cruz, 41, que organiza seus pertences no carro. Ele está estacionado na rua há uma semana, ora dormindo na barraca montada em um canteiro de terra, ora dentro do carro, quando chove. Em 2020, por causa da pandemia, Cruz foi demitido da empresa onde trabalhava como auxiliar de limpeza. “Eles demitiram todo mundo por justa causa, de sacanagem, e até agora não consegui meus direitos”, conta.
Um homem, 10 cachorros e um ganso
A rua comporta carros de diversos modelos, dos simples aos “de bacana”, que fritam igualmente sob o sol do início da tarde. Mas o que chama atenção é o ônibus escolar estacionado próximo ao muro. É a casa do “homem que resgata animais”, indicado por A.M. É assim que vislumbramos, em uma das janelas, um senhor de barba grisalha e braços queimados pelo sol limpando a poeira cinza incrustada nos vidros do ônibus — resíduo dos inúmeros carros que passam à milhão na rua.
Os cachorros latem nervosos para qualquer um que se aproxima, menos para João Andrade Correia, 62, dono do ônibus e guardião dos animais. Ele trabalha reciclando os eletrônicos que recebe de doação, e está estacionado nesse ponto há dois anos. Assim como os demais moradores, recebeu a notificação para sair da rua.
Não é a primeira vez que isso acontece, criando uma rotina desagradável em que Correia é obrigado a mover sua casa para outro local, até ser enxotado e voltar ao mesmo lugar. “Quando eu tava estacionado na Praça Cantinho dos Imigrantes, me tiraram de lá, sempre da mesma forma. Eles ficam chutando a gente que nem bola de futebol“, conta. “É uma legislação injusta e racista que perdura até hoje.”
Nascido em Maranguape (CE), Correia saiu da sua cidade natal ainda criança para trabalhar com uma família de lojistas no Rio de Janeiro. Conheceu as ruas do Brás quando a família vinha abastecer a loja no bairro. “Tentei me alistar no Rio, mas tomei baixa por causa do meu tamanho”, conta Correia, zombando da própria estatura de pouco mais de 1,50m. Quando veio morar em São Paulo, anos depois, instalou-se na região e passou a acolher os cachorros que apareciam vagando nas ruas.
Correia não parece muito a fim de falar sobre sua vida. Seu interesse e preocupação estão nos 10 cachorros de que cuida todos os dias. Uns latem sem parar, estranhando quem chega perto, outros dormem debaixo do ônibus, aproveitando a sombra. Apontando para cada um, Correia vai contando as histórias dos resgates. “Esse aqui, o Bill, apareceu de madrugada pra mim há oito anos”, diz. “Sabe aquele ali todo branquinho? É o Moisés, salvei ele de virar refeição pagando 300 conto pro cara que ia levar.”
A dedicação com os animais foi reconhecida por diversas comunidades de animais, que o ajudam com ração e consultas gratuitas em uma veterinária. “Antes tinha 11 cachorros, mas o Douglas tinha epilepsia e morreu no mesmo dia do Maradona”, lamenta.
Correia morava em uma perua, mas a trocou por um ônibus de 1992 para caber todos os cachorros dentro. “Posso até ir para o Japão, se o Japão me deixar entrar com meus cachorros, claro”, comenta o reciclador sobre o pleno funcionamento do ônibus-casa. No entanto, para rodar, precisa encher o tanque, o que está custando quase R$ 800 reais para um veículo desse porte.
A parte interna foi adaptada para acomodar o estilo de vida simples de Correia. Os bancos foram retirados e há em toda parte sacos de ração e partes de eletrodomésticos que ele desmonta para reciclar peças. Há potes gigantes cheio de arroz com carne, a mistura que alimenta os cachorros. Pode faltar comida para Correia, mas para eles, jamais.
O calor dentro do ônibus é maior que no asfalto. Até mesmo Correia evita passar muito tempo dentro de casa para não “fritar a cabeça”. “O sofrimento faz parte da vida, minha amiga”, comenta. O alívio vem de esporádicas lufadas de ar que entram pelas janelas. No entanto, a temperatura parece ser ideal para um inquilino inesperado: Ghost, um filhote de ganso que foi resgatado por um casal e acolhido por Correia. O animal está deitado sob um cobertorzinho, abrindo e fechando o pequeno bico, como se estivesse tentando falar algo. Correia aperta a ave com ternura entre os braços.
É comum Correia ouvir de outros que ele poderia recorrer aos abrigos da cidade e abandonar a rua. A sugestão é irritante. “Eu não quero abrigo, eu tenho meu ônibus e os meus cachorros”, explica. “Seria muito traíra da minha parte largar eles.”
De todos os incômodos, há pelo menos um alívio: ele tomou a segunda dose da CoronaVac na sexta-feira passada (19). “A gente fica muito exposto na rua, procurando coisas para reciclar.”
Prefeitura quer limpar a rua
“Não vou sair daqui”, afirma Gilmar Bráz, 51, que mora com a esposa e seis filhos em um motor home. Ele estava se preparando para ser entrevistado mais uma vez por uma emissora de TV, após denunciar a ação do poder público.
Bráz conseguiu trocar um ônibus que morava pelo motor home três anos atrás. Enquanto concede entrevista ao TAB, moradores da região passavam para conversar, provavelmente cientes das reportagens em que ele apareceu. “Já estou com advogados me ajudando. Isso não tá certo, ter que sair daqui. O pessoal acha que não sei das coisas por ser humilde, mas tenho muito conhecimento.”
Outro morador de uma kombi modesta da cor bege confirma o vaivém que a fiscalização que a prefeitura causa. De inicio, Eduardo Soares da Silva, 62, catador de reciclados, tenta se manter positivo sobre a situação, mas reclama da falta de consideração. “Moro no meu carro há quatro anos. Não bebo e nem fumo há oito. Eu não atrapalho ninguém aqui”, afirma. “Mas a rua é sempre complicada. Tem que saber sempre onde você pisa, o que você fala.”
Fonte: UOL